Memórias nos 50 anos doTelejornalÀ volta dos dois grandes casos

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Telejornal completa meio século. O mais antigo programa da TV portuguesa é dos mais vistos e o mais importante na programação. Durante décadas, não se guardaram as emissões; não se concebia que conteúdos televisivos viessem a considerar-se património. Sobram pedaços, os textos - e as memórias dos espectadores. Seria interessante recuperá-las. Aqui deixo as minhas.

Recordo-me doTelejornaldesde o início dos anos 60. Lembro-me de genéricos e dos apresentadores de papéis nas mãos; do preto e branco, do dispositivo cénico, da música, do tom, do estilo noticioso, da retórica, da prosódia das vozesoff. Na minha família, dos avós aos netos, entre silenciosos, críticos e opositores do regime, não se ligava aoTelejornal, passava-se bem sem ele; não dizia nada; era a voz do regime. Lia-se jornais: de manhã um pró-regime,DNeSéculo(não havia outros), à tarde um da oposição,Diário de LisboaouRepública.

Os apresentadores do Telejornal, como Gomes Ferreira e Henrique Mendes, eram carrancudos como o regime; ou pomposos, como Manoel Caetano. João Coito, comentador do regime, soava-me estranho porque, além do sotaque beirão, falava em cifra: mesmo para defender o fascismo, era preciso ocultar-se ideias e factos. Em Paris, o correspondente doTelejornal, José Augusto, parecia-me pedante, mas cosmopolita, gravando com a Torre Eiffel em fundo.

Havia limitações técnicas, como em todo o mundo. Os segmentos de imagens eram em filme e quase sem som, ou porque não era recolhido, ou porque se omitia: mesmo os protagonistas do regime apareciam muitas vezes sem som local, nas repetidas inaugurações de obras públicas (a coisa não é de hoje). Em vez das vozes, ouviam-se sempre os mesmos extractos da Sinfonia à Pátria, de Viana da Mota, e doutra empolgação musical da mesma época. OTelejornalcortava o pio aos próprios fascistas: o controlo político do discurso fazia-se pelo texto lido pelos apresentadores ou pela vozoff(daí a proeza da sérieGuerra, de J. Furtado, reunindo imagens da RTP sem som aos respectivos sons originais captados pela Emissora Nacional).

O Telejornal foi fascista nas notícias que deu e nas que não deu (cheias, oposição, guerra em África, etc.). Noutros países, os noticiários também eram retratos de poderes fortes, mas havia democracia e liberdade de imprensa.

Antes do 25 de Abril, ainda adolescente, o Telejornalera para mim um noticiário do poder político, emanando dele directamente. Como acontecia com quem se opunha ou no mínimo discordava do regime, as notícias diziam-me o contrário do que lá estava. Se o Telejornal dizia X, a verdade era Y ou Z. OTelejornal não era para mim uma janela para o mundo, mas uma janela com grades.

Até 1974, não houve abertura política na RTP, apenas uma alteração de tom, sentida desde o Zip-Zip. O povo chegou por aí e pelo desporto. Eu tive os meus segundos de glória, ao participar na invasão do rinque do Pavilhão dos Desportos, em 1971, quando Portugal foi campeão europeu de hóquei em patins depois de ganhar à Suíça. A RTP mostrou a bandeirola que abrimos no final: "Paço de Arcos saúda o vencedor".

Os noticiários abriram-se a temas um pouco menos oficiais ou oficiosos, houve algumas reportagens com vox populi, o que representava a audição de cidadãos comuns. Lembro-me de uma reportagem noTelejornal sobre engarrafamentos na Baixa, que entrevistou a minha tia e madrinha, Pilar Levy, ao volante, enquanto esperava que o trânsito andasse na Rua do Ouro.

A gente vulgar ia entrando na TV, mas nos noticiários a política era imutável. E, à parte breves períodos, continuou a ser o mesmo instrumento do poder político desde 1974 até hoje, ao serviço de governos do MFA, PC, PS, PSD e CDS. Sendo um dos principais instrumentos da propaganda e da comunicação do Governo, mais valia que esse defeito de nascença fosse inscrito na Constituição da República, para não haver confusões, ocultações e hipocrisias: "Art.1º - O Governo da República é proprietário do Telejornal, decidindo a agenda, o alinhamento, o tom, a duração, a montagem e o texto".ERC tomou esta semana a única decisão possível sobre a proibição do jornal Nacional de 6ª pela administração da TVI: ilegal. Decerto os donos da TVI sabiam o que estavam a fazer; mas, por intervenção de Madrid, agiam notiming certo para o Governo português: antes das eleições, para impedir surpresas às sextas, incluindo no último dia de campanha, e se possível para sempre.

Todavia, a decisão da ERC está rodeada de hipocrisia e não belisca os objectivos do Governo. A ERC abrira o caminho à decisão ilegal da administração da TVI ao condenar em Maio o "estilo" do JN6ª, numa intromissão injustificável no carácter editorial de um programa de TV, mas necessária para criar espaço à proibição do noticiário pela Prisa-TVI. Agora, a deliberação da ERC, que urgia, chegou quando consumado o processo eleitoral. Quer dizer, uma ilegalidade que influenciou o voto não foi contrariada em tempo pela ERC, assim favorecendo segunda vez quem beneficiou da proibição: o partido do Governo.

Em resumo: a ilegalidade era tão brutal e evidente que a ERC não podia decidir de outro modo; mas agindo em Maio e não agindo antes das eleições, a ERC fez os possíveis por beneficiar o partido do Governo. O mal está feito.

Outro caso: o Prós e Contras. Tal como oTelejornal, este programa é, na minha opinião, um importante instrumento da estratégia e da táctica concreta de comunicação da central de propaganda governamental. Mas, no programa de segunda-feira, 12.10, autodesmascarou-se. A edição foi toda construída como armadilha ao director do PÚBLICO e para ligar o jornal a "disparates de Verão" de Belém e a "encomendas" de notícias. Disfarçar-se-ia com temas anódinos e estafados (sondagens, etc.), apenas para se centrar no caso da vigilância.

Mas aconteceu a beleza do directo. A RTP (a central de propaganda do Governo?) contava com uma posição do director do Expressoque não veio a confirmar-se. Em Agosto, Henrique Monteiro tinha sido mais crítico com o PÚBLICO e escarneceu com a possibilidade de vigilância. OExpressousou em manchete uma expressão derivada da posição então assumida por Sócrates:sillygate. Entretanto, oExpressoinvestigou o assunto. E uma "fonte política" (que presumo do Governo ou do PS) tentou passar aoExpressoo famigeradoe-mailentre jornalistas do PÚBLICO. OExpressoter-se-á apercebido, entretanto, da montagem de uma acção de envenenamento pela propaganda mentirosa. Mas a central do Governo e a RTP não devem ter notado a alteração de posição do director doExpresso.

Resultado: além de José Manuel Fernandes ter desmentido uma série de mentiras que a apresentadora queria fazer passar como factos e ter reposto a essência jornalística do trabalho do PÚBLICO em 18 e 19 de Agosto, o director do Expressorevelou em directo para todo o país que foi uma "fonte política" quem tentou plantar oe-mailnoExpressoe que, não o conseguindo, o passou para oDN, sempre pronto a fazer fretes ao poder.

A apresentadora do Prós e Contrase o director de Informação da RTP ainda tentaram salvar as posições da propaganda governamental, mas a intervenção de Monteiro, não cumprindo o papel que aqueles esperavam dele, estragou a jogada. Pela primeira vez em anos, oPrós e Contrasnão conseguiu servir cabalmente a propaganda do Governo e, pelo contrário, viu desmoronar-se a cabala e revelar-se a sua natureza abjecta.

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