Diz-me como vês Avatar e dir-te-ei quem és

Avatar está a caminho de ser o maior sucesso de bilheteira de sempre da história do cinema. Toda a gente tem uma opinião sobre ele. A direita americana e a Igreja Católica atacam-no. Cameron defende-se

Se houve coisa que Avatar provou, até agora, é que é à prova de crítica.

Com a sua epopeia espacial em três dimensões, James Cameron está à beira de ultrapassar o recorde de bilheteira estabelecido pelo seu próprio Titanic, em 1998, e em significativamente menos tempo.

Os números, medidos em dólares, são colossais: ao fim de pouco mais de um mês de exibição, estamos a falar de 553 milhões de dólares de receitas (390 milhões de euros) nos EUA e Canadá; 1,29 milhares de milhões de dólares (911 milhares de milhões de euros) internacionalmente. Titanic fez 600 milhões nos EUA e 1,24 milhares de milhões internacionalmente em toda a sua carreira.

De pouco serve apontar que o preço dos bilhetes de cinema era mais barato há 12 anos ou que a projecção em 3D implica uma sobretaxa nos bilhetes cobrada pelos exibidores, levando a que Titanic tenha vendido 125 milhões de bilhetes nos EUA contra apenas 70 milhões de Avatar - por esta altura, Avatar já terá batido Titanic em termos de receitas (e se não tiver batido, pouco falta...).

Em Portugal, os números são igualmente notáveis: segundo as informações fornecidas pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, Avatar levava a 20 de Janeiro 780 mil bilhetes vendidos e quatro milhões e meio de euros de receita bruta. Ao P2, fonte da distribuidora Castello Lopes admitiu que o "número mágico" do milhão está ao alcance - embora o milhão e meio de bilhetes de Titanic ainda esteja longe, já ninguém arrisca previsões. E, cá como lá, já ninguém sabe onde o filme vai parar: Avatar ganhou na semana passada os Globos de Ouro de Melhor Filme e Melhor Realizador, o que pode lançar o filme para uma maior proeminência nos Óscares do que era até aqui previsível.

É o tipo de êxito literalmente à prova de crítica - embora Avatar tenha sido razoavelmente bem recebido pela crítica internacional. Melhor nos EUA (onde até os proverbialmente taciturnos críticos da New Yorker, David Denby, e do New York Times (NYT), Manohla Dargis, elogiaram a ambição de Cameron) do que na Europa (onde muitos críticos, provenientes da "escola francesa" dos autores, manifestaram a sua desilusão com a simplicidade da história e do argumento) e particularmente em Portugal, levando por exemplo a debates acalorados nas páginas de comentários do site do PÚBLICO.

Tudo isto confirmando que Avatar já ultrapassou o mero estatuto de filme do momento para se tornar num fenómeno global transversal, sobre a qual toda a gente tem uma opinião e não hesita em exprimi-la.

Nos EUA, Avatar tem sido arrasado pelos comentadores de direita, que já de si costumam estar agastados com o que consideram ser a tendência liberal, pró-democrática, de Hollywood.

Antiamericanismo puro

Numa América dividida entre a direita conservadora e a esquerda liberal, isto leva, por exemplo, John Podhoretz, antigo assessor dos presidentes Ronald Reagan e George Bush, consultor da série Os Homens do Presidente e comentador da revista conservadora The Weekly Standard, a dizer que Avatar é "um épico verde sobre a destruição do ambiente e um ataque à guerra do Iraque...". E mais: "[Que] a conclusão [do filme] pede à audiência que torça pela morte de soldados americanos às mãos de insurgentes. É uma espécie de expressão profunda de antiamericanismo".

E a advogada e colunista ultraconservadora Debbie Schlussel considerou o filme "cinema para a turma que odeia a América", comparando o filme de Cameron com os trabalhos do linguista Noam Chomsky ou os discursos do Presidente venezuelano Hugo Chávez.

Não terá ajudado muito o facto de Evo Morales, presidente da Bolívia e um dos seguidores mais visíveis da doutrina de Chávez, ter declarado publicamente a sua identificação profunda com os valores ecologistas de Avatar, nos quais viu um "paralelismo com a sua luta pela protecção da Mãe Terra" e contra o capitalismo.

Também na China, onde o filme bateu igualmente recordes de bilheteira, o épico 3D tem criado polémica. A luta dos alienígenas Na"vi contra os "invasores" terrestres que querem explorar os recursos minerais do planeta Pandora é vista como uma metáfora dos chineses que foram expulsos das suas terras para que os governos locais pudessem investir no imobiliário.

Não faltam aqueles que lêem esse como o principal motivo para as autoridades chineses retirarem o filme de cartaz esta semana, substituindo-o por uma biografia do filósofo Confúcio. Mas os observadores asiáticos lembram que há quotas estritas na China para os filmes estrangeiros (só podem ser exibidos 20 por ano) e só as cópias em projecção normal estão a sair de cartaz, com as 900 cópias 3D a continuarem em exibição, confirmando que se trata apenas de uma retirada circunstancial devida à proximidade do Novo Ano chinês, período reservado à estreia de grandes filmes locais.

Evangelho segundo James

A complicar a coisa aparece também a Igreja Católica, que no seu jornal oficial, L"Osservatore Romano, pela voz do crítico Gaetano Vallini, considerou o filme "uma parábola anti-imperialista e antimilitarista simplista", cuja mensagem ecológica se "atola num espiritualismo ligado ao culto da natureza". Mais um ponto contra também junto dos conservadores americanos, que têm tendência a serem cristãos praticantes e devotos e que não terão ficado entusiasmados com o que Ross Douthat, colunista do NYT, definiu como uma apologia do panteísmo, "o evangelho segundo James". David Outten, no site cristão Movieguide.org, definiu o filme como uma promoção do animismo sobre o monoteísmo, dramatizando em excesso a possibilidade de uma catástrofe ambiental.

No entanto, Gaetano Vallini confessou ao diário New York Times que a sua crítica foi sobrevalorizada por ter sido publicada no órgão oficial da Santa Sé. Em declarações recolhidas por Gaia Pianigiani, disse não haver intenções de promover qualquer tipo de agenda política, apenas de comentar o filme que estava nas bocas do mundo.

O que se enquadra perfeitamente no que a jornalista da revista Time Rebecca Winters Keegan, autora de uma biografia de James Cameron recém-publicada, The Futurist, disse também ao NYT: "Algumas das leituras que as pessoas têm feito de Avatar enquadram-se nas intenções de Cameron, e outras são apenas resultado daquilo que as pessoas estão a pensar. Tornou-se uma espécie de teste de Rorschach dos nossos interesses e ansiedades pessoais", numa referência ao teste psicológico onde uma série de borrões são mostrados a uma pessoa para depois tirar conclusões a partir do que ela vê neles.

De certo modo, o próprio Cameron "convidou" a este tipo de leituras ao defender o filme, aquando da sua estreia, como uma "metáfora sobre o modo como tratamos o mundo natural", mesmo que não necessariamente politizada. E, numa entrevista publicada na mesma altura no diário norte-americano, não se esquivou às aparentes contradições do seu pensamento: "Tenho uma reverência absoluta pelos homens que têm um sentido de dever, que têm coragem. Mas também sou um filho dos anos 1960. Parte de mim quer pôr uma flor no cano da espingarda. Acredito na paz através do poder de fogo superior, mas por outro lado abomino o abuso do poder e o imperialismo disfarçado de patriotismo. Algumas questões não podem ser levantadas sem que nos chamem antipatrióticos, mas acho mais patriótico questionar um sistema que precisa de ser escrutinado, senão voltamos ao império romano".

Achas para a fogueira dos comentadores conservadores que, para além de tudo o que já ficou atrás dito, estão irritados com o financiador do filme: a Twentieth Century-Fox, braço cinematográfico da News Corp. do magnata Rupert Murdoch, proprietária do Fox News Channel, canal de notícias muito identificado com o Partido Republicano e a direita americana. Avatar seria, então, uma espécie de "autogolo" da Fox, que teria financiado o "inimigo" liberal em nome do vil metal (muito embora o capitalismo seja um dos valores sagrados da direita conservadora).

No entanto, apostamos que Rupert Murdoch está a esfregar as mãos de contente. O que começou como uma aposta meio tresloucada tornou-se num gerador de dinheiro para os cofres da Fox e da News Corp., depois de Titanic ter feito o mesmo há exactamente 12 anos.

E enquanto se fala de Avatar desta maneira, as caixas registadoras continuam a fazer horas extraordinárias...

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