Preparados ou não, vem aí Nekrosius

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"Os Idiotas" marca o regresso de Nekrosius ao Porto, seis anos depois de "Estações"

Eimuntas Nekrosius encena pela primeira vez Dostoievski: é preciso um monstro
(ou um génio) para enfrentar outro. A Nekrosiusmania prossegue, hoje e amanhã,
no Porto, com "Idiotas". Já tínhamos saudades. Kathleen Gomes

Paixões ao rubro, um combate de luz e de sombra, um texto vivo, em que vemos as personagens mexer: "Idiotas" tinha tudo para que o lituano Eimuntas Nekrosius lhe pegasse, mais o estatuto de Grande Romance Russo (Nekrosius, sabemos, não faz a coisa por menos: encenou Shakespeare, Tchékov, Tolstoi, Pushkin, e a literatura e o teatro contemporâneos não parecem interessá-lo). Contudo, ainda há três anos Nekrosius dizia "nunca" quando Luigi Ronda, director artístico de vários festivais de teatro em Itália, lhe perguntava por que não encenava Dostoievski. "É perigosíssimo", respondeu, naquele tom lacónico e definitivo que lhe é característico. Pensando na lenda que é Nekrosius - quase sempre retratado como um visionário insondável e solitário - é tentador concluir que é justamente o perigo que o move. É possível que a vontade de encenar Dostoievski tenha surgido logo ali, quando disse "nunca". Tauras Cizas, que trabalha com Nekrosius há 20 anos e é um dos seus colaboradores mais próximos, explica ao telefone: "Os clássicos dão-nos o prazer de trabalhar com boa literatura, com grandes nomes, grandes personagens e grandes ideias. Não é fácil, obviamente. É um risco. Mas isso é o mais interessante, correr esse risco. Digamos que as peças modernas por vezes nos parecem demasiado fáceis. Quer dizer, falta-lhes alguma profundidade."
"Idiotas" marca o regresso de Eimuntas Nekrosius ao Porto, seis anos depois de "Estações", de Kristijonas Donelaitis. Abre a temporada do Teatro Nacional São João, hoje e amanhã, e promete ser um acontecimento, como são sempre os espectáculos de Nekrosius que, no seu melhor, são sempre intensas experiências visuais e líricas. O que Nekrosius tem, os espectadores do São João sabem-no desde 1997, quando apresentou a sua estarrecedora versão de "As Três Irmãs", de Tchékov (voltaria em 1999 com "Macbeth" e 2001 com "Otelo"): um estilo muito pessoal e exuberante, em que o espírito do texto é iluminado por uma série de metáforas visuais, uma direcção de actores que aposta numa gestualidade de marioneta (o que alguém descreveu como "uma coreografia pós-moderna"), uma banda sonora expressionista, um fôlego épico (a duração média de um espectáculo da sua companhia, Meno Fortas, é quatro horas), uma capacidade imensa de extasiar os espectadores (ovação final de cinco minutos na estreia de "Idiotas", e já era madrugada: a Nekrosiusmania está viva e recomenda-se).
Por vezes, é apelidado de "Bob Wilson do Báltico", mas o americano é um formalista que pensa com a cabeça e Nekrosius, não obstante o rigor das suas encenações, pensa com o coração. É isso que tem insinuado em entrevistas, é isso que confirma Tauras Cizas ao telefone. "Quando ensaiamos uma cena ou um acto, ele não vê com os olhos mas acima de tudo com o coração. Se algo lhe parecer demasiado inteligente, não serve. Ele procura o emocional."
A queda de um anjo
Publicado em 1868, "O Idiota" é um dos grandes romances de Dostoievski, considerado o mais perfeito por alguns, mas também mal-amado por outros. O romancista D.H. Lawrence leu-o em 1915 e concluiu: "Não gosto de Dostoievski. Ele é como a ratazana, arrastando o seu ódio nas sombras, mas manifestando amor, só amor, para poder chegar à luz."
Na origem de "O Idiota" está a intenção de Dostoievski de "retratar um ser humano totalmente belo", como escreveu numa carta, "a imagem do homem positivamente bom". O príncipe Míchkin, o "idiota" do título, puro e ingénuo, surge como uma figura redentora, algures entre Dom Quixote e Cristo. Último herdeiro de uma família aristocrática decadente e em extinção, regressa à Rússia depois de quatro anos na Suíça, onde esteve internado devido à sua doença, epilepsia. No início do romance de Dostoievski, vemo-lo a bordo de um comboio que se aproxima de São Petersburgo. "No comboio, pensava: 'Agora vou para junto das pessoas; talvez não saiba nada, mas para mim começou uma vida nova.'" ("O Idiota", ed. Presença, 2001, tradução de Nina e Filipe Guerra, pág. 80)
Nekrosius notou que é "como se a personagem fosse enviada para fazer uma experiência, para ver o que pode acontecer", e, na sua versão cénica, Míchkin é literalmente atirado da maca para o mundo. Em Itália, onde "O Idiota" estreou em Junho, na Villa Adriana, em Tivoli, nos arredores de Roma, Nekrosius notou que o príncipe de Dostoievski tem "uma força positiva, que paradoxalmente conduz à destruição das pessoas que encontra".
Quanto às motivações pessoais que o levaram a encenar "O Idiota", é preciso procurá-las nas entrelinhas das afirmações, sempre parcas, que concede à imprensa italiana (e só italiana, porque Itália é uma segunda casa: todas as suas produções passam obrigatoriamente por lá, todos os anos). Míchkin "é uma figura exemplar, especialmente hoje", explicou. "Um espírito puro, incapaz de se adequar ao cinismo e à mesquinhez que predominam à sua volta. É um jovem que está na antítese deste mundo cada vez mais materialista e pragmático." Impossível não vislumbrar nisto um "statement" mais ou menos explícito, mais um sinal de que encara o que faz como um acto de resistência (por que outra razão teria baptizado a sua companhia de Meno Fortas, "fortaleza da arte"?). Também diz que não faz peças com menos de quatro horas porque "o teatro é um antídoto contra a pressa insensata dos nossos tempos".
Já dissemos que "Idiotas" tem uma duração de cinco horas e 20 minutos? Na versão de Nekrosius, resultou uma peça em quatro actos, com três intervalos. Tauras Cizas, assistente de encenação e responsável pela adaptação do texto, diz: "O nosso objectivo era mostrar em palco toda a história. A única razão por que cortámos algumas personagens ou algumas cenas foi a duração. Se incluíssemos tudo, a peça durava, sei lá, dois dias [risos]. E não é fácil, para dizer a verdade, porque no romance de Dostoievski tudo é muito importante. Mesmo que não pareça à primeira vista."
Por outro lado, e apesar das proporções épicas do romance (637 páginas na tradução portuguesa já mencionada), ele parece prestar-se facilmente à dramaturgia, já que grande parte do livro é composto por diálogos. "Falando do meu ponto de vista profissional, há poucos anos fizemos a adaptação de 'Ana Karenina', e não foi fácil criar os diálogos porque Tolstoi usa muita literatura, explica muitas coisas", diz Tauras Cizas. "Mas Dostoievski não tem necessidade de explicar 'esta personagem é assim e assado', basta ler o que as personagens dizem para conseguir perceber o que elas são."
Teatro de imagens
A construção de "Idiotas" também foi um processo longo. Nekrosius faz peças ao ritmo de uma por ano. E como não gosta de falar do seu trabalho ("Não quero falar a ninguém de como nascem os meus espectáculos. É uma coisa demasiado íntima"), temos de encontrar alguém que o faça por ele. "Começámos a trabalhar há coisa de dois anos no texto e na escolha dos actores principais - houve umas dez pessoas que podiam ter interpretado o príncipe Míchkin", conta Tauras Cizas, que também é um dos intérpretes de "Idiotas". "Começámos os ensaios em Janeiro e estreámos em Junho. Contei os ensaios: fizemos 115, o que é muito. Por exemplo, para 'Fausto' [de Goethe], que foi a nossa produção anterior, só fizemos 60 ensaios."
O actor que interpreta o loiro e inocente Míchkin, Daumantas Ciunis, trabalha com a Meno Fortas pela primeira vez, e é um recém-licenciado da escola de representação, o que é, no mínimo, uma escolha arrojada. Cizas nota que Nekrosius começou a trabalhar com o actor seis meses antes do primeiro ensaio oficial.
As encenações que Nekrosius faz a partir dos clássicos nunca são ilustrativas nem decorativas. O seu teatro é, verdadeiramente, um teatro de imagens, quer pela força visual da cenografia e a sua capacidade de exprimir as ideias fortes do espectáculo (Nekrosius montou um dispositivo de gelo em "Hamlet", porque isso traduzia a frieza das relações entre as personagens e pôs o trágico príncipe da Dinamarca a dizer o célebre monólogo "Ser ou não ser, eis a questão" debaixo de um candelabro de velas e cristais de gelo que tanto derramava água fria como cera quente sobre ele), quer seja pelo poder evocativo da omnipresente banda sonora, quer seja pela pantomima burlesco-trágica dos actores. O mundo pode ser um palco, mas o palco é um mundo à parte. "Estamos habituados a uma ideia literária do teatro, em que o teatro é uma coisa que se ouve e não se mostra. Mas a natureza do teatro é ser visto", diz. O italiano Eugenio Barba, director do Teatro Odin, na Dinamarca, define-o como "um artista de teatro que domina a dramaturgia das acções tão bem quanto a dramaturgia das palavras".
"Ele tem um talento excepcional para criar ideias", diz Tauras Cizas. "É por isso que há quem diga que ele é um génio [o primeiro foi o dramaturgo americano Arthur Miller em 1985, depois de ver uma das suas encenações, acrescentando que se Nekrosius tivesse nascido em Inglaterra ou França, "seria, muito provavelmente, uma figura mundial"]. As ideias dele são puro génio, e o resto é trabalho. Ele exige o máximo de si e dos outros. Faz imenso trabalho de casa e nunca chega a um ensaio sem estar preparado."
Ninguém diria, mas está no Facebook. Já foi mais difícil ser amigo de um génio.

Ver agenda de teatro na pág. 42

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