Torne-se perito

Quando o moderador se irrita...

Presidentes e primeiros-ministros em colisão

A tensão faz parte do sistema semipresidencial. Com altos e baixos, há trocas de acusações mais ou menos azedas. Em mais de 30 anos de democracia, a coabitação do Presidente, moderador e árbitro do regime, com o Governo tem tido grandes momentos de crise.

António Ramalho Eanes (1976-1986)- De todos os primeiros-ministros da época, Mário Soares (PS), Francisco Sá Carneiro e Pinto Balsemão (PSD) tiveram muitas queixas de Ramalho Eanes. A troca de acusações chegou a azedar. O líder histórico socialista denunciou a presidencialização do regime e abriu uma cisão no PS, recusando o apoio à recandidatura de Eanes. Sá Carneiro apostou tudo no afastamento de Eanes nas presidenciais de 1980, a que já não assistiu (morreu três dias antes, a 4 de Dezembro). Mas o episódio mais grave aconteceu com Francisco Pinto Balsemão e Eanes. A desconfiança era tal que as reuniões eram gravadas... em dois gravadores distintos. Para não haver "deturpações". Apenas os chefes do Governo de iniciativa presidencial - algo que constitucionalmente hoje já não é possível - não tinham,et pour cause, motivos de queixa. Dez anos em Belém deram a Eanes o "lastro" para se lançar num partido, o PRD, que em 1985 deu um rude golpe eleitoral... ao PS.

Mário Soares (1986-1996) - Do primeiro mandato sempre se disse que foi pacífico e de coabitação com Cavaco Silva, recém-chegado a São Bento e que conseguiu duas maiorias absolutas consecutivas. A ponto de o PSD não ter lançado um candidato em 1991. Mas os sinais estavam lá: logo nos primeiros cinco anos, Mário Soares não se coibia de receber sindicatos em pleno processo de revisão de leis laborais ou a Ordem dos Médicos, em conflito com a ministra da Saúde Leonor Beleza. A coabitação cedeu depois o lugar ao conflito aberto. Com as presidências abertas, como a de Lisboa, Soares mostrava os problemas. Com o acordo de paz para Angola, em Bicesse (1991), Soares sentia-se ignorado. Cavaco achava que não. As conversas de quinta-feira no Palácio de Belém eram muitas vezes tensas. Mas o mais grave foi mesmo a organização do congresso Portugal: Que Futuro?, de inspiração soarista. Soares tornou-se Presidente e quase um líder da oposição. Cavaco Silva, em São Bento, ia sentindo o desgaste. Em 1995, após meses de tabu, saiu de São Bento. Tentou Belém pela primeira vez em 1996, mas só conseguiu em 2006. Ironicamente, venceu Soares, candidato pela derradeira vez.

Jorge Sampaio (1996-2006)- A imagem de um mandato apagado não escapa ao encontro com os arquivos das notícias de jornal. A começar pelo final do mandato, quando Sampaio demitiu o Governo PSD-CDS. Depois de, na versão de Pedro Santana Lopes, ter garantido por três vezes que não o faria. Antes de Durão Barroso, a caminho da Comissão Europeia, ter cedido o lugar a Santana, ainda tentou que outros, dentro do PSD, como Manuela Ferreira Leite, assumissem o comando. Em vão. Deu posse a Santana, mas meses depois e passadas muitas trapalhadas, demitiu o Governo e convocou eleições, ganhas pelo PS e Sócrates com maioria absoluta. Mas os arquivos trazem à memória outros casos. Por exemplo, quando Sampaio forçou, no ano 2000, a demissão do ministro Armando Vara por causa do escândalo da Fundação Prevenção e Segurança. O primeiro-ministro era o socialista António Guterres, seu ex-rival interno no PS. Jorge Sampaio foi também um recordista dos vetos (75 em dez anos).N.S.
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