As três vidas do leão Christian

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O australiano John Rendall, 63 anos, esteve em Portugal para promover o livro dr

Cresceu, mimado, na fervilhante Londres da década de 1970. Regressou a África para viver em liberdade. Agora, é vedeta no YouTube. A história de Christian, o leão, contada por um dos homens que o criaram.

Diz-se dos gatos que têm sete vidas. Diz-se e não pensamos mais nisso. Mas a história do leão Christian dá-nos muito em que pensar. Ele teve "só" três vidas, mas a última pode durar para sempre, se os homens quiserem. Quase quatro décadas depois de ter começado, a aventura do grande gato que nunca esqueceu os seus "pais" humanos continua a emocionar gerações, perdura num parque nacional criado no Quénia e transformou-se num fenómeno no YouTube.

Christian nasceu na cidade, viveu em liberdade no seu meio natural e eternizou-se no que oNew York Times classificou como "um dos abraços mais comoventes de sempre na história do audiovisual". A inesperada popularidade do vídeo em que Christian reencontra, seis meses depois de ter sido deixado em liberdade no Quénia, os dois jovens que o criaram em Londres vem dar razão aos que vêem na sua história um extraordinário apelo à conservação da vida selvagem. E é também um hino à saudável convivência do homem com a Natureza.

Vamos aos factos. Christian nasceu em Inglaterra, em Agosto de 1969, filho de pai holandês e mãe israelita. Era o único macho de uma ninhada de quatro filhotes e, acredite-se ou não, foi posto à venda no Harrod"s, uma grande superfície comercial de Londres. Se a história já parece estranha contada assim, eis que entram em cena dois jovens australianos: Anthony Bourke e John Rendall, acabadinhos de chegar para se juntarem à "parada" de loucura e irreverência da capital britânica.

"Nessa altura havia tanta coisa para ver em Londres... basta olhar para o que se vestia na altura, roupas espalhafatosas, coloridas. Era o centro do mundo. Na música, havia os Beatles, os Rolling Stones, David Bowie, Eric Clapton; Vivienne Westwood ou Mary Quant, na moda; fotógrafos como David Bailey; actores da dimensão de Michael Caine; Tom Stoppard na escrita... Toda esta gente estava a quebrar barreiras, a ignorar oestablishment, a criar novos padrões. Em Londres, 1969, tudo podia acontecer." A descrição é de John Rendall, que passou por Portugal para promover a edição revista e aumentada do livroUm Leão Chamado Christian (ed. Presença).

Onde é que tudo isto se encaixa na vida de um leãozinho nascido a cinco gerações de África? Bom, para começar, ajuda a perceber por que razão estava um felino à venda num armazém popular. E também como foi possível a dois rapazes bem intencionados comprá-lo e criá-lo durante meses numa loja de mobílias de King"s Road, epicentro da "parada" londrina dessa fervilhante era. "Em 1973 tornou-se ilegal a posse de animais selvagens naqueles moldes - e muito bem", recorda John Rendall. "Mas na altura, que fosse do nosso conhecimento, havia quem tivesse tigres, um cerval ou um puma..."

Amor à primeira vistaA história começou com um passeio pela cidade. John e Anthony estiveram na Torre de Londres e depois entraram no Harrod"s, o popular armazém londrino onde tudo se pode encontrar. Até duas crias de leão. Um macho e uma fêmea, ela mais arisca, ele um paz de alma. "Tinha três meses, 17 quilos e era completamente irresistível, um verdadeiro peluche", lembra John Rendall, os olhos azuis ainda brilhando com a memória.

Com a simplicidade de duas crianças, eles apaixonam-se pelo minúsculo leãozinho. Não apenas pelo capricho de lhe pegar e fazer festinhas, mas porque se emocionaram com a vida de frustração em que, previsivelmente, se transformaria a existência de tão nobre animal.

"Decidimos comprá-lo. E assumir o compromisso de que, nos meses seguintes, encontraríamos uma solução para que ele crescesse num ambiente saudável e livre." Inscreveram-se na lista de interessados, convenceram os donos da loja onde trabalhavam, a Sophistocat, de que seria uma oportunidade extraordinária ter lá a viver um verdadeiro e sofisticado gato (dando uma nova dimensão ao trocadilho do nome do estabelecimento). Por estranho que possa parecer aos olhos "formatados" do século XXI, os proprietários aceitaram que um leão vivesse na sua cave e frequentasse a loja, o responsável de uma igreja vizinha autorizou que o bicharoco frequentasse o jardim fechado das instalações para se exercitar e o Harrod"s, vergado por tais argumentos, entregou o entretanto já "baptizado" Christian aos seus novos donos.

Diga-se que estes só o levaram consigo três semanas depois de acordada a transacção, embora o tivessem visitado diariamente durante todo esse interregno. Ao câmbio actual, Christian terá custado à volta de quatro mil euros. Mas é duvidoso que o Harrod"s tenha lucrado alguma coisa - uma noite, os dois leõezinhos escaparam da sua gaiola e entraram na zona das louças... "Venham buscá-lo amanhã", implorou uma voz ao telefone.

E então começou a era Christian em King"s Road. "Mal chegou, tornou-se logo parte da mobília. Ter um leãozinho na loja gerou entusiasmo, curiosidade, mas nada de parar o trânsito", explica John Rendall. Lá está, estava-se em Londres, na passagem dos anos 60 para os anos 70. Espantosamente, não só o juvenil felino se portava bastante bem, como os clientes (John Lennon era um deles, Mia Farrow também) não pareciam mostrar medo ou apreensão. Bem, havia excepções. George Lazenby, um dos menos conhecidos actores a dar corpo no cinema ao agente especial 007, nunca ganhou coragem para entrar na Sophistocat enquanto Christian por lá cirandou...

Quatro refeições por diaDeit1ado nas escadas em pose de rei da selva, escondido atrás dos móveis para simular ataques às pernas dos passantes, garbosamente espojado onde calhasse ou destruindo sem piedade cestos de vime, bonecos de peluche e tudo aquilo a que pudesse deitar o dente na cave onde tinha os seus aposentos nocturnos. Christian era uma vedeta da Sophistocat e de King"s Road - e esse estatuto não estava ao alcance de qualquer um.

Comia quatro vezes ao dia. E cresceu muito depressa. John e Anthony sabiam que era apenas uma questão de meses até que o seu leãozinho se tornasse grande de mais para viver na cidade. Apesar de muito bem educado, Christian não estava treinado, no sentido de fazer o que lhe diziam. Os seus "pais" humanos levavam-no a perceber os limites penalizando-o com ausências ou terminando abruptamente a brincadeira assim que o "gatinho" passava das marcas. "As pessoas achavam-lhe piada com 17 quilos, mas já não tanto quando ele pesava mais de 60...", recorda Rendall.

Na vida de Christian, há uma série de acasos que lhe foram abrindo portas. Eis outro: por esta altura, surge George Adamson, que, com a sua mulher na altura, Joy, inspirara o filmeUma Leoa Chamada Elsa. George ouviu falar de Christian, que entretanto já aparecera em anúncios e reportagens na TV, rádio e jornais, e achou que um leão nascido na quinta geração de cativeiro era um excelente objecto de estudo para o seu trabalho de reintrodução dos grandes felinos no meio natural.

A ideia era levar o jovem leão urbano para o Quénia e juntá-lo a um grupo que seria libertado numa zona especialmente escolhida para levar avante a experiência. "Nunca teríamos imaginado um cenário tão bom para Christian: o seu futuro seria de absoluta liberdade, na terra de onde os seus antepassados tinham vindo", comenta John Rendall. Ele e Anthony Bourke aderem imediatamente ao projecto.

Num dia de Agosto de 1970, três jovens guedelhudos - John e Anthony com as longas cabeleiras então na moda e Christian com uma juba adequada ao tempo frio de Londres, mas completamente excessiva para os calores de África (as almofadas das patas também não estavam preparadas para as agruras dos solos africanos, mas isso já é outra história) - desembarcaram no aeroporto de Nairobi, capital do Quénia. À sua espera estava George Adamson, mais confiante nos instintos do leão do que nas qualidades dos seus dois acompanhantes humanos, conforme confessa no prefácio do livroUm Leão Chamado Christian. Todos os passos são registados por uma equipa de filmagens, para a produção de um documentário.

O abraço que correu mundoOs primeiros tempos na região de Kora não foram fáceis. Christian estava habituado à ideia de ser o centro do mundo, mas teve de refazer os seus conceitos de vida quando se viu frente a Boy, um leão adulto de sete anos que deveria ser o chefe do futuro clã. "Depois de Christian ter dado sinais claros de submissão, promoveu-se o encontro físico dos dois. Foi aterrador, porque um leão mais novo que não reaja como deve acaba morto...", recorda John Rendall. Mas tudo correu bem e, à medida que a ambientação dos felinos ao novo meio, vigiada por George Adamson, dava passos decisivos, John e Anthony voltaram para Londres.

O seu primeiro regresso a Kora, novamente acompanhados pela equipa de imagem, foi uma jornada emotiva e enternecedora, que as câmaras registaram e o YouTube popularizou recentemente para lá de tudo o que seria imaginável. John Rendall: "George foi à frente para indicar a Christian que podia aproximar-se. E ele veio, curioso, confiante, descendo pelas pedras. Percebia-se que não se preparava para atacar, nós conhecíamos a sua linguagem corporal, nunca sentimos medo. Quando o chamámos, começou a correr e atirou-se a nós, louco de alegria. Corria de um para outro, abraçava-nos. Um bicho de 150 quilos a 50 quilómetros por hora... tivemos de nos agarrar bem", ri-se.

É este o momento mágico. O reencontro de grandes amigos, o incrível abraço de um leão aos seus "pais" humanos, a "perturbadora experiência de ver as leoas que viviam com Christian, e que eram selvagens", a roçarem-se também nos visitantes humanos... Dezenas de milhões de pessoas já viram estas comoventes imagens de 1971 (basta pesquisar no YouTube em "Christian the lion") e elas tornam desnecessárias mais palavras.

Já com 250 quilos de peso, Christian recebeu novamente com alegria os seus "pais" no ano seguinte. Estava a caminho dos quatro anos de idade, acasalara com fêmeas selvagens, adaptara-se de tal forma à sua nova vida que parecia sempre ansioso por partir. E partiu, migrando para outro território. Supõe-se, por ausência de informações em contrário, que tenha vivido a década seguinte deambulando pela savana africana. É essa a longevidade previsível de um leão em meio natural.

Hoje, a história de Christian torna-se ainda mais actual do que quando aconteceu. "É uma história velha com uma relevância incrível na actualidade", comenta John Rendall. Os alertas de George Adamson para a necessidade de proteger as espécies ameaçadas e os seushabitats pareciam alarmistas há 40 anos, agora estão na ordem do dia e são o campo de batalha de homens como Rendall e de organizações como o George Adamson Wildlife Preservation Trust, que ele representa.

No mesmo ano em que Christian deixou Tora rumo a Norte, a zona foi classificada como Parque Natural. Os registos de Adamson, assassinado por caçadores furtivos em 1989, ajudam hoje todos os que se dedicam à reintrodução de animais de cativeiro na Natureza. John Rendall, que está a viajar pelo mundo promovendo a nova versão do livro escrito em 1971, revela que este foi também adaptado para o ensino do Inglês nas escolas. "É mais uma herança extraordinária de Christian."

Quatro décadas depois, assistimos à terceira vida do leãozinho que cresceu na cidade, reinou na Natureza e um dia abraçou dois amigos após uma longa separação. É esta a magia das coisas simples.a

luis.francisco@publico.ptlevar avante a experiência. "Nunca teríamos imaginado um cenário tão bom para Christian: o seu futuro seria de absoluta liberdade, na terra de onde os seus antepassados tinham vindo", comenta John Rendall. Ele e Anthony Bourke aderem imediatamente ao projecto.

Num dia de Agosto de 1970, três jovens guedelhudos - John e Anthony com as longas cabeleiras então na moda e Christian com uma juba adequada ao tempo frio de Londres, mas completamente excessiva para os calores de África (as almofadas das patas também não estavam preparadas para as agruras dos solos africanos, mas isso já é outra história) - desembarcaram no aeroporto de Nairobi, capital do Quénia. À sua espera estava George Adamson, mais confiante nos instintos do leão do que nas qualidades dos seus dois acompanhantes humanos, conforme confessa no prefácio do livroUm Leão Chamado Christian. Todos os passos são registados por uma equipa de filmagens, para a produção de um documentário.

O abraço que correu mundoOs primeiros tempos na região de Kora não foram fáceis. Christian estava habituado à ideia de ser o centro do mundo, mas teve de refazer os seus conceitos de vida quando se viu frente a Boy, um leão adulto de sete anos que deveria ser o chefe do futuro clã. "Depois de Christian ter dado sinais claros de submissão, promoveu-se o encontro físico dos dois. Foi aterrador, porque um leão mais novo que não reaja como deve acaba morto...", recorda John Rendall. Mas tudo correu bem e, à medida que a

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