O afrobeat é a verdade

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Vemos-lhe o corpo e a forma como o corpo se move, um lento bamboleio que, num segundo, se transforma em movimento frenético de saltos e torso ondulante. Ouvimos a voz de tom grave e a verve de agitador de consciências. Ouvimos a música que o faz mover-se, invenção imponente em que o jazz norte-americano, o highlife nigeriano e o funk de James Brown se fundiram num som baptizado como afrobeat. Vemo-lo ao vivo e está lá tudo isso. O coro feminino, com as suas vozes agudas em resposta às incitações do vocalista, e a dança exuberante correspondendo à luxúria do ritmo. Os metais reunindo-se em curtas e poderosíssimas frases que erguem a música até outra dimensão. A guitarra bailando com precisão militar e a secção rítmica incrivelmente encantatória.

Vemos a banda, os míticos Egypt 80, e vemos o homem que a lidera. Não é Fela Kuti, um dos músicos indispensáveis do século XX, inventor do afrobeat, activista e pensador político, lutador incansável contra mentalidades colonialistas e ditaduras militaristas. Não é Fela que dirige, em 2009, os Egypt 80. Aquele que vemos nos concertos e nos vídeos disponíveis na Internet, aquele que ouvimos em "Many Things", disco de afrobeat majestosamente clássico, editado em 2008, é Seun Kuti. Filho de Fela, o mais novo de todos eles, o que não foge da imensa sombra de seu pai. Alimenta-se dela.

Aquilo por que lutou Fela Kuti é ainda projecto por cumprir e Seun segue-lhe o encalço. "O afrobeat é a verdade", dirá ao Ípsilon desde a ex-capital nigeriana, Lagos. Ali vive, na chamada República de Kalakuta que Fela Kuti, nos anos 1970, fundou e proclamou independente. Centro artístico e sede de activismo político, foi destruída pelo governo militar nigeriano - Fela foi espancado, a sua mãe morreu dos ferimentos - e reconstruída depois como prova de tenacidade e resistência. É nela, três décadas depois, que Seun tem o seu quartel-general. Ali ensaia com os músicos dos Egypt 80, alguns deles contemporâneos do seu pai, dali sai para levar mundo fora "a verdade" do afrobeat. Amanhã, dia 29, actua em Lisboa, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (21h), em concerto integrado na secção África da programação de 2009 do CCB Fora de Si.

De África para o mundo

Seun Kuti subiu pela primeira vez a um palco há muito. Tinha oito anos. Disse ao pai que queria tocar com ele. Fela pediu-lhe que mostrasse do que era capaz e Seun criança cantou e dançou. "Não és nada mau", a resposta do pai, foi o selo de aprovação. Hoje com 27 anos, diz-nos, primeiro, que "sempre quis a música - nada mais". Recorda, depois, essa infância em que foi "mascote" de Fela Kuti & Egypt 80. Lembra-se, principalmente, da "intensidade da música e do que rodeava a música". Mesmo que "houvesse coisas que não percebia", foi essa a sensação que ficou - intensidade.

Isso é algo que continua a carregar consigo. Para Seun, não existe diferença entre aqueles que seguem os seus manifestos políticos em forma de música (o álbum "Many Things", com canções como "Think Africa" ou "Na Oil", é declaramente de "intervenção") e os que dançam a música alheados do que nela se diz: "Quem vem aos concertos e ouve afrobeat, quem o dança, já recebe a mensagem. O afrobeat é, em si a mensagem. Já contém tudo. Não é apenas um género musical, é um movimento político e cultural".

Ao contrário do seu irmão Femi, 20 anos mais velho, Seun não se sente intimidado com as constantes comparações com Fela. E isso não nasce de qualquer comodismo ou, em sentido contrário, de um receio de menorização perante a estatura mítica do pai. De certa forma, é como se Seun se sentisse o prolongamento de um legado, um guerreiro que prossegue uma luta inacabada. "Estou no início de uma longa maratona", afirmou pouco após editar "Many Things", o álbum de estreia longamente maturado. Antes de o editar, conta-nos, estudou no Instituto de Artes Performativas da Universidade de Liverpool - "pus-me a par de músicas do mundo e isso foi uma experiência importante para a minha progressão enquanto artista". Nos intervalos, aprofundava a liderança dos Egypt 80. Foi a última banda de Fela Kuti e Seun tornou-se o seu líder, ainda adolescente, após a morte do pai, em 1997. Ser aceite e respeitado pelos músicos veteranos que acompanharam o seu pai durante décadas é prova definitiva do seu talento e carisma: descrevem-no como "rapaz pequeno com bom senso de homem grande"

Seun explica que não quis apressar nada. Que teve de aprender e de solidificar as suas ideias musicais e políticas. Só plenamente formado se apresentaria definitivamente ao mundo. É o que faz agora. "Antes, fazia-se afrobeat para mostrar o afrobeat a África, agora, temos que o mostrar ao mundo". Antes, cantava-se "get up and fight" ["levanta-te e luta"], agora, é tempo de "get up and think" ["levanta-te e pensa"]. Citamo-lo da biografia disponível na sua página de MySpace: "A minha geração não está a pensar e a culpa, na verdade, não é nossa. A geração do meu pai lixou tudo. E não fomos criados para solucionar isso".

Seun quer ser alavanca de mudança. Musicalmente fiel à tradição progressista do afrobeat, recusa vitimizações e a segurança do politicamente correcto. Diz-se farto de eventos de beneficência como o Live 8 e questiona por que razão os músicos ocidentais "solidários" nunca aparecem em África sem trazerem câmaras e jornalistas consigo. Critica a atitude passiva de muitos dos seus conterrâneos perante os governantes e a desculpabilização destes com a invocação da colonização branca.
"Não acredito em pregação, acredito na criatividade e na verdade", dir-nos-á quase no final da curta conversa com o Ípsilon. Pois bem, se o "afrobeat é a verdade", Seun Kuti é agora um dos seus mais distintos embaixadores.

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Vemos-lhe o corpo e a forma como o corpo se move, um lento bamboleio que, num segundo, se transforma em movimento frenético de saltos e torso ondulante. Ouvimos a voz de tom grave e a verve de agitador de consciências. Ouvimos a música que o faz mover-se, invenção imponente em que o jazz norte-americano, o highlife nigeriano e o funk de James Brown se fundiram num som baptizado como afrobeat. Vemo-lo ao vivo e está lá tudo isso. O coro feminino, com as suas vozes agudas em resposta às incitações do vocalista, e a dança exuberante correspondendo à luxúria do ritmo. Os metais reunindo-se em curtas e poderosíssimas frases que erguem a música até outra dimensão. A guitarra bailando com precisão militar e a secção rítmica incrivelmente encantatória.

Vemos a banda, os míticos Egypt 80, e vemos o homem que a lidera. Não é Fela Kuti, um dos músicos indispensáveis do século XX, inventor do afrobeat, activista e pensador político, lutador incansável contra mentalidades colonialistas e ditaduras militaristas. Não é Fela que dirige, em 2009, os Egypt 80. Aquele que vemos nos concertos e nos vídeos disponíveis na Internet, aquele que ouvimos em "Many Things", disco de afrobeat majestosamente clássico, editado em 2008, é Seun Kuti. Filho de Fela, o mais novo de todos eles, o que não foge da imensa sombra de seu pai. Alimenta-se dela.

Aquilo por que lutou Fela Kuti é ainda projecto por cumprir e Seun segue-lhe o encalço. "O afrobeat é a verdade", dirá ao Ípsilon desde a ex-capital nigeriana, Lagos. Ali vive, na chamada República de Kalakuta que Fela Kuti, nos anos 1970, fundou e proclamou independente. Centro artístico e sede de activismo político, foi destruída pelo governo militar nigeriano - Fela foi espancado, a sua mãe morreu dos ferimentos - e reconstruída depois como prova de tenacidade e resistência. É nela, três décadas depois, que Seun tem o seu quartel-general. Ali ensaia com os músicos dos Egypt 80, alguns deles contemporâneos do seu pai, dali sai para levar mundo fora "a verdade" do afrobeat. Amanhã, dia 29, actua em Lisboa, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (21h), em concerto integrado na secção África da programação de 2009 do CCB Fora de Si.

De África para o mundo

Seun Kuti subiu pela primeira vez a um palco há muito. Tinha oito anos. Disse ao pai que queria tocar com ele. Fela pediu-lhe que mostrasse do que era capaz e Seun criança cantou e dançou. "Não és nada mau", a resposta do pai, foi o selo de aprovação. Hoje com 27 anos, diz-nos, primeiro, que "sempre quis a música - nada mais". Recorda, depois, essa infância em que foi "mascote" de Fela Kuti & Egypt 80. Lembra-se, principalmente, da "intensidade da música e do que rodeava a música". Mesmo que "houvesse coisas que não percebia", foi essa a sensação que ficou - intensidade.

Isso é algo que continua a carregar consigo. Para Seun, não existe diferença entre aqueles que seguem os seus manifestos políticos em forma de música (o álbum "Many Things", com canções como "Think Africa" ou "Na Oil", é declaramente de "intervenção") e os que dançam a música alheados do que nela se diz: "Quem vem aos concertos e ouve afrobeat, quem o dança, já recebe a mensagem. O afrobeat é, em si a mensagem. Já contém tudo. Não é apenas um género musical, é um movimento político e cultural".

Ao contrário do seu irmão Femi, 20 anos mais velho, Seun não se sente intimidado com as constantes comparações com Fela. E isso não nasce de qualquer comodismo ou, em sentido contrário, de um receio de menorização perante a estatura mítica do pai. De certa forma, é como se Seun se sentisse o prolongamento de um legado, um guerreiro que prossegue uma luta inacabada. "Estou no início de uma longa maratona", afirmou pouco após editar "Many Things", o álbum de estreia longamente maturado. Antes de o editar, conta-nos, estudou no Instituto de Artes Performativas da Universidade de Liverpool - "pus-me a par de músicas do mundo e isso foi uma experiência importante para a minha progressão enquanto artista". Nos intervalos, aprofundava a liderança dos Egypt 80. Foi a última banda de Fela Kuti e Seun tornou-se o seu líder, ainda adolescente, após a morte do pai, em 1997. Ser aceite e respeitado pelos músicos veteranos que acompanharam o seu pai durante décadas é prova definitiva do seu talento e carisma: descrevem-no como "rapaz pequeno com bom senso de homem grande"

Seun explica que não quis apressar nada. Que teve de aprender e de solidificar as suas ideias musicais e políticas. Só plenamente formado se apresentaria definitivamente ao mundo. É o que faz agora. "Antes, fazia-se afrobeat para mostrar o afrobeat a África, agora, temos que o mostrar ao mundo". Antes, cantava-se "get up and fight" ["levanta-te e luta"], agora, é tempo de "get up and think" ["levanta-te e pensa"]. Citamo-lo da biografia disponível na sua página de MySpace: "A minha geração não está a pensar e a culpa, na verdade, não é nossa. A geração do meu pai lixou tudo. E não fomos criados para solucionar isso".

Seun quer ser alavanca de mudança. Musicalmente fiel à tradição progressista do afrobeat, recusa vitimizações e a segurança do politicamente correcto. Diz-se farto de eventos de beneficência como o Live 8 e questiona por que razão os músicos ocidentais "solidários" nunca aparecem em África sem trazerem câmaras e jornalistas consigo. Critica a atitude passiva de muitos dos seus conterrâneos perante os governantes e a desculpabilização destes com a invocação da colonização branca.
"Não acredito em pregação, acredito na criatividade e na verdade", dir-nos-á quase no final da curta conversa com o Ípsilon. Pois bem, se o "afrobeat é a verdade", Seun Kuti é agora um dos seus mais distintos embaixadores.