Também lhe chamam Faissal

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Abel Xavier representou 12 clubes em oito países diferentes Enric Vives-Rubio

O islão começou por ser uma curiosidade. "A fonética das rezas preenchia-me e dava-me bem-estar." Hoje é uma certeza. Abel Xavier cresceu como católico. Agora assumiu-se como muçulmano. E tem programada uma peregrinação a Meca. Por Marco Vaza

No início da concentração da selecção portuguesa de futebol que iria disputar o Euro 2000 na Bélgica e Holanda, Abel Xavier apareceu de cabelo e barba amarela. Foi um choque, mas era uma brincadeira. "Se calhar, naquela altura devia ter tido conselheiros de marketing", diz. Dez anos depois, o penteado pode ter mudado, mas a cor não. O cabelo continua amarelo e é como se fosse a cor natural. Quem esperava que a conversão ao islamismo lhe mudasse a casca enganou-se. "Aceito que sou uma contradição entre aquilo que se vê e aquilo que sou. Não irei mudar."

Há um mês, numa conferência de imprensa nos Emirados Árabes Unidos, Abel Xavier anunciava a sua nova fé, e o seu novo nome, Faissal. No domingo, num hotel em Sintra, um dos últimos "sobreviventes" da chamada "geração de ouro do futebol português" (estava na selecção que conquistou o título mundial de juniores em Portugal) confirmou o abandono da modalidade. Com os filhos atrás de si, e membros da família real dos Emirados a seu lado, assumiu-se perante os jornalistas portugueses como muçulmano.

Nos Emirados, todos o tratam por Faissal (nome de um rei árabe, que significa a espada que separa o bem e o mal), mas continua a responder por Abel Xavier. "Estavam a fazer os nomes das camisolas para o jogo contra a pobreza [realizado ontem no Estádio da Luz] e perguntaram-me: "Qual é o nome que queres?" Eu respondi Abel Xavier. Não é que queira ter duas identidades, mas quero também respeitar o meu passado como futebolista."

Há várias razões que podem motivar alguém a converter-se ao islão, quando este não faz parte da sua tradição religiosa, diz ao P2 o xeque David Munir, imã da Mesquita de Lisboa. "Através da convivência com muçulmanos, leram o Corão e identificaram-se com o que leram, ou pelo casamento", explica. Para Abel Xavier, a explicação passa por ter vividonuma sociedade muçulmana, na Turquia, quando jogou no Galatasaray em 2003. "Abalou a minha identidade, através da partilha, da comunicação. No futebol tive duas situações muito fortes, os meus castigos, que foram muito violentos, e foi no mundo muçulmano que encontrei a reacção justa, o equilíbrio justo."

Pais católicos

Abel Luís da Silva Costa Xavier nasceu em Nampula, Moçambique, a 30 de Novembro de 1972 e, com três anos, veio para Portugal. No que à religião dizia respeito, seguiu a fé dos pais, católicos, apesar de não ter sido baptizado. "Até um determinado momento, fui um praticante activo. Ia à igreja, frequentava a catequese. Estava bem enraizada na minha família", recorda, assumindo que parte da sua família, mais afastada, é muçulmana - são os que vivem em Moçambique, um país, refere, com "20 milhões de habitantes, dos quais seis milhões são muçulmanos".

O futebol deu entretanto outra independência ao adolescente Abel, que, depois de começar nos escalões de formação do Sporting, foi para o Estrela da Amadora. "Queria ser profissional e lutava contra a minha família, porque aos 15 anos não se adivinhava que pudesse ter uma carreira capaz de dar algum conforto às famílias africanas - que preferiam uma profissão tipo arquitecto ou médico, nunca jogador de futebol." E a religião? "A partir daí, rezei sempre à minha maneira, fui um crente à minha maneira."

Se há 20 anos encontrou resistência da família para ser futebolista, agora não teve qualquer atrito por ter optado pelo islão. "Responderam da melhor forma, porque aceitaram, simplesmente. Tive uma chamada que me comoveu bastante, da minha avó, católica, que apoiou a minha decisão."

E os filhos Lucas (7 anos) e David (16)? "O que eu quero é que os meus filhos tenham oportunidade - através da minha vivência e daquilo que eu lhes posso dizer - e capacidade para entender determinadas coisas para que depois eles também possam decidir. Mas sou o mesmo pai, com os mesmos gostos, com o mesmo carinho por eles e o mesmo amor."

Novos hábitos

Em 20 anos de carreira, Xavier representou 12 clubes em oito países diferentes. Depois do Estrela e do título de juniores, foi para o Benfica e, em 1995, iniciou o seu longo percurso por clubes estrangeiros: Bari, Oviedo, PSV Eindhoven, Everton, Liverpool, Galatasaray, Hannover, Roma, Middlesbrough e Los Angeles Galaxy, onde coabitou com David Beckham. Fala seis línguas (português, inglês, castelhano, italiano, francês e holandês) e tem um conhecimento mais alargado do que a maioria sobre diferentes hábitos e culturas - e um contacto directo com as estrelas do cinema em Hollywood, no período em que esteve em Los Angeles.

Confessa que sempre teve um fascínio pelo mundo árabe. "Começou pela curiosidade. Havia coisas que não compreendia e que agora compreendo melhor, tentava perceber a língua e não entendia, mas a fonética das rezas preenchia-me e dava-me bem-estar, e eu não percebia porquê."

Há alguns hábitos que terá de ganhar como muçulmano, a começar pelos cinco momentos diários em que terá de rezar. "Se tenho tempo de jogar 90 minutos, tenho tempo para fazer 16 minutos de rezas por algo em que acredito", garante, revelando ainda que já tem planeada a sua peregrinação a Meca - que todos os muçulmanos devem fazer pelo menos uma vez na vida.

Álcool? "Não posso dizer que nunca bebi, já o fiz, mas sempre fui muito moderado, também por causa da minha carreira. Vou manter a minha linha de saber estar e de ter um comportamento correcto nos respectivos lugares." Casamento entre pessoas do mesmo sexo? "Temos de saber aceitar, no mundo há um espaço para todos."

Para Abel Xavier, que irá dividir o seu tempo entre Portugal, Emirados e os EUA, abraçar a religião islâmica é também a oportunidade de se envolver em causas humanitárias: "Se eu já dei a minha imagem para diversas outras causas, penso que posso usá-la para iniciativas que causem impacto em milhões de pessoas. Estou aberto a cooperar com causas justas."

A mão de Henry

Pausa na religião para falar de futebol, um mundo a que não pensa regressar tão cedo. E a mão de Thierry Henry que no ano passado deu a qualificação da França para o Mundial do próximo Verão na África do Sul, em prejuízo da República da Irlanda? "O tempo mete as coisas no seu devido lugar. O que é que a Irlanda levaria ao Mundial, quantos adeptos? A decisão fala por si..."

Há mais de nove anos, era Abel Xavier quem jogava a bola com mão na área da selecção portuguesa, numa meia-final do Euro 2000 com a França em Bruxelas. O árbitro marcou penálti, mas segundo o que Abel Xavier tem dito ao longo dos anos era um lance que nem ele nem o seu auxiliar conseguiriam ver. E acrescenta, rindo-se: "Eu sempre disse, se fosse francês, não era penálti. E não foi!"

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