A Rua da Estrada é um novo mapa de Portugal

Há um novo retrato de Portugal sociológico, arquitectónico, urbanístico que se pode ver a partir das EN do país. O geógrafo Álvaro Domingues cartografou-o a partir de uma perspectiva inovadora. Uma performance que agora chega a livro. Por Sérgio C. Andrade (texto) Nelson Garrido (foto)

Numa das Estradas Nacionais (EN) que levam a Vila Nova de Famalicão, há uma casa azul e cor-de-rosa rodeada por aquilo a que poderíamos chamar um "jardim" memorial. Contém um Torre Eiffel em miniatura, um pombal, macacos nos telhados, estatuetas, pequenos arbustos, uma rosa-dos-ventos, bandeiras, ardósias com inscrições poéticas, ameias, colunas, azulejos... Um autêntico gabinete de curiosidades e maravilhas.

Como todas as casas suas vizinhas, nesta como nas outras EN de Portugal, a designada "Villa Soledade" tem uma história por trás. Mas a desta casa é uma história bem dramática. E o seu visual concentra uma espécie de expiação da tragédia que, um dia, bateu à porta de um bem-sucedido emigrante português na Venezuela: a futura nora abateu a tiro o seu filho e depois suicidou-se, no dia em que o noivado de ambos iria ser festejado em família. Regressado a Portugal, o emigrante decidiu exorcizar o seu trauma com a construção da "Villa Soledade", que decorou do modo atrás descrito, incluindo nela um monumento funerário ao filho. Tudo "para que as pessoas vejam!".

Quem conta esta história ao Cidades é Álvaro Domingues, geógrafo, investigador e professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), a mostrar como as casas que encontramos nas nossas EN são uma forma de dissolver (ou de sobrepor) o domínio do privado, tradicionalmente guardado no interior das suas quatro paredes, na via pública.

Como esta, as casas d"A Rua da Estrada - título que Álvaro Domingues deu ao seu novo livro, editado pela Dafne, e que vai ser lançado na próxima sexta-feira, dia 6, no Porto - constituem uma praça que desengana quem acreditava que o público e o privado eram duas dimensões opostas. Mas essas casas são muitas outras coisas. Têm muitas outras expressões que dão a conhecer a face actual - de certo modo "pós-moderna", diz o autor - de Portugal que, do ponto de vista sócio-cultural e urbanístico, saltou todas aquelas fases por que passaram os países europeus desenvolvidos: as Luzes, a Industrialização, o Moderno... Um país simultaneamente em des-ruralização e sub-urbanização aceleradas, principalmente desde a década de 1980, com a democratização do automóvel e a multiplicação da rede viária, e, subsequentemente, com as estradas a serem "lugar de passagem e de tráfego", mas também a "servirem de suporte a uma vida quotidiana local muito intensa". A Rua da Estrada torna-se, assim, confluência de uma mistura desordenada e nada conforme com os modelos urbanos tradicionais. Tem casas e lojas, cafés e restaurantes, fábricas e clínicas, feiras e mercados... É uma espécie de "cidade continuada", que dissolve as fronteiras da urbe canónica e planificada.

A Rua da Estrada é também espelho de condição social, sinal da evolução tecnológica, e acolhe ícones arquitectónicos de diferentes épocas, a que o tempo vai dando, mais cedo ou mais tarde, caução patrimonial.

A casa do brasileiro

Álvaro Domingues cita o exemplo das casas dos brasileiros, que remontam ainda ao final do século XIX, como um momento marcante na mudança da face tradicional da Rua da Estrada. "O brasileiro torna-viagem é um dos primeiros sinais da forte ruptura social em Portugal", nota o investigador. A minoria de emigrantes que ganha dinheiro regressa à terra de origem e quer expor publicamente o seu sucesso. Para isso, "constrói casas que são completamente diferentes do vernacular, e que contêm várias referências eruditas cruzadas, a que acrescentam jardins com palmeiras e diospireiros". E fá-lo, normalmente, fora dos aglomerados já constituídos - é a sua forma de melhor ostentar o sucesso e a diferença.

O mesmo paradigma aplica-se à casa do emigrante dos nossos dias que regressa da Europa, e cuja estética é normalmente vítima de alguma animosidade. Mas Domingues realça que "a apreciação estética da casa não interessa ao sociólogo". O que lhe interessa é perceber as razões desta animosidade.

Aliás, uma marca da investigação - e do diaporama analítico que o livro de Álvaro Domingues de certo modo constitui sobre este mapa arquitectónico e sociológico de Portugal - é evitar cair nos tradicionais juízos estéticos. "Num país histórica e profundamente deficitário em infra-estruturação, que só teve auto-estradas e vias rápidas na década de noventa, era de esperar que a dinâmica de crescimento do pós-guerra tivesse que produzir edificação algures. As estradas e o que nelas havia (electricidade e telefone, quando calhava) eram o suporte mínimo dessa edificação com acesso garantido. É isso que a explica, e não os bodes expiatórios do costume: especulação, défice de planeamento (no Antigo Regime, havia só uns planos para uns bocados de cidades e pouco mais), ilegalidade (ou a-legalidade?). Compactar tudo isto na conversa do "feísmo" torna a realidade ainda mais opaca e indiscernível", escreve o autor, que reclama "alguma vaidade" em ter descoberto "um analisador do que é uma identidade em Portugal que habitualmente é mal vista".

Domingues avança dois conceitos para a leitura deste mapa de Portugal: "A Rua da Estrada é um transgénico, porque absorve qualquer código genético, seja ele o da globalização profunda, seja o do tipicismo local, e depois recombina tudo" - o autor acrescenta que este conceito de transgénico tem o mesmo sentido metafórico do ornitorrico, que Umberto Eco invoca no seu recente livro As Listas, esse animal que durante décadas permaneceu inclassificável, pois tinha bico de pato mas dava leite, punha ovos mas tinha barbatanas... "Como esta Rua da Estrada não se adapta a nenhum dos nossos conceitos pré-concebidos, as pessoas refugiam-se numa amnésia, ou então acham que ela não existe. Aliás, para os urbanos profundos, ela não existe mesmo, porque eles saem do seu núcleo urbano histórico e consolidado directamente para a auto-estrada, e este território é-lhes completamente desconhecido".

A Rua da Estrada é também "um sismógrafo de alta fidelidade" (este é o segundo conceito), por via do modo como, na extensão do seu espaço praticamente ilimitado, está sempre disponível para acolher uma nova edificação, um apêndice, que no fundo serão signos que reflectem as evoluções sociais, económicas e tecnológicas.

Início no Vale do Ave

Álvaro Domingues começou a viajar pela Rua da Estrada com olhos mais analíticos quando, na sua qualidade de geógrafo interessado pelas questões do urbanismo, participou numa operação integrada de desenvolvimento para o Vale do Ave. Associado ao estudo das questões do ordenamento do território, passou a olhar o conjunto de uma região, e não apenas a escala do espaço urbano tradicional. Descobriu, então, que essa rede de vias suburbanas, que cada vez mais seccionam a continuidade do território rural, mereciam um olhar mais atento. E passou a fotografar por onde passava e parava.

O convite para participar, no ano passado, nas iniciativas Quintas de Leitura e PechaKucha, no Porto, levou-o a encontrar uma linha de leitura performativa dessa realidade que vinha registando. O sucesso inesperado da sua proposta de análise levou-o a avançar para a edição em livro, em simultâneo com o desenvolvimento e integração do tema no seu trabalho universitário.

A seguir, Domingues vai avançar para A Rua do Caminho, a aplicação da mesma metodologia de análise ao mundo rural, que considera estar em vias de desaparecer - "mais uma geração e acaba", diz, notando como o tradicional mundo agrícola foi engolido pela economia. Em locais com agriculturas mais performativas, como o vinho do Porto e do Douro ou as estufas da Póvoa, já não estamos a falar com rurais mas com empresários, que ocuparam esse território. E isso vê-se da rua - seja da estrada, ou do caminho.

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