Gardiner, um maestro entre o passado e o futuro

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O repertório do passado converteu-se numa espécie de música contemporânea, diz Gardiner Fotógrafo

O versátil maestro britânico acha que o movimento da música antiga deixou de ser uma actividade marginal para se tornar mainstream. Hoje, no Coliseu de Lisboa, dirige a Sinfónica de Londres e Maria João Pires num programa dedicado a Beethoven

O concerto desta noite no Coliseu de Lisboa apresenta uma combinação de luxo: a Orquestra Sinfónica de Londres e Maria João Pires apresentam-se sobre a direcção de Sir John Eliot Gardiner, um dos maiores vultos da direcção musical do nosso tempo, conhecido pela sua versatilidade e pelo seu importante papel no âmbito do movimento de revivificação da música antiga.

À semelhança de outros pioneiros desta corrente, como é o caso de Nikolaus Harnoncourt, Gardiner não ficou confinado ao universo das interpretações historicamente informadas em instrumentos de época, dirigindo frequentemente orquestras modernas de topo como as Filarmónicas de Viena e Berlim. O amplo repertório contempla quase todas as épocas da história da música, embora com ênfase nos períodos barroco, clássico e romântico, sendo ilustrado por uma discografia com cerca de 250 títulos.

O Concerto para Piano n.º 2 e a Sinfonia n.º 6 (Pastoral), de Beethoven, preenchem o programa que Gardiner vai dirigir no Coliseu no âmbito do ciclo Orquestras convidadas e em residência, da temporada Gulbenkian. Esta série substitui o antigo ciclo Grandes orquestras mundiais, incluindo a permanência mais prolongada em Lisboa de agrupamentos como a Orquestra de Câmara da Europa (com concertos a partir de 10 de Fevereiro) e a Orquestra Juvenil Gustav Mahler de modo a apresentarem mais do que um programa e a realizarem acções de formação. A presente actuação da Sinfónica de Londres no Coliseu é a que se aproxima mais do figurino do antigo ciclo.

A gravação da integral das sinfonias de Beethoven por Gardiner à frente da sua Orchestre Révolutionnaire et Romantique em 1994 foi um grande acontecimento, passando a constituir um dos grandes marcos da discografia beethoveniana. No entanto, o agrupamento em questão, fundado pelo maestro britânico em 1990, usa instrumentos de época e é uma formação especializada nas práticas de execução históricas, enquanto a Sinfónica de Londres toca em instrumentos modernos.

Projectos pedagógicos

Numa breve conversa telefónica, Gardiner explicou que neste caso "tentou encontrar uma via intermédia entre as duas tradições", o que exige "uma grande flexibilidade da parte dos instrumentistas" e do próprio maestro. Mas mostra-se satisfeito com os resultados. "Todos se interessam por compreender o que aprendemos através do uso dos instrumentos do tempo de Beethoven e tentam aplicar esses princípios aos seus próprios instrumentos." Trata-se de uma "colaboração muito frutuosa" que se traduz na aplicação de "diferentes formas de articulação, de enunciação dos fraseados, na redução do vibrato ou no incremento do uso do arco como meio de expressão".

O facto de Maria João Pires ser uma pianista que não se encontra ligada ao movimento das práticas de interpretação históricas "não é um problema" para o maestro, que já trabalhou outras vezes com ela e reconhece as suas afinidades com o estilo de Beethoven. "Cada vez que estamos perante um grupo de músicos - quer toquem com instrumentos antigos ou actuais - os grandes objectivos são os mesmos: fazer soar a música de forma imediata e de uma maneira tão fresca quanto possível." O maestro refere ainda que o movimento da música antiga está hoje mais próximo de nós. "Trouxe a música do passado de regresso aos nossos tempos. Em vez de ser algo distante e remoto, o repertório do passado converteu-se numa espécie de música contemporânea. Já não é uma actividade estranha, excêntrica ou marginal, tornou-se mainstream."

Gardiner foi o fundador do Coro Monteverdi em 1966 e da orquestra English Baroque Soloists em 1978, agrupamentos com os quais levou a cabo projectos tão importantes como o Bach Cantata Pilgrimage em 2000. Esta integral das cantatas de Bach, seguindo o ano litúrgico e interpretada em várias cidades europeias, seria registada pela etiqueta Soli Deo Gloria, fundada pelo próprio maestro. "Somos uma companhia muito pequena, mas as gravações têm vendido bem apesar da crise, bastante mais até do que quando trabalhava para grandes editoras como a Philips ou a Deutsche Grammophon."

Em paralelo com a sua formação musical, Gardiner estudou História no King"s College e chegou a fazer digressões ao Médio Oriente nos anos 60 com os coros de Oxford e Cambridge. Foi aluno de figuras tão proeminentes como o musicólogo Thurton Dart e a compositora e pedagoga francesa Nadia Boulanger. Em relação ao primeiro, realça "a aprendizagem muito analítica tendo em vista práticas de execução históricas" e a sua preocupação com o contexto social em que viveram os compositores. Dos ensinamentos de Boulanger destaca a reflexão acerca da "forma como ouvimos música, de como a analisamos e o questionamento do que significa ser intérprete".

Gardiner tem manifestado também um forte envolvimento com projectos pedagógicos. "Estive recentemente a trabalhar com a Guildhall School of Music and Drama. Foi uma colaboração com a Sinfónica de Londres, já que muitos dos seus instrumentistas são professores nessa escola. Dirigi a 5.ª Sinfonia, de Beethoven, num ensaio aberto que teve muito sucesso por parte do público e dos estudantes", conta. "O próximo projecto chama-se Take a bow e será em Paris, em Junho, novamente com a Sinfónica de Londres, e envolvendo alunos de instrumentos de cordas de diferentes níveis, dos principiantes aos mais avançados. Vamos montar um concerto com programa onde todos possam participar."

Orquestra Sinfónica de Londres

Maria João Pires (piano) Sir John Eliot Gardiner (direcção) Lisboa, Coliseu dos Recreios, hoje, às 21h00

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