Torne-se perito

A ingovernabilidade de Portugal na primeira década do século XXRetrato da Europa

Na primeira década do século XX o regime monárquico estava moribundo. A crise política e institucional agudizou-se com escândalos e com a bancarrota do Estado. O fim da monarquia afigurou-se inevitável. Mas a republicanização já começara há muitas décadas

Pouco mais de um mês após um dos episódios mais trágicos da história nacional do século XX - os assassinatos de Dom Carlos e do príncipe Luís Filipe -, Ramalho Ortigão publicou na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro um texto que retratava, segundo o autor, a decadência política e social que se arrastava pelo país há muitos anos.

O diagnóstico de Ortigão, que situava o regicídio no rol de consequências de um Portugal moribundo, começava por caricaturizar o período do rotativismo liberal, para, de seguida, traduzir aquilo que denominava como "decomposição da sociedade". "Nenhum dos dois partidos [Progressista e Regenerador] a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos", escreveu em Dom Carlos - o Martirizado (Ática).

Sobre a sociedade portuguesa, "lentamente, surdamente, progressivamente contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política", o escritor foi impiedoso: "A indisciplina geral, o progressivo rebaixamento dos carácteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições, o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo."

A ilustração, desgostosa e, ao mesmo tempo, indignada, é feita por alguém insuspeito. Porque Ramalho Ortigão não prestou tributo à República, como sublinhou numa carta dirigida a Teófilo Braga poucos dias depois da revolução republicana (5 de Outubro de 1910). E, recusando engrossar "o abjecto número de percevejos" que estavam a "cobrir o leito da governação", pediu demissão de bibliotecário da Biblioteca Real (tinha sido nomeado por D. Carlos) e exilou-se em Paris.

A leitura de Ortigão sobre o estado do país era, porém, consensual. Recolhia o mesmo entendimento por parte do rei, dos políticos monárquicos e dos republicanos. Os sintomas da crise que se abateu sobre a monarquia constitucional agudizaram-se a partir de 1900 (e culminaram, como se sabe, com a revolta armada de 5 de Outubro de 1910, que pôs fim a um regime multissecular) e foi precisamente na primeira década do século XX que os republicanos, sobretudo aqueles que estavam afectos ao Partido Republicano Português (PRP), desferiram ataques constantes à monarquia - sobretudo através da imprensa, das intervenções na Câmara dos Deputados e das tentativas de "incendiar" as ruas das grandes cidades com fortes acções de contestação.

Debelar a crise política

À crise do constitucionalismo monárquico liberal somaram-se o descontentamento social, a sucessão de escândalos (casos de corrupção, evasão fiscal e clientelismos que não podiam ter sido mais propícios à propaganda republicana), as crises económicas e financeiras que entorpeceram a acção governativa dos governos, a bancarrota do Estado.

A palavra ingovernabilidade soou alto ao longo do decénio. Assim como se tornou cada vez mais audível o questionamento sobre a importância da monarquia. Em 1906, D. Carlos tentou insuflar algum oxigénio no regime: deu por findo o rotativismo liberal e convidou João Franco, dissidente do Partido Regenerador e fundador do Partido Regenerador Liberal, a formar Governo. "Foi uma tentativa de restaurar os partidos. Além disso, Franco tinha a reputação de ser um homem honesto, não recaíam sobre ele suspeitas de corrupção. E tinha boas relações com os republicanos", nota o historiador Rui Ramos.

Esta iniciativa de recuperar a credibilidade das instituições constituiu uma das três fases fundamentais dos anos 1900-1910. José Miguel Sardica, historiador e autor de A Dupla Face do Franquismo na Crise da Monarquia Portuguesa (Cosmos), caracteriza da seguinte forma os três períodos: de 1900 a 1906 imperou o rotativismo, com os partidos Regenerador e Progressista a revesarem-se no poder; o franquismo governou entre Maio de 1906 e Fevereiro de 1908 (marcado pela intentona republicana de 28 de Janeiro de 1908 e pelo regicídio); e de Fevereiro de 1908 a Outubro de 1910 o reinado de D. Manuel II deu continuidade à instabilidade política, com a subida ao poder de seis executivos.

O confronto entre a anunciada "República ordeira" e uma monarquia decadente e submersa em escândalos foi beneficiado pelo ambiente de crise política que, segundo Joaquim Romero Magalhães, não sofreu atenuantes com a nomeação de João Franco. "Num regime de monarquia constitucional o rei deve ter um papel moderador, não deve estar implicado em qualquer partido. Poder-se-á dizer que o regime constitucional monárquico não foi bem interpretado em Portugal", afirma o historiador e autor do recentíssimo Vem aí a República. 1906-1910 (Almedina).

A decomposição do sistema traduz também uma crise de cultura política, acrescenta Maria Alice Samara, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa e especialista na Primeira República. "Tal como julgavam os republicanos, assistiu-se a um abastardamento do regime liberal. Os homens que estavam no Governo não representavam o povo, eram criaturas do rei. O ambiente de crise permite aos republicanos a apresentação de uma resposta nova, de uma regeneração, que é também feita com outras sensibilidades políticas", explica.

"Uma República com rei"

As características oligárquicas do rotativismo parlamentar, como aponta Fernando Rosas em História da Primeira República (Tinta da China), e o "crescente impasse das instituições" contribuem para empolamento, operado pelos republicanos, do conjunto de escândalos que marcaram a década. "Estes casos são uma espécie de bitola da degenerescência da situação", diz Luís Farinha, historiador e investigador do IHC. "Há escândalos de finais do século XIX que são resgatados porque o momento é propício. E outros, como o caso dos adiantamentos [ver texto ao lado], que era comum no século anterior, são agora alvo da contestação dos deputados republicanos", acrescenta.

Mas a oposição republicana também ganhou terreno na divisão que se acentuava entre os monárquicos, traduzida nas cisões partidárias, nota Alice Samara.

O historiador Rui Ramos entende, porém, que o regime tinha características republicanas - "dentro e fora o país era visto como uma República com rei" -, justificando assim a ausência da questão da defesa da monarquia. "A classe política não era monárquica, era liberal. E acreditava que, perante uma eventual mudança de regime, continuaria a governar. Por isso, desprezavam os republicanos. E não os consideravam suficientemente fortes e organizados", explica.

A incapacidade de formar um Governo estável (notória entre 1900 e 1906) sofreu apenas um intervalo durante o Executivo de João Franco. Mas o regicídio, que, segundo Ramos, "dessacralizou a própria monarquia", prolongou a instabilidade governativa - D. Manuel II, muito influenciado pela mãe, a rainha D. Amélia, "chamou para o poder os inimigos de D. Carlos" - e precipitou o fim inevitável do regime.

Em Outubro de 1910 as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano eram as excepções.1910

Em Outubro de 1910, as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano? eram as excepções.

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