Já ninguém quer ouvir Elvis em Vegas

Sozinho em palco, um Elvis já da fase gorda e das lantejolas tentava dar o seu melhor perante uma plateia vazia. Ninguém o estava a ouvir, ninguém reparou no seu virtuosismo de imitador quando cantou You were allways on my mind. Elvis esforçou-se mas ali ninguém queria saber do Rei. Porque ali jogava-se póquer e o som das fichas a bater umas nas outras é a banda sonora desta história. Bem-vindos a Las Vegas. No tropicalíssimo Hotel Casino Rio, entre o final de Maio e meados de Julho, jogou-se a 40.ª edição da World Series of Poker (WSOP), uma série de torneios que culmina com o main event, tido como a finalíssima do campeonato mundial do jogo de cartas mais in do momento. Quem ganhar o jogo principal - a mesa final com nove finalistas só se joga em Novembro - vai levar para casa 8.546.435 dólares. Por isso se percebe que não é só pela glória que vieram a Las Vegas mais de 50 mil jogadores de todos os cantos da América e de todos os cantos do mundo. A maioria deles voltou para casa de mãos a abanar, mas para o ano milhares de jogadores vão fazer todos os possíveis para estar cá outra vez.
Pode considerar-se 2004 como o ano do início da invasão das salas de póquer de Las Vegas. Se no ano anterior o número de jogadores inscritos no main event das WSOP foi 839, em 2004 esse número saltou para 2576. E muitos desses estreantes eram europeus, a maioria deles nascidos já depois do Rei Elvis ter morrido, que descobriram pela primeira vez a cidade do pecado.
Alemães, franceses, espanhóis, austríacos, holandeses, dinamarqueses, holandeses, suecos, russos e, claro, portugueses (entre 80 e 90 jogadores) voltaram a repetir a sua peregrinação anual a Las Vegas. Tudo por causa da explosão que ainda se vive dos jogos de póquer online. E tudo por causa de um homem com um nome que assenta que nem uma luva a esta história: Chris Moneymaker.
O contabilista
Entre 1970 e 2002, as WSOP foram sempre ganhas por verdadeiros profissionais do póquer, todos eles habituados às salas fumarentas dos casinos de Las Vegas, mas no ano de 2003 o campeão foi um contabilista de 28 anos de Atlanta, Geórgia, que se qualificou para jogar o main event através de um torneio satélite organizado no site da Poker Stars. O investimento inicial de 40 dólares (o preço de inscrição no torneio online e não os 10 mil dólares necessários para a inscrição no main event) rendeu a Moneymaker 2.500.000 dólares e, do dia para a noite, o amador tornou-se milionário, largou o emprego de contabilista e hoje não faz mais nada se não jogar póquer.
O "efeito Moneymaker" sentiu-se logo no ano seguinte. Foi preciso arranjar mais espaço no Binion's Horseshoe Casino, mais mesas de jogo, mais dealers, mais fichas, mais cartas, mais tudo. Las Vegas foi invadida por uma multidão de jogadores anónimos, todos convencidos de que "se ele foi capaz, eu também vou ser".
Este ano foram inscritos 6494 jogadores para o main event, e para toda a temporada dos 50 dias de torneio estiveram no Rio qualquer coisa como 54 mil jogadores. Para os acomodar, foram precisas várias gigantescas salas do centro de congressos do hotel, repletas de mesas de jogo. E aí, antes do main event, jogaram-se 57 torneios secundários, com valores de inscrição menores, mas todos eles com direito a pulseira das WSOP para o vencedor.
Jefferey Pollack, o director do torneio, diz que o póquer já não é uma "coisa americana" e que se tornou num "jogo global", em que "todos podem entrar e todos podem ganhar". E em que todos querem a glória. E a glória está em Las Vegas e não no anonimato dos nicknames do póquer online.
As WSOP têm tanto a ver com prestígio como com dinheiro. Vencer o main event em Las Vegas é, na comparação de Pollack, como ganhar o torneio de Wimbledon no mundo do ténis. "Há sempre a necessidade de reconhecer a excelência em qualquer desporto do mundo", explica. As WSOP fazem isso no póquer.
A explosão
Ronnie Clayton, um texano de Dallas, tem 62 anos e, desde que se lembra, a sua vida tem sido dar cartas. É um dos dealers veteranos das WSOP e um observador privilegiado do fenómeno de globalização do póquer. Passou do Horseshoe Casino para o Rio, quando o histórico casino de Benny Binion se tornou pequeno demais para acolher as WSOP. Viu as televisões chegarem, os patrocínios, os contratos publicitários e assistiu à forma como o jogo se transformou num negócio de milhões para muitos protagonistas.
"Primeiro vieram os ingleses, os canadianos e os australianos. Depois apareceram pessoas de todos os cantos do mundo. Mas a explosão deu-se depois da vitória de Moneymaker", recorda Clayton, que dá cartas nas WSOP desde 1986. "Foi ele - e o seu apelido ajudou - que deu esperança a milhares de jogadores medianos que antes não se atreveriam a viajar até Las Vegas para enfrentar tubarões como Doyle Brunson, Amarillo Slim, Johnny Chan ou Phil Hellmuth." Com o aumento de jogadores, cresceram como cogumelos os sites de póquer online que ofereciam aos vencedores a qualificação para as WSOP e a história de Moneymaker repetiu-se.
Em 2004, Greg Raymond qualificou-se online (160 dólares) e ganhou cinco milhões de dólares. Em 2007, Jerry Yang gastou apenas 225 dólares num torneio satélite para depois ganhar 8.250.000 dólares em Las Vegas. E, no ano passado, pela primeira vez na história das WSOP, um miúdo dinamarquês de 22 anos, que também se qualificou online, tornou-se no mais jovem jogador de sempre a vencer o main event, levando para casa mais de nove milhões de dólares. "Vejo cada vez mais amadores ganharem a profissionais", refere Clayton, para quem o factor sorte favorece a ousadia dos mais inexperientes.
"Agora está mais do que provado que não é preciso ser um profissional para ganhar, que qualquer um tem a oportunidade de ser o melhor do mundo", diz Clayton. "Hoje em dia há muitas maneiras de ganhar dinheiro no póquer, há torneios em todo o mundo e há os sites na Internet. Um jogador pode ficar rico e manter-se rico sem nunca jogar no main event das WSOP, mas ter uma pulseira dourada e o título de campeão do mundo de póquer é uma glória que muitos querem alcançar."
O profissional
Daniel Ferreira é um exemplo da nova geração de jovens jogadores europeus que chegam a Las Vegas com uma autoconfiança inabalável e uma vontade de vencer tudo e todos. Aos 31 anos, com uma profissão de engenheiro deixada em stand by, é hoje um dos jogadores da equipa de profissionais da Everest Poker (uma da maiores salas de jogo online europeias que patrocinam as WSOP) e há um ano e meio que faz do póquer a sua profissão e a sua fonte de rendimento.
Para Daniel "se a glória vier, tudo bem", mas não esconde que veio a Las Vegas principalmente para ganhar dinheiro. E experiência."Estão cá todos os melhores jogadores do mundo e este jogo tem a maravilha de poderemos jogar contra eles. Um jogador de futebol pode passar uma vida inteira sem nunca jogar contra o Cristiano Ronaldo, mas aqui qualquer jogador, mesmo que seja muito mau, pode jogar contra o Phil Ivey ou o Durrrr [Tom Dwan] ou qualquer um dos melhores jogadores do mundo."
No main event das WSOP Daniel não ganhou nada, mas durante o mês que passou em Las Vegas com um grupo de amigos jogou póquer em tudo o que é casino do Strip (a alameda dos grandes casinos): Bellagio, Cesars, Mandalay, Mirage. E, não diz quanto, mas ganhou muito dinheiro a jogar contra confiantes jogadores americanos que são "os mais fáceis de derrotar".
Porquê? "Porque o jogador médio americano é capaz de jogar uma vez por semana em casa, com os amigos, e achar que é o melhor jogador lá do bairro. Claro que quando os dois se encontram para jogar, o europeu, que só joga contra outros jogadores e não com o pai ou com os irmãos aos fins-de-semana, está à partida mais bem posicionado para ganhar."
É, portanto, uma questão de tempo, o fim da hegemonia americana no póquer agora globalizado e Eastgate foi o primeiro sinal. Os nórdicos, aposta Daniel, vão ser os reis do jogo mas, para já, sublinha, o melhor jogador do mundo ainda é americano: Tom Dwan, "o mais completo, o mais único, o mais forte".
Dwan, que começou a jogar póquer online aos 17 anos, tem 23 anos, um curso de engenharia deixado a meio na Universidade de Boston e uma conta bancária de fazer inveja a qualquer um.
Amarillo Slim
Sem uma história para contar a não ser os milhões que vai arrecadando de ano para ano, o imberbe Dawn, mais conhecido pelo seu nome de guerra online - Durrr -, está nos antípodas de um dos nomes mais míticos do póquer americano, Amarillo Slim.
Aos 80 anos, fomos encontrá-lo numa das dezenas de mesas do Rio, a jogar num dos primeiros dias do main event. Com o seu chapéu de cowboy com uma cabeça de cobra - imagem de marca sempre presente nas suas fotografias ao longo dos anos -, fala de Dawn como "um destes miúdos que agora andam a jogar póquer nessa treta da Internet", admitindo que "são muito bons e estão a tomar conta do jogo."
Há um certo desencanto na maneira como Amarrillo fala hoje do jogo que foi a sua vida. "Cheguei ao ponto em que no início de um torneio ainda tenho um bocadinho de adrenalina, mas só um bocadinho e dura pouco. Já fiz o meu percurso. Agora, para dizer a verdade, estou aqui sentado há 20 minutos a jogar e garanto-lhe que preferia estar numa cadeira eléctrica." Ou, melhor ainda, "a jantar no Bellagio".
Amarillo Slim - cujo nome verdadeiro é Thomas Austin Preston, Jr. - passou uma vida inteira a jogar tudo o que havia para jogar. Implacável, arranjava sempre maneira de partir em vantagem em relação aos seus adversários, fosse a jogar bilhar, póquer, pingue-pongue ou outra coisa qualquer. Aceitou (e ganhou) apostas impensáveis para qualquer um dos milhares de jogadores que hoje em dia, em todo o mundo, fazem do póquer o seu jogo de eleição.
A vida, para Slim, foi sempre um jogo. Aos 15 anos já era um verdadeiro "tubarão" nas salas de bilhar do Texas e aos 19 anos regressou do exército (esteve no Havai e na Europa) com as mochilas cheias de maços de notas em vez de roupa, depois de ter "limpado" todos os soldados que o desafiaram para jogar bilhar e depois de ter montado em Inglaterra uma bem sucedida operação de contrabando no pós-guerra: vendeu chocolate, meias de seda, gasolina, sabonetes, tabaco, tudo o que havia para vender a preços exorbitantes.
Regressado a Nova Iorque, tinha à sua espera outra figura mítica do bas fonds americano, o temível jogador de bilhar Minnesota Fats, disposto a esvaziar-lhe as mochilas. Os dois jogaram várias vezes e Fats ganhou sempre até ao momento em que Slim decidiu arranjar a tal "vantagem" que lhe poderia dar a vitória frente a um adversário aparentemente imbatível. De regresso a Amarillo, no Texas, Slim fez uma proposta irrecusável ao seu rival. Apostou que ele conseguia enfiar quatro bolas com uma vassoura antes de Fats conseguir enfiar oito bolas com um taco normal. Ganhou uma, duas três, várias vezes, deixando Minnesota completamente de bolsos vazios. Mais tarde voltaria a repetir a gracinha, desta vez desafiando um jogador de pingue-pongue a jogar com frigideiras em vez de raquetes.
A sua maneira de "assentar" quando se casou, foi virar-se para o póquer. Juntamente com Doyle Brunson e Sailor Roberts formou uma das mais lucrativas parcerias no mundo do jogo daquela altura. Estávamos no princípio dos anos 60 do século XX e estes três texanos percorreram a América a limpar as poupanças de cidades inteiras. Foram roubados, foram presos, foram perseguidos e ameaçados, mas quando chegaram a Las Vegas em meados daquela década já tinham fama suficiente para tomar a cidade de assalto. E se hoje há "pais do póquer" são estes três que levaram o Texas hold 'em (a versão de póquer actualmente mais jogada em todo o mundo) à cidade do jogo.
Nesses tempos, em que Amarillo e os seus sócios (dividiam lucros e dividiam despesas) reinavam em Vegas, "toda a gente conhecia toda a gente", recorda Slim. "Eu sentava-me a uma mesa para jogar póquer e sabia quem eram a maioria dos meus adversários. Agora, aqui nesta sala, aposto que posso passar por dez mesas sem conhecer um único jogador."
Slim ainda defronta, já sem grande chama, jogadores como Daniel que admiram mais as facetas de um miúdo de 23 anos em frente a um computador do que a vida aventureira de um cowboy texano que já jogou em todas as principais salas de póquer do mundo. "Sun City, Londres, Moscovo, Paris, Baden-Baden, Viena. Sempre me dei bem a jogar por esse mundo fora", diz Slim, "mas é em Las Vegas que se faz um nome no mundo do póquer e é a Las Vegas que eu volto todos os anos para jogar."
Jogo "clean"
O velho texano já não ganha nada, já nem procura a tal vantagem sobre os seus adversários. Está cansado - "as luzes e as míúdas já não me interessam" - mas ainda não está pronto para largar as cartas e hoje é mais uma celebridade que anima os grandes torneios de póquer. Por Las Vegas passaram não só as velhas glórias, mas também uma lista de actores, músicos e desportistas, uns mais empenhados em ganhar algum dinheiro do que os outros .
Num torneio paralelo com fins humanitários - o Ant up for Africa, organizado pelo actor Don Cheadle e pela jogadora profissional Annie Duke para reunir fundos destinados a ajudar os refugiados de Darfur - participaram, entre outros, Matt Damon, Ben Affleck, Jason Alexander (O George Costanza de Seinfeld), a comediante Sarah Silverman, o actor Cedric the Entertainer, o rapper Nelly, Herschel Walker (jogador de futebol americano), Charles Barkley (ex-basquetebolista), Dean Cain (que já foi Super-Homem na televisão) e Brad Garrett (Todos Gostam de Raymond). Foi o único dia das WSOP que a gigantesca sala de jogo verdadeiramente se encheu de público para ver bem de perto as estrelas a jogarem as suas melhores cartadas. No final desta terçeira edição, a organização revelou ter recolhido 362 mil dólares para a causa de Darfur.
Eventos como este mostram o lado altruista do póquer, um jogo que está cada vez mais clean e legitimo, que nada tem a ver com as salas clandestinas onde se jogava nos tempos de Amarillo Slim. No centro de congressos do Rio, longe do barulho das slot machines do casino, não se podia fumar e os jogadores bebiam água e sumos vitaminados em vez de cerveja ou uísque. Dezenas de massagistas estavam sempre à mão para fazer uma sessão relaxante aos jogadores mais tensos ou mais stressados. Ninguém perde a cabeça, ninguém grita ou desespera por ter perdido uma jogada com uma mão aparentemente imbatível.
Um emprego
Hoje o póquer é um emprego para Daniel Ferreira que gere muito bem o seu dinheiro, tendo estabelecido para si próprio um ordenado mensal que é depositado numa conta separada da sua conta do póquer. Sem horários para cumprir, embora admita que as noites são para trabalhar em frente ao computador, Daniel sente-se um previgiado por poder ir buscar o filho de cinco anos à escola todos os dias, e por poder gerir o seu tempo como quer.
Como ele, há já dezenas de portugueses que fazem do póquer profissão e alguns, como um grupo de amigos no Porto, alugaram mesmo um apartemento que funciona como local de trabalho. Desta forma, explica Carlos Oliveira, um estudante de gestão de 23 anos que saiu de Las Vegas com 50 mil dólares (35 mil euros) ganhos num torneio realizado no Bellagio, consegue-se separar a vida profissional da vida familiar.
A jogarem póquer há dois ou três anos, nem Daniel nem Carlos arriscam apostar sobre o seu futuro. E nós não arriscamos apostar sobre a sua história, ou sobre o futuro do temível Durrr. Mas a vida de Amarillo Slim, já sabemos, dava um filme. E pode mesmo vir a dar, já que é um dos projectos que o actor Nicolas Cage tem na gaveta. Trata-se, afinal, do homem que venceu o main event em 1972 e tem cinco pulseiras da WSOP - "mas devia ter sete porque quando comecei a jogar eles ainda não davam pulseiras", sublinha.
No filme Rounders - A Vida é um Jogo, Mike McDermott (Matt Damon) cita uma das suas tiradas mais famosas de sempre e que continua servir como um bom conselho para todos os jogadores de póquer que pululam na Internet por estes dias. "Podemos tosquiar uma ovelha muitas vezes, mas só lhe podemos tirar a pele uma vez." a

joana.amado@publico.pt

A Pública viajou a convite da Everest Poker

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