As guitarras de Paredes voltam a tocar em Coimbra

Carlos Paredes quis que três das suas guitarras, feitas pela família Grácio, fossem entregues à cidade onde nasceu. A mais antiga é de 1962

Volta e meia, ligam-lhe jornalistas, "até de Espanha". Querem saber se Gilberto Grácio fez uma guitarra especial para Carlos Paredes. Do outro lado da linha, o conhecido mestre, construtor de guitarras portuguesas, com oficina no Cacém, encolhe os ombros e garante que não. "Não era a guitarra que era diferente, eram as mãos." Para tocar como Paredes, já se disse, eram precisos mil dedos.

Três das guitarras construídas pela família Grácio para a família Paredes foram doadas pelo músico à cidade onde nasceu, Coimbra. A vontade, expressa em testamento, foi cumprida.

Até agora, os instrumentos estavam com o testamenteiro, advogado e amigo de longa data de Carlos Paredes, Levy Baptista. Desde quinta-feira - dia em que a entrega foi assinalada numa cerimónia em Coimbra -, estão guardados no museu municipal e deverão transitar, mais tarde, para a Torre d"Anto, que vai acolher um núcleo museológico dedicado à guitarra de Coimbra. Até Fevereiro, permanecerão em silêncio, mas nessa altura - e para recordar que Paredes nasceu a 16 de Fevereiro de 1925 - vão voltar a soar.

A ideia é esta, explica o advogado: "Ele deixou as guitarras a instituições que pudessem conservá-las, expô-las ao público, de maneira a preservar o carácter afectivo e artístico que este património tem." Na opinião de Levy Baptista, isso significa também que devem continuar a ser tocadas."Estão perfeitamente operacionais e nesta cidade é onde há mais guitarristas e cultores da guitarra de Coimbra. Fazia sentido mandar para cá guitarras que pudessem ser utilizadas. Seria uma pena ficarem aí paradas", continua, precisando que só agora se está a cumprir a vontade do músico, porque, desde logo, foi preciso fazer um "inventário" do que ele possuía.

Estamos a falar de guitarras que demoram 180 horas a fazer e que, a preços actuais, custam cerca de quatro mil euros. Gilberto Grácio já é o terceiro mestre de uma família dedicada ao ofício - primeiro o avô, depois o pai e agora ele, com 73 anos. Trabalha nisto desde os 12. Conhece cada milímetro das guitarras que estão em Coimbra. "Foram feitas para o pai do Carlos, o Artur Paredes. Quando o pai morreu, foi o Carlos que as herdou", diz o artífice que ainda constrói estes instrumentos e que, como nenhum dos filhos lhe seguiu as pisadas, está a ensinar "dois alunos" que têm oficina em Carnaxide.

Criar uma guitarra

A guitarra mais antiga doada a Coimbra remonta a 1962 e foi construída por João Pedro Grácio Júnior (pai de Gilberto Grácio). Uma outra - que Carlos Paredes usou mais vezes nos concertos e gravações - é de 1966 e também foi feita por ele. Mas já foi Gilberto Grácio quem construiu a que data de Outubro de 1967. "Eram guitarras portuguesas modelo de Coimbra. Há o modelo de Lisboa, que é o de caracol, e há o de Coimbra, que termina em lágrima, com um formato mais em pêra."

Este modelo nasceu, garante Gilberto Grácio, na oficina familiar, no Cacém: "O Artur Paredes costumava vir cá ver como é que as guitarras estavam a ser feitas. Era um bocadinho exigente, mas a exigência dele com o meu pai fez com que, juntos, fizessem a guitarra que hoje é a de Coimbra. Iam experimentando medidas dos braços, alturas dos trastes, toda a configuração..."

E Carlos Paredes? Também era assim exigente? "Não! O Carlos vinha buscá-la quando estava feita. Lá nisso, o trabalho estava sempre bem feito para ele. Quando era preciso reparar o instrumento, ele ia lá à oficina, experimentava, estava bem, pronto. Às vezes, nem experimentava! "Ai, isto está bom, isto está bom", dizia, e saía logo."

Um bom feitio que só perdia quando lhe diziam que tocava melhor do que o pai: "Não se lhe podia dizer isso. Zangava-se", conta Levy Baptista. Que acha, de facto, que o amigo "superou o pai". "Enquanto o pai se manteve muito fiel à guitarra de Coimbra, aqui da região do Baixo Mondego, Carlos Paredes reinventou-a. Fez uma guitarra própria. Perde o carácter regional e internacionaliza-se, passa a uma dimensão universal."

Também Amália "ficou perfeitamente transtornada" quando o ouviu: "Não fazia ideia que houvesse um guitarrista assim", recorda o advogado. A fadista quis que Paredes "ficasse como acompanhador dela", mas ele não aceitou. Tinham caminhos próprios para trilhar.

Paredes, que morreu em 2004, deixou nove guitarras. Seis estão em Lisboa (foram entregues ao Mosteiro dos Jerónimos, Museu da Cidade de Lisboa, Museu do Fado e Sociedade Portuguesa de Autores). Guitarras para as quais não servem "umas mãos quaisquer", sublinha Levy Baptista. Foram feitas para as de Artur e Carlos Paredes, "mãos grandes", em "sentido morfológico e artístico".

Carlos Paredes chegou a dizer: "O meu pai dizia que, quando morresse, queria que lhe partissem a guitarra e a enterrassem com ele. Eu desejaria fazer o mesmo. Se eu tiver de morrer, morrerá comigo a minha guitarra." Mudou de ideias e escolheu deixá-las a instituições que as preservassem e lhes dessem vida.

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