Torne-se perito

Portugueses descobrem mecanismo de defesa natural contra malária mais grave

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Equipa de Miguel Soares dá novas pistas sobre a malária NUNO FERREIRA SANTOS

Cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência publicaram ontem artigo em revista
norte-americana. Trabalho abre portas a uma nova estratégia de combate à doença

a Todos os anos, o parasita da malária infecta 200 a 500 milhões de pessoas no mundo e mata um a dois milhões. Então, o que é que protege naturalmente da morte a esmagadora maioria dos infectados? A equipa de Miguel Soares, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, acaba precisamente de descobrir um mecanismo de protecção natural contra as formas graves da malária e ontem publicou os resultados na revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences. Esta protecção natural não tem a ver com a capacidade de o próprio sistema imunitário eliminar o parasita da malária, o Plasmodium. Nem tem a ver com a eliminação do parasita com medicamentos antimaláricos, pois mesmo entre quem os recebe há mortes - sem que se soubesse explicar, até agora, por que tal acontecia. A resposta da equipa de Miguel Soares é que essa protecção natural tem a ver com a capacidade de os próprios tecidos do organismo se protegerem contra a resposta do sistema imunitário contra o agente patogénico.
Vamos por partes. Ao sermos picados por mosquitos anófeles, que se alimentam de sangue humano, o parasita da malária pode ser transmitido: entra na corrente sanguínea e dirige-se para o fígado, infectando as suas células e multiplicando-se aí. Em seguida, estas células rebentam e libertam o parasita de novo na corrente sanguínea, que vai infectar os glóbulos vermelhos. Poucas células do fígado são destruídas nesta fase, explica Miguel Soares, de 41 anos.
É quando os glóbulos vermelhos se rompem, depois de o parasita se ter multiplicado ali, que surgem os sintomas da doença, como ataques de febre, suores, arrepios e até a morte.
Num trabalho anterior, a equipa de Miguel Soares já tinha demonstrado que o que estava na origem desses sintomas. Quando o parasita leva à ruptura dos glóbulos vermelhos - que transportam o oxigénio dos pulmões para os tecidos do corpo através da hemoglobina -, esta proteína é lançada para a corrente sanguínea. Uma vez aí, a hemoglobina liberta os seus quatro grupos de ferro (através dos quais o oxigénio se liga a esta proteína) e são eles que causam os sintomas graves da malária.
Normalmente, estes grupos de ferros são inofensivos. Mas com a infecção do parasita da malária em curso, o caso pode mudar de figura. E são as células do fígado que vão ser atingidas por aqueles grupos de ferro. Ou, nos casos mais graves de malária, as células do cérebro, como também já havia mostrado esta equipa.
"No contexto da resposta que está a acontecer - há células do sistema imunitário a fazer tudo para matar o Plasmodium -, se as células do fígado recebem um grupo de ferro ao mesmo tempo, o resultado é que morrem", explica Miguel Soares. "Há uma hepatite. O fígado pára de trabalhar."
Mas isto é algo que acontece raramente. É aqui que entra em cena uma enzima. Chama-se heme-oxigenase-1, é produzida nos tecidos do organismo quando são expostos a um stress oxidativo e tem a capacidade de degradar precisamente os grupos de ferro. Ou seja, tem um efeito protector das formas mais severas da malária, que afecta sobretudo crianças (onde se inclui a malária cerebral).
Nova estratégia de luta
Servindo-se de uma metáfora, Miguel Soares diz que o sistema imunitário está a dar marteladas no parasita, mas pelo caminho nós próprios também levamos marteladas e podemos morrer. Esta enzima protege-nos, amortecendo as marteladas.
"Normalmente, a maioria das pessoas com malária não morre, porque há este mecanismo de protecção natural. Os tecidos estão protegidos e os indivíduos podem usar a sua resposta imunitária natural para matar o parasita sem comprometer o fígado, os rins, os pulmões..."
Como é que os cientistas chegaram a esta descoberta? Estudando ratinhos - por exemplo, modificaram geneticamente alguns animais para que a enzima protectora não fosse produzida e, dessa forma, puderam ver os efeitos devastadores no fígado.
A descoberta deste mecanismo de protecção pode abrir a porta a uma estratégia de combate à doença completamente diferente da utilizada até ao momento. Além de continuar a matar-se o parasita com antimaláricos, poderá então provocar-se o aumento da protecção do organismo através de medicamentos que copiem o efeito da enzima. Em ratinhos, pelo menos, o fármaco que a equipa testou, um anti-oxidante banal, teve um "resultado dramático".
O passo, já em curso, é ver se esta descoberta se aplica aos humanos. E é isso que agora Carlos Penha Gonçalves, também do IGC, está a estudar em Angola.

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