A história (talvez) verdadeira de Newton e da maçã

É uma das anedotas científicas mais famosas de sempre e terá inspirado um dos maiores cientistas da História, Isaac Newton, na formulação da sua teoria da gravitação universal. Pela primeira vez, torna-se possível ler (on-line) o manuscrito que contém o relato que lhe deu origem Por Ana Gerschenfeld

Uma maçã cai da árvore debaixo da qual o grande físico britânico Isaac Newton (1642-1727) está deitado a contemplar o céu e a ponderar os mistérios da Natureza. Bate-lhe na cabeça e, nesse preciso instante, faz-se luz na mente do (ainda jovem mas já) sábio cientista e ele acaba por perceber as leis da atracção universal. Se nunca ouviu esta história, bastará fazer uma pesquisa de imagens no Google - por Newton e apple (ou por Newton e maçã, ou pomme, ou manzana, etc.) - para se convencer da sua popularidade: ainda hoje, continua a ser objecto de inúmeras caricaturas.

O episódio de Newton e da maçã terá acontecido em 1666, durante uma estadia do jovem físico na aldeia de Grantham, na casa onde nasceu. Anos mais tarde, em 1726, foi o próprio Newton, já no fim da vida, que a contou ao seu amigo e colega William Stukeley (1687-1765), antiquário e cientista conhecido pelos seus trabalhos sobre Stonehenge. Em 1752, Stukeley confiou por sua vez ao papel o relato de Newton, nas suas Memórias da Vida de Sir Isaac Newton, a primeira biografia do cientista a ter sido escrita.

Até anteontem, os arquivos da Royal Society britânica conservavam, arrumada numa prateleira provavelmente pouco acessível, esta obra que contém não só o original da celebérrima anedota da maçã, mas também episódios da vida de Newton que remontam mesmo aos dias em que andava ainda na escola. Mas agora, por ocasião do seu 350.º aniversário, essa venerável instituição sedeada em Londres decidiu tornar acessível on-line as quase 200 páginas do "frágil manuscrito de papel", na sua forma original, em http://www.royalsociety.org/Turning-the-Pages/.

A opção mais sofisticada ali proposta é uma visualização full 3D, com as páginas do livro a virar lentamente, ao ritmo dos toques do rato do nosso computador. Nesta modalidade, também é possível percorrer a obra mais depressa, pesquisar palavras, rodar as páginas ou fazer zoom sobre o texto. Menos ávido em recursos informáticos, um outro modo de visualização, o Silverlight, permite literalmente pegar na ponta das páginas com o cursor para folhear o livro.

Porém, para os que não têm paciência para este tipo de visualização virtual, existe uma versão simplificada, com comentários úteis à margem de certas páginas. É o caso da página 43, onde aparece em rodapé a nota seguinte: "A queda de uma maçã desencadeia um raciocínio que conduziu à publicação dos Principia Mathematica em 1687." (Diga-se de passagem que Newton descobriu que a força gravitacional que se exerce entre dois corpos celestes é inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa.)

Nessa página, Stukeley transcreve, com cuidada e legível caligrafia, o que Newton lhe contara a propósito da famosa fruta - relato que remonta a um dia de 1726 em que Stukeley e Newton tinham almoçado juntos: "A seguir ao almoço [no original, dinner refere-se à refeição feita a meio do dia], como o tempo era cálido, fomos para o jardim beber chá à sombra de umas macieiras. Estávamos só ele e eu. Entre outras coisas, ele disse-me que fora numa situação idêntica que, em tempos, a noção de gravitação lhe tinha vindo à mente. Por que é que [uma] maçã cai sempre perpendicularmente ao chão, pensara para si próprio, [incitado] pela queda de uma maçã enquanto se encontrava sentado numa disposição contemplativa. Por que não se desloca lateralmente, ou para cima, mas constantemente em direcção ao centro da Terra? É óbvio que a razão é que a maçã é atraída pela Terra. Deve existir uma força de atracção na matéria (...)"

Na cabeça de Newton?

A acreditar nas palavras do próprio Newton, portanto, a maçã nunca lhe terá batido na cabeça - não há no texto do seu biógrafo nada que o possa sugerir. Mas para além disso, também se pode questionar se a maçã existiu mesmo e se inspirou a meditação científica do grande homem.

É possível que, nos 60 anos que transcorreram entre o hipotético episódio "eureka!" de Newton e a sua reminiscência naquele dia, na presença de Stukeley, Newton tenha não só embelezado a história, como também se tenha convencido ele próprio da sua autenticidade. Já para não falar das alterações que poderão ter sido introduzidas pelo próprio Stukeley, que escreveu a biografia de Newton décadas depois dessa sua conversa com ele. "Os especialistas já sabiam de onde vinha a história da maçã", diz Keith Moore, responsável pela biblioteca e os arquivos da Royal Society, citado pelo jornal TheGuardian. "E é claramente uma anedota que Newton foi polindo."

No fundo, a maçã até pode ter existido e ter realmente batido na cabeça de Newton. Mas talvez ele tenha achado por bem esquecer esse pormenor por o considerar um tanto ridículo. Terá Newton pensado que a verdadeira-verdadeira história da maçã poderia um dia dar azo a uma série de brincadeiras e de representações cómicas da sua pessoa? Quem sabe... Seja como for, foi isso o que de facto aconteceu.

Nunca saberemos o que realmente se passou, mas apenas a versão que Newton quis deixar para a posteridade. Uma coisa é certa: Stukeley tinha visão de futuro. É que, embora admitisse que o seu relato "pudesse parecer trivial" - explica o site Web da Royal Society -, acreditava na importância do seu manuscrito enquanto matéria-prima para futuros biógrafos de Newton, "uma vez que a maior parte daqueles que o conheceram pessoalmente já não estão entre nós". A biografia de Stukeley, concorda Martin Rees, actual presidente da Royal Society, num comunicado, "é um precioso instrumento para os historiadores da ciência".

Robert Iliffe, da Universidade de Sussex, também citado por aquele diário britânico, salienta por seu lado que o manuscrito oferece em certos casos melhores informações do que qualquer outro documento sobre Newton como pessoa. Boa leitura!

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