Será que alguém ouve as orações dos eunucos do Paquistão?

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Vários eunucos, como Shama, participaram em Janeiro numa cerimónia em memória de um BEHROUZ MEHRI/AFP

O Supremo Tribunal do Paquistão ordenou que fosse colocada nos bilhetes de identidade uma coluna para um terceiro sexo. Mas os hijras duvidam que isso vá retirá-los da marginalidade. Por Emmanuel Duparcq/AFP

Na cidade paquistanesa de Rawalpindi, Mohammed Zafar Iqbal costumava tirar bom proveito das suas belas feições e movimentos graciosos, dançando enfeitado com véus e vestidos azuis para clientes que procuravam aquilo que consideravam ser a proximidade dele com Deus.

Mas, tal como a maioria dos membros da comunidade transexual e de eunucos do Paquistão - ridicularizados e ostracizados pela sociedade -, a sua vida tem sido essencialmente marcada pela dureza e pelo sofrimento, atingindo o auge há sete anos, quando foi brutalmente atacado.

Um admirador ciumento, furioso por ter sido rejeitado por um hijra, nome pelo qual os eunucos são conhecidos no Paquistão, atirou-lhe ácido para a cara. Esse homem, Shabir, era o seu melhor amigo. "Eu amava-o como a um irmão. Mas um dia ele disse-me que estava apaixonado por mim. Queria-me só para ele", conta Zafar.

"Ninguém nos respeita. Para eles, só servimos para o sexo. Os homens assediam-nos mais do que às raparigas", diz-nos no seu tom de voz andrógino e esganiçado.

Zafar, de 22 anos, afirma que a única coisa que mitiga a angústia do seu passado é a dança. Envolto numa túnica castanho-clara, faz piruetas e bamboleia-se ao som de música indiana no dormitório da Fundação das Vítimas do Ácido, na capital paquistanesa, Islamabad.

O bonito cabelo, comprido e liso, e um par de óculos de sol escondem os olhos cegos, e a sua pele está esticada ao longo da face desfigurada.

Uma foto de Zafar aos 15 anos comprova as suas antigas feições, mostrando a imagem de uma mulher bela, usando maquilhagem, um vestido bordado e um véu azul-escuro. Nos seus braços está um menino, filho de um polícia da cidade. Zafar tinha sido convidado para dançar na festa de aniversário do rapaz.

Ao longo da história, os hijras eram castrados à nascença e ostentavam um estatuto de favoritos no império mogol do subcontinente indiano. Agora a comunidade inclui hermafroditas, transexuais, travestis e homossexuais.

Mobilização e protestos

Tradicionalmente, os eunucos eram pagos para ajudarem a celebrar o nascimento de um filho, ou para dançarem em casamentos. Devido ao que se acredita ser o infortúnio de terem nascido entre dois sexos, a tradicional crença no Paquistão é que Deus estará mais inclinado a ouvir as orações deles.

Mas isto deixa os hijras com poucas opções para além de pedir esmola nas ruas, e muitos acabam como prostitutos.

No Paquistão de religião muçulmana, onde as relações sexuais fora do casamento são tabu e a homossexualidade é ilegal, são também tratados como objectos sexuais e muitas vezes tornam-se vítimas de ataques violentos.

"Todos os eunucos estão na prostituição", diz Reshma, de 22 anos, que vende sexo por 200 rupias (dois euros). "Isto é duro, mas ganho mais a fazer isto do que se tivesse um emprego normal", acrescenta, enquanto, à uma da manhã, procura clientes na Avenida Benazir Bhutto em Rawalpindi, vestido com uma túnica cor-de-laranja berrante.

Numa decisão com vista a garantir direitos à comunidade, o juiz do Supremo Tribunal do Paquistão ordenou que o Governo reconheça os hijras como um género próprio - apesar de ainda estar para se ver como é que isso vai ser posto em prática.

Na vizinha Índia, os eunucos e os transexuais venceram em 2009 uma longa batalha para serem classificados como "outros" - diferentes de homens e mulheres - nas listas de recenseamento eleitoral e nos cartões de eleitor.

"Isso é bom para os eunucos, porque aqui ninguém os respeita", afirma Almas Bobby, um porta-voz da comunidade paquistanesa dos eunucos. "Muitos tipos ruins violam-nos só por gozo, para se divertirem, queimam-nos com cigarros."

Bobby, de 45 anos, famoso na cidade de Rawalpindi pela graça feminina da sua dança, tem nos últimos anos ajudado a mobilizar os seus companheiros eunucos para lutarem pelos seus direitos.

Manifestações contra as violações e a extorsão por parte da polícia tiveram muito destaque na imprensa paquistanesa.

O advogado Mohammad Aslam Khafi entregou no Supremo Tribunal uma petição a favor dos direitos dos eunucos, e no mês passado esse mesmo órgão judicial ordenou que fosse colocada nos bilhetes de identidade uma coluna para um terceiro sexo.

O juiz também exigiu mais apoio para os eunucos conseguirem as suas partilhas segundo as leis de herança, bem como mais protecção face ao assédio policial.

Guia e proxeneta

Rejeitados pelas suas desgostosas famílias quando entram na adolescência, os eunucos acabam a viver juntos em comunidades lideradas por um guru que age como guia e conselheiro - mas na maior parte das vezes como proxeneta.

"Na nossa sociedade, o acesso a raparigas fora do casamento é muito limitado, não há privacidade. Isso alimenta a prostituição", diz Mohammad Aslam Khafi. "Todos eles estão, de uma ou outra forma, ligados ao negócio da prostituição."

Mas, apesar de todas as campanhas, os hijras têm pouca esperança de que a sua vida vá mudar rapidamente - e a nova lei do Supremo Tribunal ainda tem que ser posta em prática. "A situação vai manter-se igual", diz Reshma. "Não creio que uma medida burocrática vá melhorar as nossas vidas."

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