Aventuras de Américo Rodrigues no interior encantado

"Cicatrizando" é o novo trabalho de Américo Rodrigues. Apresentou-o na Luzlinar, no Feital, Trancoso - um Portugal dito profundo que se recusa a parar

Foto
Adriano Miranda/PÚBLICO

A noite faz-se fria e não se vê vivalma nas apertadas ruas do Feital. A aldeia, no concelho de Trancoso, distrito da Guarda, não tem mais de 40 habitantes. Esperamos por algum sinal de actividade junto a uma antiga escola primária, com sinais de ter sido transformada em coisa nova, fiados que é ali a Luzlinar. Errámos (descobriremos mais tarde quem transformou a escola e em quê).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A noite faz-se fria e não se vê vivalma nas apertadas ruas do Feital. A aldeia, no concelho de Trancoso, distrito da Guarda, não tem mais de 40 habitantes. Esperamos por algum sinal de actividade junto a uma antiga escola primária, com sinais de ter sido transformada em coisa nova, fiados que é ali a Luzlinar. Errámos (descobriremos mais tarde quem transformou a escola e em quê).

Uma chamada telefónica para Américo Rodrigues põe-nos no trilho certo. Chegamos a um edifício entre o pavilhão e uma casa: eis-nos na Luzlinar, associação cultural onde Américo, actor, poeta sonoro e director do Teatro Municipal da Guarda, vai apresentar o seu novo disco, "Cicatrizando".

A Luzlinar é praticamente o único sinal de vida da aldeia neste fim de tarde de segunda-feira, 21 de Dezembro - não há um café ou supermercado no Feital, a junta de freguesia abre uma hora por semana. E é um projecto único no interior do país. Foi Maria Lino, pintora e escultora natural do Feital, que, em 2004, montou a Luzlinar (verbo criado por Alexandre O'Neill, num poema de 1969 dedicado à feitalense).

Américo Rodrigues, o primeiro presidente da associação, ajudou-a na burocracia. Mantiveram a ligação: são ambos parte de um Portugal dito profundo que recusa deixar de criar e pensar, mesmo quando tudo à volta parece parado. "As pessoas aqui não precisam de arte para nada. A arte não se come, não se bebe, não se mostra", confirma Maria Lino, 65 anos. "Como nasci aqui e tenho cá irmão, as pessoas tratam-me bem. Não entendem o que eu faço - o que é normal".

Maria voltou para o Feital em 1997, depois de 27 anos em Hamburgo, na Alemanha, onde ganhou relevância pública enquanto artista. Regressou porque precisava de mais espaço para as suas esculturas (encontrou-o numa antiga vacaria, transformada no ateliê Temos Tempo). E pelo que está à volta: "Gosto muito de estar no exterior. Também me ocupo das árvores, gosto de desenhar as pedras, faço esculturas lá fora".

Américo Rodrigues, 48 anos, nunca saiu do seu meio, a Guarda. Apresentar "Cicatrizando" na Luzlinar faz todo o sentido porque "a atitude é a mesma": fazer "algo do nosso tempo" a partir de "coisas desvalorizadas". "O disco parte de elementos da tradição popular. Fazia sentido apresentá-lo num sítio que se dedica à valorização dos elementos da terra, das origens e da identidade, misturando-os com formas contemporâneas de abordar essa tradição, essa raiz", diz.

O álbum, lançado pela Bosq-íman:os, a sua editora "caseira", é um conjunto de peças que resultam da manipulação de sons captados em "acções de poesia sonora". Américo anda de casa em casa a entregar "provérbios ao domicílio"; grita alcunhas do alto de uma penedia; canta cantigas de embalar dentro de água. Noutra peça, telefona para amigos e desconhecidos e lança-lhes adivinhas: "É uma coisa que parece tão distante da vida urbana... Há pessoas que estão a conduzir e respondem 'Sei a resposta, mas agora não posso responder', outras que dizem 'O que é que me interessa saber o que tanto está fora como dentro?'. Em alguns casos é quase uma provocação trazer algo das suas origens, da tradição popular, e questioná-las sobre isso", conta.

O que é que o Feital tem?

Na sala que faz a transição entre o ateliê (onde há grandes esculturas de madeira, quadros e ferramentas) e a casa de Maria Lino, há quem se aqueça à lareira, entre livros, bebidas, um garrafão de vinho e uma "Sagrada Família taliban" (as figuras do presépio com burqas), como lhe chama Maria.

Pelo espaço vêem-se sinais das actividades que a Luzlinar organiza regularmente. Maria Lino mostra-nos, orgulhosa, postais com imagens de retratos de Santa Margarida bordados por quatro mulheres do Feital. Está a pôr mulheres dos lares da terceira idade das redondezas a desenhar pela primeira vez. Nas paredes há cartazes dos simpósios internacionais de arte do Feital, residência artística bienal que se realiza desde 1995. 

Foi num desses simpósios, com artistas de toda a Europa, que Américo Rodrigues aprendeu, com um habitante da zona, como fazer trombones a partir de abóboras. "É magnífico porque cada tubo soa de forma diferente. Têm mesmo o som de trombone", explica. Fez uma recolha destes instrumentos populares usados pelas crianças de outros tempos, inventou uma orquestra de um homem só, com "cento e tal tubos gravando em pistas diferentes", e fez um disco, "Aorte Tocante" (2005).

Também Barbara Spielmann, um dos rostos da Luzlinar, nascida na Alemanha, encontrou no Feital algo de especial. "A solidão. Tenho uma vista que parece o mar", diz. Fala da vista para os campos que tem a partir da antiga escola primária, transformada em casa e ateliê, onde julgávamos ser a Luzlinar. Foi lá que decidiu ficar a viver depois de vir ao Feital para a bienal de 2006/2007, é lá que ocupa os dias a traduzir por gosto contos de ciganos. "Levanto-me sempre muito cedo para ver o sol levantar-se. Nunca me canso", revela. "Já sou feitalense. Elas [as outras moradoras] gostam de ver que eu trabalho a terra como elas. Trocamos legumes", prossegue. "Sinto que estou aqui há 100 anos".

Afinal, o Feital é maior do que uma aldeia de 40 habitantes: é um território reivindicado e apropriado por artistas de todo o mundo. Gente que ali trabalha ocasionalmente, como Américo Rodrigues, César Prata (outro membro da Luzlinar interessado em fazer a ponte entre tradição e a contemporaneidade, através da música, antes nos Chuchurumel, agora nos Assobio) e Carlos Fernandes (trabalha em teatro e cinema), ou que decidiu ficar, como Barbara e Maria.

Benzeduras e poemas nas pedras

A noite adianta-se e é hora de jantar na Luzlinar. Como é hábito nos encontros que a associação vai organizando, a refeição cabe a António Lino, engenheiro químico que tem a "cozinha criativa" como passatempo. A refeição inclui uma tarte de legumes com requeijão, cenouras e ervilhas e bacalhau com camarão e amêijoas.

O concerto vê-se de barriga satisfeita. Américo Rodrigues senta-se a uma secretária, debita orações a Santa Bárbara, uma receita de culinária, benzeduras e rezas (um terreno nem sempre beato: "Foge, foge veneno da cruz/Que lá vem o Menino Jesus/Com três facas amarelas/Se te apanha espeta-tas nas costelas"). É acompanhado por César Prata atrás de um Macintosh, um guitarrista, José Tavares, Victor Afonso (conhecido musicalmente por Kubik) na percussão e concertina e outros dois músicos. Um cão à solta observa a chinfrineira improvisada.

Convidar amigos para uma "jam" em torno das palavras da tradição foi a forma de Américo Rodrigues apresentar um trabalho que "não é um disco etnográfico" ou de "cultura popular", mesmo que "o ponto de partida seja aquilo a que chamamos a tradição oral". "Dediquei-me durante muitos anos a recolher esses elementos: romances, canções, provérbios. Só que no meu disco isso aparece transformado: a certa altura é uma massa sonora. O que me interessa é o som daquelas palavras", diz. Exemplifica com os provérbios. O conteúdo é o que menos lhe interessa, até porque discorda de muitos deles. "Li milhares e não encontrei nenhum que trate a mulher devidamente", diz. "Tenho um grande interesse pela subversão das tradições. Algumas delas devem ser preservadas, mas há outras que quero ajudar a destruir".

Muitas das acções sonoras que são a matéria-prima de "Cicatrizando" foram gravadas por César Prata, que andou de gravador atrás de Américo Rodrigues em túneis e coretos com "ressonâncias inacreditáveis", no mercado municipal da Guarda (onde Américo leu um romance antigo aos vendedores). Noutros casos, utilizou o seu próprio gravador a cassetes. "Andei com ele a gravar em todas as situações - no elevador, na casa de banho, a correr na rua, a entrar para uma reunião muito importante, na Sé Catedral durante uma missa - orações populares para obter graças distintas". Assim nasceu um dos temas, "Orações & confusões".

É este interesse pela terra e pelas origens que o levou, há alguns anos, a fazer um trabalho, nunca editado, em torno das formas de chamamento do gado ou, já neste ano, o "livro-objecto" "Escrevo Risco", sobre um pastor da aldeia de Vide Monte. O homem escrevia frases como "Passou hoje um bando de passarinhos", "morreu a mãe do António" e "hoje reguei batatas" nas pedras da aldeia. "Cobriu a aldeia toda com estas inscrições. Depois riscava e escrevia outra vez. É um palimpsesto. Há ali camadas e camadas sucessivas de inscrições. Aí está um artista contemporâneo, e, no entanto, é um pastor da Serra da Estrela. O Ernesto Melo e Castro, um histórico da poesia experimental em Portugal, disse-me: 'Esse pastor é um poeta visual!'. As coisas não se separam: aquele homem é um poeta, arranjou uma forma tremendamente contemporânea de se exprimir", afirma.

Histórias destas ajudam Américo Rodrigues a viver na Guarda, cidade com que mantém uma "relação amor-ódio" e onde "há muito pouca criação e massa crítica". É por isso que é actor, encenador, poeta sonoro e programador. "Preciso disso por uma questão de equilíbrio porque às vezes não é fácil viver numa terra como a Guarda. Para continuar a viver lá, tenho de manter este frenesim".