Crimes de honra e violência doméstica

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As "agressões em defesa da honra" violentas são crimes que violam o direito à vida, à liberdade, à integridade física

Uma rapariga estabelece amizades com rapazes. Haverá coisa mais normal e mais comum? No entanto, por fazer isso mesmo, consta que uma adolescente turca foi enterrada viva pelo pai e pelo avô. Esta notícia foi acolhida com sentimentos de revolta e indignação no mundo inteiro. Contudo, crimes como este não são de modo algum excepcionais. Com efeito, um tribunal do Arizona está neste momento a julgar o caso de um homem acusado de atropelar e matar a filha que, ao que parece, considerava demasiado "ocidentalizada". A ONU calcula que, todos os anos, aproximadamente 5000 mulheres sejam assassinadas por membros da sua família "em defesa da honra", no mundo inteiro.

Quando são vistas como símbolos da honra de uma família, as mulheres tornam-se vulneráveis a ataques que envolvem violência física, mutilações e até a morte, normalmente às mãos de um familiar do sexo masculino "ofendido" e muitas vezes com o consentimento tácito ou explícito dos elementos femininos da família.

As "agressões em defesa da honra" são cometidas para "sanar e limpar" uma violação das normas familiares ou comunitárias, especialmente quando está em causa o comportamento sexual. Mas a agressão também pode ser desencadeada pelo desejo de uma mulher casar ou viver com a pessoa que escolheu, de se divorciar ou de reivindicar uma herança. Por vezes, os pretensos "vingadores" são levados a agir por simples mexericos e suspeitas infundadas. As mulheres são condenadas a penas violentas, sem lhes ter sido permitido apresentar a sua versão dos acontecimentos e sem a possibilidade de recurso.

Esta lógica perversa e a violência que desencadeia aplicam-se mesmo quando as mulheres são alvo de atenções indesejadas por parte dos homens ou foram vítimas de violação, incluindo violência incestuosa. Assim, são duplamente vitimizadas, enquanto o comportamento dos seus agressores é tolerado. É frequente os autores destes actos poderem contar com exoneração total ou parcial de sanções devido a leis indulgentes ou aplicadas sem grande rigor. Por vezes, os agressores chegam mesmo a ser alvo da admiração da sua comunidade, por terem travado o mau comportamento de uma mulher desobediente e obliterado com sangue a desonra cometida. Mas as "agressões em defesa da honra" violentas são crimes que violam o direito à vida, à liberdade, à integridade física, a proibição da tortura e de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a proibição da escravatura, o direito a não ser alvo de discriminação de género nem de abusos ou exploração sexuais, o direito à privacidade, e a obrigação de renunciar a leis discriminatórias e a práticas prejudiciais para as mulheres.

É simplista e enganador pensar que estas práticas pertencem a culturas retrógradas que desprezam a conduta civilizada. A verdade é que, em todos os países do mundo, as mulheres têm de suportar a violência em áreas que conhecem e em que deviam poder esperar estar seguras em vez de ser agredidas. As agressões em defesa da honra estão imbuídas da mesma atitude e decorrem da mesma mentalidade que geram a violência doméstica. Estas agressões nascem do desejo de controlar as mulheres e de reprimir as suas aspirações e a possibilidade de se exprimirem.

As mulheres vivem enclausuradas dentro das paredes das suas casas, num clima de isolamento e impotência gerado pela violência. Em consequência disto, muitas agressões contra as mulheres cometidas na esfera doméstica permanecem envoltas em silêncio e vergonha, em vez de serem denunciadas como aquilo que são, isto é, violações flagrantes dos direitos humanos.

Embora a independência económica das mulheres lhes possa abrir caminhos que lhes permitam libertar-se dos condicionamentos sociais e dos abusos e repressão domésticos, a violência contra as mulheres tem vindo a aumentar, mesmo nos países onde alcançaram a independência financeira e gozam de um estatuto social elevado. Isto obriga algumas empresárias bem sucedidas, bem como deputadas, académicas brilhantes e profissionais independentes a levarem uma vida dupla. Em público, são consideradas modelos de comportamento ao mais alto nível da sociedade. Na esfera privada, são humilhadas e agredidas.

A resposta típica à violência doméstica consiste em enviar as mulheres para abrigos e tirá-las do ambiente onde vivem. Pelo contrário, os seus agressores raramente são obrigados a partir ou a fugir, envergonhados e amedrontados, das suas próprias casas ou do seu meio social.

Há que inverter esta situação. O Estado tem uma responsabilidade muito clara de proteger as mulheres, punir os seus agressores e obrigar os autores destes crimes a suportar os custos e as consequências da sua pretensa superioridade moral e brutalidade. Há que fazer isto, independentemente da situação dos agressores na sociedade, da sua motivação e da sua relação com a vítima. Ao mesmo tempo, os homens e as mulheres, os rapazes e as raparigas têm de ser educados e informados sobre os direitos humanos da mulher e o dever que todas as pessoas têm de respeitar os direitos dos outros. Isto deve incluir o reconhecimento do direito das mulheres a controlarem o seu corpo e a sua sexualidade, bem como da igualdade de acesso a heranças, à propriedade, à habitação e à segurança social.

As mulheres estão a lutar para garantir que esta mudança de atitudes se dê e se consolide. Obrigam cada vez mais os seus agressores a explicarem em tribunal o que há exactamente de honroso nos seus actos. As mulheres estão a exigir cada vez mais que os seus algozes também tenham de enfrentar as consequências da violência. Temos de apoiar estas mulheres corajosas. Temos de ajudar as outras pessoas a fazerem-se ouvir e a rasgarem o véu de silêncio e conivência social que tem permitido a implantação das culturas de violência. Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos

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