Heterodoxia ortográfica
O PÚBLICO rejeita o acordo ortográfico. Como leitor deste jornal desde o início e como colaborador, discordo desta posição
Na semana passada, um editorial do PÚBLICO veio declarar que este jornal rejeita o acordo ortográfico estabelecido entre os países de língua portuguesa, pelo que continuará a seguir a antiga norma ortográfica (respeitando, porém, a liberdade de opção dos seus colaboradores). Como leitor deste jornal desde o início e como colaborador regular desde há mais de uma década, discordo desta posição (a que, aliás, não auguro grande duração), tanto mais que são improcedentes os argumentos que a sustentam.
Antes de mais, importa lembrar que se trata de um tratado internacional (acordado em 1990), que se tornou norma jurídica obrigatória nos países que o ratificaram juntamente com o protocolo adicional de 2004 respeitante à sua entrada em vigor, entre os quais se contam desde já o Brasil, Cabo Verde e Portugal (esperando-se que a breve trecho os demais países lusófonos o façam). Entre nós, sucede até que os tratados internacionais são de aplicação direta na ordem interna, sem necessidade de serem transpostos por lei nacional, e têm mesmo força superior às leis internas, que não os podem contrariar. Não estamos portanto perante uma simples recomendação ou orientação, sem força vinculativa, cujo seguimento fique à livre disposição dos destinatários. Tal como em relação às leis, a discordância não legitima o seu incumprimento.
A obrigatoriedade da reforma ortográfica da Língua Portuguesa vale desde logo para as publicações oficiais e para os serviços públicos, incluindo o ensino oficial (ou equiparado), de acordo com o calendário estabelecido pelas normas de implementação que sejam estabelecidas internamente. Embora nada impedisse que a reforma ortográfica seja tornada formalmente obrigatória para outros veículos institucionais da língua, nomeadamente os órgãos de comunicação social, não é provável que tal suceda. Todavia, compreende-se mal que os media não se considerem vinculados pela ortografia legalmente vigente. Independentemente da obrigação jurídica, há a responsabilidade social da imprensa. Se existe uma norma oficial, não se justifica que os órgãos de comunicação social contribuam para o estabelecimento de uma confusão duradoura em matéria ortográfica.
São conhecidos os argumentos dos opositores ao acordo ortográfico, mil vezes repetidos, mil vezes refutados. Obviamente, não há normas ortográficas incontroversas. A ortografia é sempre um compromisso. Todas as anteriores intervenções oficiais nas regras ortográficas, tanto as unilaterais (como a de 1911, que iniciou a divergência ortográfica entre o Português europeu e o Português do Brasil), como as internacionalmente acordadas, encontraram sempre opositores, seja em nome de um conservadorismo assumido, seja em nome de argumentos mais ou menos ponderosos.
Todavia, a atual reforma ortográfica pode reivindicar a seu favor dois fatores de que as anteriores não beneficiaram. Por um lado, desde a sua elaboração até à sua entrada em vigor, passando pela sua aprovação e ratificação, o acordo ortográfico levou mais de duas décadas de intensas discussões académicas e políticas. Nunca uma reforma ortográfica do Português foi tão intensamente nem tão duradouramente debatida como esta. Em segundo lugar, pela primeira vez, uma revisão ortográfica do Português envolveu desde a sua aprovação inicial todos os países que têm o Português como língua oficial - embora alguns ainda o não tenham ratificado internamente -, não sendo mais, como nos casos anteriores, uma medida unilateral de Portugal ou do Brasil, ou um acordo a dois. Isso traduz explicitamente o novo estatuto do Português como língua plurinacionalmente partilhada, sem donos nem senhores priv