O compasso tem mais leigos e menos padres

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O compasso pascal é um ritual que se cumpre por devoção ou por hábito. Mais no Norte do que no Sul, com mais leigos e menos padres. Não há Páscoa sem a crux cum passo Domino. Por Patrícia Carvalho

ASe hoje acordou ao som do tilintar de pequenos sinos, não estranhe. Não é uma alucinação nem sequer a réstia de um sonho arrastado até ao momento do despertar. O mistério reduz-se a nada - o que parece o tilintar de sinetas é mesmo o tilintar de sinetas. É o compasso a anunciar que está a chegar. Já não, necessariamente, levando o padre da freguesia à casa dos seus paroquianos. Já não trazendo à casa de quem lhe abre a porta um grupo só de homens com opas brancas. Mas ainda com a cruz, que nem as ameaças passadas de gripes pandémicas afastou da boca dos mais crentes. E com o cesto ou a pasta onde se recolhe o donativo que cada família entender dar. E, sempre, claro, com a sineta a tocar, anunciando que o compasso chegou. É um momento de fé ou um ritual que se cumpre mais por hábito do que pelo seu significado. Com padres, sem padres, hoje ou amanhã, os compassos andam por aí. Em Mafamude, Gaia, não verá o padre. Em São Vítor, Braga, verá ou não, dependendo se mora no percurso por onde os dois padres locais irão passar. Em Creixomil, Barcelos, verá de certeza. Se quiser.

Braga 18 anos para percorrer toda a paróquia

No dia de hoje não há descanso para os padres António Torres e José Carlos Azevedo. Os dois responsáveis pela paróquia de S. Vítor, na maior freguesia da cidade de Braga, com cerca de 25 mil pessoas, já sabem de cor os percursos e o enorme número de cruzes e respectivas equipas que partirão da igreja: 24 de manhã e 20 pela tarde. Cada um dos clérigos faz um percurso matinal e um vespertino, e António Torres já fez as contas: "Este ano vou no percurso número seis da manhã e no número cinco da tarde. Ao final de dezoito anos, visitamos a paróquia toda."

Braga, a capital portuguesa das celebrações pascais, não fecha as portas aos seus compassos, ainda que, à semelhança do resto do país, o número de visitas tenha as suas variações, nem sempre perceptíveis. "Depende um bocado da altura do ano em que calha a Páscoa, e da carteira de cada um. Há pessoas que, podendo, aproveitam para ir de férias. Mas também já tem acontecido estar a chover e pensarmos que vamos encontrar mais pessoas em casa e não ser verdade", diz o padre. A média de visitas não é difícil de encontrar, graças às recordações (geralmente uma oração) que os compassos vão deixando em cada casa visitada: "Em média, cada percurso entrará em 85 a 90 casas. Penso que cem será o número máximo".

Em S. Vítor, há muito que os bracarenses se habituaram a encontrar um compasso composto inteiramente por leigos. De outra forma, "não seria possível", admite o padre. A escolha de voluntários é fácil, ainda que os percursos da tarde não tenham tantos adeptos. É compreensível: depois do tradicional almoço bem recheado, na companhia de amigos e familiares, a vontade de sair para as ruas da cidade não é tão grande.

Ainda assim, há sempre quem apareça e no prazo de três semanas fica tudo pronto. Os percursos mantêm-se inalterados há anos (apesar de lamentos esporádicos de alguns paroquianos que preferiam receber a cruz a outras horas) e os prédios que inundaram as cidades não são motivo para travar cruzes, campainhas e água benta. "Nas residências únicas, as pessoas ainda continuam a colocar flores à porta. Nos prédios nem sempre põem, mas, desde que a porta esteja aberta, entramos. Subimos ao último piso e vamos descendo."

GAIA Mafamude, o compasso sem padre

Com cerca de 50 mil habitantes, Mafamude é uma das maiores freguesias de Vila Nova de Gaia. O prior Jorge Duarte está à frente da paróquia local há 16 anos e, já nessa altura, a saída do compasso não era sinónimo da presença de um clérigo. Muito pelo contrário. "O compasso é um anúncio de leigos. Grupos de homens, mulheres e jovens que visitam as casas e levam uma recordação da paróquia", diz. Das 22 cruzes que saem nenhuma leva um sacerdote.

Como de costume, as sinetas que anunciam os grupos de compassos começam a soar pelas 9h00, quando abandonam a igreja. E, numa terra onde quase só há prédios, este toque é essencial para avisar a proximidade da cruz. As flores são colocadas na entrada dos prédios ou nas caixas do correio. Às vezes, deixa-se apenas a porta aberta. O recolher das cruzes acontece algumas horas depois, pelas 12h15, a tempo da missa das 12h30. "O momento mais importante da Páscoa é este", defende o padre.

Em cada ano, Jorge Duarte vai vendo rostos novos durante a missa pascal, ainda que o número de presentes não varie muito. As caras mais conhecidas estão muitas vezes ausentes, porque aproveitam a data para visitar familiares que vivem noutros pontos do país. Em compensação, também não falta quem vá visitar a família que habita em Mafamude, e acabe sentado nos bancos da igreja, antes do almoço.

Se puder, o padre aproveita parte do dia para visitar alguns paroquianos mais especiais - os que estão doentes e não podem sair de casa; os idosos solitários; os que têm mais dificuldades. Se não for possível fazer as visitas hoje, ficará para outra altura, e os dados recolhidos por todos os que participam no compasso (e que são, na sua maioria, adultos e jovens ligados a grupos da própria igreja), ajudam, muitas vezes, a identificar situações mais complicadas de carências escondidas. "Ao longo do ano tentamos dar o nosso contributo. Não resolvemos, mas ajudamos no que pudermos", diz.

Barcelos Como gerir quatro paróquias

O padre João Antunes é só um, mas as paróquias que estão sob sua responsabilidade não têm parado de crescer. Primeiro, eram apenas as paróquias de Carapeços e Santa Leocádia, mas a seguir entregaram-lhe também Vilar do Monte e Creixomil. Como o padre é só um e todos os compassos saíam, habitualmente, no domingo de Páscoa, parecia haver um problema. "Tivemos algumas dificuldades pastorais. É uma tradição que o povo estima muito, à qual dá muito valor, e ainda bem que assim é. Todas as comunidades que me estavam confiadas tinham o compasso no domingo de Páscoa. Ao não poder estar em todas, coloquei a questão em cima da mesa." E encontrou-se a solução.

Há três anos e meio que João Antunes é o padre de Carapeços e Santa Leocádia. Às portas da cidade de Barcelos, com a indústria têxtil como principal actividade dos moradores, Carapeços estava habituada a ver a cruz chegar-lhe à porta pelas mãos de um leigo. "O meu antecessor já não acompanhava a cruz há alguns anos, porque não podia, e já saíam três grupos, por isso não era estranho ter o compasso presidido por um leigo", explica. Com Santa Leocádia o problema também não se pôs. João Antunes e os habitantes optaram por repor a tradição antiga de levar a cruz à freguesia na segunda-feira de Páscoa, permitindo que o compasso continuasse a ser presidido pelo sacerdote.

O caso mais difícil de resolver foi em Vilar do Monte. Ao longo dos anos, o compasso fora sempre presidido por um membro da igreja - se não o padre local, um sacerdote que o substituísse ou um seminarista. E os moradores "não estavam muito preparados" para receber a cruz das mãos de um leigo, explica João Antunes. Só que a realidade de hoje é diferente de há uns anos. "Tenho trabalhado junto das pessoas, para as fazer perceber a realidade que a igreja vive. A escassez de sacerdotes é uma realidade e a intervenção e participação de todos é cada vez mais necessária", diz.

Este ano, com a entrega de uma nova paróquia sob sua responsabilidade - Creixomil - o padre João Antunes achou que era "altura de colocar o papel dos leigos em cima da mesa". Para que todos pudessem participar e dar a sua opinião, convocou-se um referendo. "Não queria transformar uma festa tão bonita num motivo de discórdia", justifica. Aos paroquianos foram colocadas duas hipóteses - o compasso saía hoje e seria presidido por leigos ou só sairia no próximo domingo, a Pascoela, e a cruz poderia então ser transportada pelo padre. O povo escolheu a manutenção do compasso no domingo de Páscoa e, pela primeira vez, Vilar do Monte terá, este ano, um compasso presidido por leigos.

João Antunes explica, contudo, que esta questão não deverá ficar por aqui. Este ano, o padre vai acompanhar a saída das cruzes em Creixomil, por ser o primeiro ano que tem esta paróquia sob a sua alçada. E a sua visita irá rodar, nos anos seguintes, pelas restantes paróquias com compasso ao domingo de Páscoa. Mas haverá um dia em que já não poderá ir. "Só posso continuar a ir enquanto tiver quem me substitua nas eucaristias de domingo. Por isso, esta situação é, certamente, temporária. No futuro", diz, "todos os compassos serão presididos por leigos".João Antunes, padre de Barcelos

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