Tantas saudades tuas

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Lady Antonia Fraser, em 1974, antes de conhecer Harold Pinter. Era casada com o deputado conservador Hugh Fraser dr

Uma história de amor só é verdadeiramente romântica se sobrevive ao tempo e à morte. Esta é contada em primeira mão, discurso directo, por Antonia Fraser, escritora britânica que passou 33 dias de São Valentim com o dramaturgo Harold Pinter.

Ele para ela: must you go?

Na noite de 8 de Janeiro de 1975, ainda não tinham trocado uma palavra na festa, uma conhecida historiadora e biógrafa aproximou-se do famoso dramaturgo para elogiar a sua peça, que tinha acabado de ver, e despedir-se. Ele, impulsivo, confiante, perguntou: "Must you go?"("Tem mesmo de ir?")

Ela para ele: não, não tenho mesmo de ir.

E com essa resposta, que ninguém esperaria, nem ela, começava a história de amor entre Harold Pinter e Antonia Fraser.

A história da primeira noite -contada a amigos, mais tarde a netos - tornou-se tão mítica quanto a relação. Era uma história que se continuava a contar nos anos que se seguiram: em aniversários de namoro, de casamento, em dias de São Valentim.

"Preferias que não nos tivéssemos encontrado?", perguntava ele muitas vezes, sabendo que a resposta era um "não" sem arrependimento.

Mais tarde ela gostava de especular que nunca teriam ficado juntos se na noite de 8 de Janeiro de 1975 tivesse dado outra resposta, tivesse dito "sim, tenho de ir", porque nessa noite, enquanto ela não conseguia deixar a festa, em casa o marido e os seis filhos deitavam-se. Ela tinha 42 anos e Pinter 44, mulher e filho à espera.

Ele, sempre impulsivo, confiante: "Eu ter-te-ia encontrado de qualquer maneira."

- Gosta de diários, é?

- Sim, sim, mas não é por isso. Quer dizer, não é só um diário. É um diário de uma escritora sobre a vida com um outro grande escritor, enfim...

- Gosta muito desse escritor, é?

- Sim, quer dizer, não, não particularmente, não é bem isso. Não é só porque são escritores ou porque são famosos, é porque é uma história de amor.

- E veio de propósito só para ouvir essa escritora falar, é? Pagou bilhete, é?

- É, paguei bilhete e vim só ver a escritora falar.

- E vem muita gente, é?

- Parece que sim, parece que está esgotado.

- Bom espectáculo.

- Obrigado.

(Não adianta explicar ao senhor, com um ar perdido junto do teatro nacional britânico, em Londres, que não se trata de um espectáculo, mas de uma entrevista em palco.)

Ele para ela: Tudo o que fazemos / Liga o espaço / Entre a morte e eu, / E tu.

Foi o primeiro poema que ele lhe escreveu. Ela levava consigo na carteira o poema, em papel de carta de um hotel de Hong Kong, quando se encontrou para almoçar com a única amiga que eles tinham em comum:

- Estou contente que isto lhe esteja a acontecer a ele - disse a amiga. - O Verão passado enquanto ele estava a escrever No Man"s Land na casa de campo, quase pensei...

- Ele diz que estava à espera da morte - completou Antonia Fraser.

Dois meses depois, No Man"s Land estreava no teatro nacional. Antes da primeira noite, ela deu-lhe o seu amuleto da sorte. Na noite da estreia, ele, sentado com o amuleto na mão, procurava-a entre o público.

Ela para ele: por favor, tira a vírgula entre "eu" e "e tu"

Ele tirou a vírgula entre "eu" e "e tu" mas não pôs a vírgula onde ela queria. Ela queria a vírgula a separar "a morte" de "eu e tu".

Teatro nacional britânico, 35 anos depois da estreia de No Man"s Land e de Antonia Fraser e Harold Pinter se terem conhecido: Lady Antonia Fraser entra em palco, frágil mas elegante. Veste um casaco azul de seda com motivos orientais por cima de um vestido preto clássico e, quando acena com a cabeça, do balcão percebe-se que traz longos brincos azuis a condizer.

O cenário são dois pianos e prateleiras com objectos propositadamente desarrumados, mas isso é para a peça que entrará em cena mais tarde.

Para ela e para o jornalista que a vai entrevistar em palco, está posta uma mesa com um jarro de água e dois lugares. Harold Pinter não está.

Antonia Fraser senta-se e, apesar de ser alta, parece quase não pousar os pés no chão. Senta-se como uma menina e, com o fascínio da primeira vez, fala de Harold Pinter.

Ela para ele (rabiscado num guardanapo): "Se não houvesse morte / Como no meio das multidões / te iria encontrar?"

Neste período ele escrevia mais poesia. O mais famoso poema desse período talvez seja Cancer cells: "Elas crescem tão quietas noite e dia / Nunca se sabe, elas não dizem."

A primeira linha do poema - porque nesse momento tinha começado o processo de escrita - citava uma enfermeira no hospital em Londres onde estava a ser tratado: "As células cancerígenas são aquelas que se esqueceram de como morrer."

Quando ele voltou do hospital, continuou a trabalhar no poema em casa. O cirurgião que o operou ao cancro do esófago guardou o poema na secretária e houve quem comentasse mais tarde que o poema era lido frequentemente em palestras, nos congressos de medicina.

Ele para ela (a meio da noite): "Encontrar-me-ias virando ao fundo do longo bar / Copos erguidos, / Um para ti, um para mim."

Era preciso morrer, porque o planeta não aguentaria sem morte, mas não era preciso morrer já. O cabelo preto e encaracolado, o sinal mais visível da personalidade Pinter, voltou a crescer. Ele voltou a comer com apetite. E a erguer o copo num brinde à vida, ao amor.

O teatro está lotado, proporcionalmente ao número de cópias vendidas de Must You Go?

Numa semana, o livro chegou à lista de bestsellers, e quem tentasse comprá-lo dias depois das magníficas críticas e longos artigos nos jornais britânicos e de Antonia Fraser ter ido à Radio 4 da BBC, tinha de percorrer várias livrarias em Londres até encontrar um exemplar.

A capa tem uma imagem de Pinter e Fraser - ele com o cabelo escuro e forte que ela tanto gostava; ela com o "mais amoroso dos sorrisos", diria ele -, tirada pouco depois de estarem a viver juntos em Camden Hill Square, depois do primeiro marido de Antonia, o deputado conservador Hugh Fraser, ter mudado de casa após o divórcio.

Ela, apesar de Lady, não é realeza. Ele, apesar de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, não tem livros esgotados.

Ninguém sabe muito bem porque é que toda a gente quer ler Must You Go?.

Ele para ela: parece que ganhei o Nobel.

Antonia Fraser descreve ao jornalista Mark Lawson e à audiência do teatro nacional a casa de Camden Hill Square, no Oeste de Londres, entre Notting Hill e Holland Park: ela trabalhava no sótão; ele, para chegar ao seu "superestúdio", tinha de atravessar o jardim. Normalmente, falavam-se por uma espécie de intercomunicador entre os dois escritórios. Raramente mandavam recados pelas suas secretárias, por isso quando a assistente dele bateu à porta, Antonia Fraser ficou surpreendida:

- Harold tem urgência em falar consigo.

- Mas o que se passa?

- Não posso dizer.

Ela para ele: o melhor é ligar a televisão para ver se é verdade.

Para dizer que no livro dela inseriu comentários às entradas do diário, mas não alterou o que tinha escrito nessas entradas, Antonia Fraser cita Diary of a Nobody. Segundo ela, o melhor diário alguma vez escrito foi ficcionado - era o diário de Mr. Pooter, um aborrecido funcionário da City de Londres no século XIX. A vantagem de lermos um diário, explica Fraser, é de vez em quando sermos brindados com a sensação: "Que idiota, eu sou superior."

A reacção dela quando finalmente conseguiu falar com Harold pelo intercomunicador foi típica de Mr. Pooter:

- O que se passa?

- Parece que ganhei o Nobel.

- Bem, o melhor é ligar a televisão para ver se é verdade.

O teatro enche-se de gargalhadas. O tom é caloroso, despretensioso, directo, tal como o tom de Must You Go?

O jornalista do diário britânico The Guardian quer saber se, ao escrever o livro, ela tinha a intenção de corrigir a imagem de Harold Pinter transmitida pelos meios de comunicação social britânicos. Ela responde que não, que quis apenas escrever como ele era:

- Percebe? - pergunta ao jornalista e volta-se para a audiência: - Escrevi como ele é.

Ele para ela: sou o homem mais sortudo do mundo.

"9 de Julho [de 1977]. Eu: "Nunca soube que teria a coragem de acabar o meu casamento." (...) Harold: "Eu também não." Eu: "Não te arrependes de me ter conhecido naquela noite?" (...) Harold: "Sou o homem mais sortudo do mundo"."

Ele era conhecido pelo seu mau feitio e pelos exacerbados discursos políticos. Ela descreve um homem que não se cansa de a elogiar - em dias de aniversários de namoro, de casado, em dias de S. Valentim, ou em dias sem razão nenhuma para dizer: "Sou o homem mais sortudo do mundo."

Os anos passavam: peças estreavam-se em Nova Iorque, com um tapete vermelho de críticas no New York Times e na New Yorker; em Dublin dedicavam festivais inteiros a Pinter; em Praga, Pinter acompanhava Vaclav Havel nos primeiros dias de presidência da Checoslováquia; jantavam com Beckett em Paris; passavam férias em Barbados com o grande amigo dramaturgo Simon Gray ou férias em família no Algarve; em Londres, a casa dos Pinter tanto servia para celebrações como para aflições, e foi o lugar escolhido por Salman Rushdie para ver a sua família depois da fatwa emitida contra si por causa da publicação de Versículos Satânicos. Cada vez que celebravam um aniversário de casados, de namorados ou um dia de S. Valentim, quer estivessem a norte ou a sul, a este ou a oeste de Londres, ele escrevia num cartão: "Sou o homem mais sortudo do mundo."

"Foste a minha vida / Quando eu estava morto / És a minha vida / E portanto eu vivo", escreveu Harold Pinter em To my wife (2004), dois anos depois de ter recuperado do cancro do esófago. Pouco depois, foi diagnosticado com uma rara doença do sangue, e, quatro anos depois, novamente o cancro - "o grande medo", chamava-lhe ela com as suas referências históricas.

"Você tem tanto por que viver", disse-lhe o médico em Novembro de 2008. Ele - quando chegou a casa contou à mulher - respondeu: "Sobretudo pelo meu casamento." Era outra forma de dizer-lhe: "Fui o homem mais sortudo do mundo."

- Ele teria gostado de ver os diários publicados? - pergunta, com um ar sério, o jornalista.

- Ele achava que tudo o que eu fazia era perfeito! - responde Antonia Fraser, com tom de menina.

Ela para ele (citando Larkin): "Tudo o que sobra de nós é o amor."

O Conde e a Condessa de Arundel, dois cães a seus pés, deitados de mãos dadas num sono de pedra na catedral de Chichester. Num pilar próximo alguém tinha invocado Larkin: "Tudo o que sobra de nós é o amor." Antonia Fraser correu para fora da catedral. O marido experimentava uns sapatos numa loja. Ela, emocionada, contou-lhe do túmulo, do poema de Larkin dedicado aos condes de Arundel e balbuciou qualquer coisa sobre a ideia de "fidelidade de pedra". Ele pagou os sapatos com o cartão American Express e, finalmente, virou-se para ela e recitou: "A fidelidade de pedra / Que eles nem desejaram foi / O seu brasão final e prova / O nosso quase instinto quase verdade: /O que sobrevive de nós é o amor."

Estavam casados há três anos, namoravam há oito.

Ele para ela (furioso): não quero flores na minha campa.

O comentário foi feito - furioso - enquanto olhava para as flores a murchar na campa de Philip Larkin, pouco tempo depois da morte do poeta britânico em 1985.

Ela lembrou-se deste comentário sete anos depois, no dia 19 de Março de 1992. Nesse dia visitaram o cemitério de Kensal Green, onde estava enterrado o romancista da época vitoriana Trollope. Não era nada de extraordinário visitarem um cemitério: juntos tinham ido em peregrinação à campa de T. S. Eliot, tinham ido ver James Joyce a Zurique (enterrado de forma a escutar os leões rugir por perto no jardim zoológico)e tinham prestado homenagem a Tennessee Williams na altura em que Pinter dirigiu Lauren Bacall em Sweet Bird of Youth (peça que deu origem ao filme com Paul Newman, Corações na Penumbra).

Mas dessa vez, ao saírem de casa, ela perguntou: "Conduzes-me à minha campa ou conduzo-te eu?"

Uma vez, no cemitério de Kensal Green, foram conduzidos num típico táxi preto londrino fora de serviço.

"Quando é que faleceu o defunto?", perguntou o motorista, grave. "O defunto somos nós", responderam, alegres. E como sentissem necessidade de se justificarem, acrescentaram: "Somos escritores."

Tudo isto muito antes de Harold Pinter ter ficado doente.

Porque é que toda a gente quer ler Must You Go?

Antonia Fraser senta-se numa mesa no foyer do teatro nacional e começa a assinar livros, os dedos ágeis com um anel azul a condizer com os brincos e o casaco com motivos orientais. Os funcionários do teatro organizam uma fila ordeira dividida em duas partes. Ela fica mais meia hora, mais uma hora. Os últimos a pedirem-lhe autógrafos são os próprios funcionários do teatro.

"É melhor fazer qualquer coisa do que não fazer nada", acabou ela de explicar lá dentro, na sala.

Ela tinha sido sempre uma escritora lenta: as biografias de rainhas - Marie Antoinette, Mary Stuart -, de reis e de acontecimentos históricos demoravam muitos anos a fazer.

Must You Go? tinha ficado pronto rapidamente. Para este livro não tinha precisado de listas intermináveis de referências. A dada altura, contou no palco do teatro nacional, teve um momento de alegria quando descobriu: "Eu sou a referência, eu sou a fonte."

Queremos ler esta história porque é uma história de amor em primeira mão. Queremos ler esta história de amor para admirar a bravura desta mulher.

Ela para ele: must you go?

Foi o que ela escreveu no diário depois de ele morrer.

Ele para ela: "Lembra-te que quando eu estiver morto / Tu estarás para sempre viva no meu coração e na minha cabeça."

Foi o último poema que ele lhe escreveu, To A. Ainda teve tempo de mandar publicar um livro só para ela e oferecer-lhe Seis Poemas para A, que fechava com este último: "Vou ter tantas saudades tuas."

No diário, ela apontou o dia em que o leu pela primeira vez, no Verão de 2007 - a primeira linha era: "Vou ter tantas saudades tuas quando morrer."

Ela tinha ficado perturbada, mas ele não. Estava satisfeitíssimo por ter percebido que os mortos talvez sintam a falta dos vivos. a

susanamoreiramarques@gmail.com

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