E das artes marciais se fez dança

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Ao coreógrafo belga Sidi Larbi Cherkaoui interessa também a tradição, aqui representada por 17 jovens monges

Cenário do artista plástico britânico Antony Gormley e, lá dentro, 17 jovens monges guerreiros Shaolin. O coreógrafo belga Sidi Larbi Cherkaoui esteve três meses no seu templo na China. Aprendeu que, quando se destrói, se está também a construir. Sutra, hoje e amanhã, às 21h

Podemos começar por aqui: pela imagem de um espectáculo que mergulha, apoteótico, sem vergonhas nem remorsos, em tudo aquilo que a nova dança europeia e os seus pensadores andaram décadas a desmontar.

Um corpo ligado ao chão contra um corpo que desafia o ar, um corpo que falha contra um corpo sem falhas, um corpo com voz própria contra um corpo silenciado, um corpo-pessoa, individual, específico, contra um corpo-técnica, normalizado, canónico. Falar de dança contemporânea norte-americana, por exemplo, seria construir toda uma outra história, mas na Europa virada contra as suas origens clássicas foi aqui que chegámos: a este corpo antiestóico, sujeito à força da gravidade, ao peso do mundo e do confronto com as suas regras, tanto as mais elevadas como as mais chãs.

Com uma ligação de sete anos aos Ballets C. De la B., o colectivo de coreógrafos e bailarinos criado pelo coreógrafo Alain Platel, Sidi Larbi Cherkaoui, que já em 2006 passou pelo Centro Cultural de Belém com Zero Degrees, é tudo menos um desconhecedor das estratégias e mecanismos por detrás desta realidade. Mas acredita que ensimesmar-se com os seus ideais leva a perdas profundas. Foi o que o levou a continuar a colaborar, sempre, com companhias ligadas a outras visões da dança.

"Aprecio muito a tradição. Não devemos ser escravos dela, mas devemos conhecê-la e preservá-la", diz-nos numa breve conversa telefónica.

No momento em que falamos, passaram-se já dois anos sobre a estreia de Sutra, em 2008, a peça com que regressa ao Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e que, entretanto, terá sido vista por mais de 65 mil pessoas numa megadigressão internacional em que embarcaram, como intérpretes, 17 jovens monges do templo Shaolin de Song Shan, o mais conhecido dos mosteiros da rede de templos da zona sagrada de Henan, na China.

Fundado no século V, o templo Shaolin de Song Shan é comummente tido como o berço da filosofia budista e da prática do kung fu (ainda que haja quem defenda a Índia como verdadeira origem de ambos).

"Uma das coisas que me interessava era perceber como o budismo funciona, as suas hierarquias e lógicas internas. Outra tinha a ver com o movimento, propriamente dito. O meu estilo é muito ligado à terra, de inspiração animal. O que os monges fazem [na prática das artes marciais] é muito similar. Imitam animais como o tigre ou a cobra. Aos olhos deles o movimento dos animais é o mais eficaz, o mais poderoso. Senti que podia aprender muito com eles", continua Sidi Larbi Cherkaoui.

Dança e kung fu

À sua chegada à China, em 2007 - haveria de regressar por três vezes, a culminar numa estadia de três meses -, Shi Yongxin, monge superior do templo de Song Shan, entregou-o a Yen Da, mestre dos monges guerreiros.

Em Song Shan há, no total, 200 monges. Só metade são praticantes de kung fu. Os outros têm outras tarefas e praticam outro tipo de movimento. "No fundo, Yen Da é um artista. Faz caligrafia, é músico... E ficou muito intrigado com o que seria um coreógrafo. Expliquei-lhe que o que fazia era organizar o movimento e tornou-se óbvio que tínhamos trocas a fazer, porque, no budismo, trata-se de fazer passar um tradição, mas também de ensinar a questionar."

O corpo não como um objecto, mas como um espaço dentro do qual ocorrem fenómenos: é uma das noções exploradas. "Tal como na dança, no kung fu é preciso imaginar, criar imagens mentais. É um processo muito criativo. Uma mão a tremer, aparentemente solta, no ar: no fundo, o que o praticante de kung fu está a visualizar é o momento em que torce o braço de um inimigo invisível... Depois, há nestes guerreiros uma forma de elegante lirismo. Fez-me pensar que também nós, no Ocidente, não devíamos ter medo da elegância", diz-nos ainda Sidi Larbi Cherkaoui. "O que aprendi no templo foi que, quando se destrói, se está a construir: está-se a construir espaço. Por exemplo, quando as torres gémeas caíram, surgiu espaço para os pássaros passarem a voar. Qualquer desconstrução é um prelúdio para a construção, tal como o caos é sempre uma forma de ordem por vir. Os monges percebem isso. Não precisaram de inventar essa noção: sabê-lo faz parte da sua herança."

Fala um homem que se desiludiu e voltou a encontrar um horizonte: "Por vezes, para mim, chegou a tornar-se triste estar na dança. Depois de sete anos com os las pessoas estavam constantemente a perguntar-me por que é que eu continuava a trabalhar com companhias como os Ballets de Monte Carlo. Como não? Não tenho medo de confrontar os meus limites. A verdade é que somos todos uma família. A Pina Bausch, que admiro profundamente, trabalhou com Kurt Jooss e Kurt Jooss com Laban. Estamos a viver uma era de grande individualismo em que procuramos "O" artista e esquecemos a herança de que todos vimos, mas, no fim do dia, estamos todos em palco a criar um ritual para outros."

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