Torne-se perito

Os Ossos de que É Feita a Pedra, uma peça de arte pública que o público nunca irá ver

Foto
Um vídeo sobre o projecto é exibido hoje no Porto paulo pimenta

Peça de grupo português para a Cidade da Cultura da Galiza está fechada à chave numa sala desde o regresso do PP ao governo regional

Em Janeiro deste ano, o grupo de teatro Visões Úteis foi viver para a Cidade da Cultura da Galiza. Durante dois meses, os elementos da companhia trabalharam, no meio das máquinas e dos materiais de construção, na produção de Os Ossos de que É Feita a Pedra, o audiowalk - cruzamento entre as visitas "audioguiadas" disponíveis nos museus e uma peça de teatro em andamento - encomendado pela Fundação Cidade da Cultura, que cobriu integralmente os "avultados custos de produção" do projecto. Os Ossos de que É Feita a Pedra está pronto desde Março, mas desde o regresso ao governo regional do Partido Popular, depois de quatro anos de coligação entre socialistas e nacionalistas galegos, que o audiowalk está em stand-by, fechado à chave dentro de uma sala.

Hoje, no Porto, o Visões Úteis mostra o que Os Ossos de que É Feita a Pedra poderia ter sido se, tal como estava previsto, o audiowalk tivesse sido colocado à disposição do público em Abril, na sua versão em galego. Às 23h, na Gesto, a companhia faz a estreia do vídeo homónimo, realizado pelo italiano Michele Putortì a partir daquele trabalho de arte pública na paisagem, e inaugura a instalação Ossos, tentativa de partilhar o património imaterial deixado em Santiago. Não é o audiowalk, mas é a aproximação possível.

"Podemos promover o nosso trabalho, mostrá-lo e falar dele. Mas se o audiowalk não puder ser feito ali também não poderá ser feito em lado nenhum, porque é uma criação feita especificamente para aquele espaço", explica Carlos Costa, que fundou o Visões Úteis em 1994.

Contactada pelo PÚBLICO, a fundação adianta apenas que "a nova directora acaba de tomar posse" e que o audiowalk é uma entre muitas "questões pendentes, muitas das quais são bem mais urgentes": "De momento, não vai ser possível abrir o audiowalk ao público, mas não quer dizer que não se vá fazer mais adiante", nota Esperanza Guede Teixeira, secretária da administração, acrescentando que, na melhor das hipóteses, a Biblioteca Nacional e o Arquivo da Cidade da Cultura - os espaços intervencionados pelo Visões Úteis - abrirão as portas "em meados do próximo ano".

O facto de a obra ainda estar em curso era justamente um dos pontos de partida do audiowalk que a companhia propôs à fundação depois de uma reunião que o Instituto Galego de Desenvolvimento do Conhecimento promoveu com produtores, programadores e grupos de teatro do Norte de Portugal.

Choque cultural

"Primeiro fiquei horrorizada com a ideia de uma Cidade da Cultura fora da cidade, mas depois o contraste entre os corredores subterrâneos e o branco da arquitectura do Eisenman, as inclinações, a luz e o facto de aquilo ser um espaço muito estranho, uma terra de ninguém - porque o anterior governo regional, que tinha herdado o projecto, não sabia bem o que fazer com aquilo -, atraiu-nos imenso", lembra Catarina Martins, que representou o Visões Úteis nessa reunião.

Com as eleições regionais de Março, Os Ossos de que É Feita a Pedra ficou na gaveta: "Em 15 anos de trabalho, nunca nos aconteceu nada parecido. É um choque cultural: em Portugal estamos habituados a que haja um pacto institucional que faz com que o Estado continue a assumir os seus compromissos apesar das mudanças políticas; na Galiza, é normal que quando uma nova administração entra em funções haja uma ruptura total com a anterior - e a arte contemporânea é manifestamente um território em que o Partido Popular não está interessado", argumenta Carlos Costa. Nada a fazer, portanto, a não ser reflectir "sobre a relação entre a arte e os dinheiros públicos": "Os contribuintes galegos pagaram este trabalho, e agora ninguém o vê. É como se nunca tivesse existido".

Sugerir correcção