Claude Régy no país longínquo

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A "Ode Marítima" de Pessoa, encenada por Claude Régy, deu-nos uma lição de teatro no Festival de Avignon. As palavras ganham corpo, voz e luminosidade numa encenação que nos faz descobrir, como se fosse a primeira vez, as palavras que achávamos saber de cor. Daqui a um ano, no Festival de Teatro de Almada, vamos perceber porque é que o longínquo nunca existiu. Tiago Bartolomeu Costa

Claude Régy, 86 anos, não vinha a Avignon há 30. E não sendo aquele que veio, foi aquele que chegou, diz-nos parafraseando Fernando Pessoa. Espectáculo-choque desta edição, impressionou os mais cépticos com uma leitura onde o longo poema, assinado pelo heterónimo Álvaro de Campos em 1944, nos é dado como se tivesse sido escrito ontem. Para quem souber os primeiros versos, o choque vem da sonoridade que Régy coloca em primeiro plano. Não existem outras palavras como não parece existir outra encenação possível. "Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão, olho pró lado da barra, olho pró Indefinido, olho e contento-me ver, pequeno, negro e claro, um paquete entrando"."Ode Marítima" é um dos poucos poemas publicados em vida de Pessoa e um dos raros em que se sabe que a versão existente era a defendida pelo autor. Não tendo uma narrativa desenvolve-se em crescendo, acumulando imagens de Lisboa, de um território metafórico, onde os corpos dos marinheiros, das prostitutas, do próprio Pessoa, dos habitantes de uma cidade que parece Lisboa mas é mais imaginada do que isso, convocando outras memórias e explorando sons e relações que vão para lá da composição métrica e poética. Texto também sobre a infância e a impossibilidade de viver a vida adulta, porque impedida pela ambição - Régy cita Marguerite Duras para explicar Pessoa: "A alegria é o luto da esperança" -, marcou uma corrente futurista, onde a força impressiva das imagens criadas pelas palavras se deixa contaminar por uma força contra-corrente que a esmaga e a desilude.
Assinada por Álvaro de Campos, o "poeta do quotidiano metafísico" (para usar a expressão de José Gil), vive desse contraste, onde o simbólico se sobrepõe ao concreto e onde o imaginário existe não como alternativa mas como uma realidade possível para a sobrevivência. Jean-Quentin Châtelain, o actor que nos convida a atravessar o nevoeiro matinal que cobre o Tejo, é o corpo de um texto complexo, "onde o trabalho de imaginação é superior ao que consideramos como real e que, sem dúvida, não existe". "Trabalhamos sobre a teatralidade e devemos ter cuidado com a linguagem. Devemos mesmo", sublinha o encenador, "recusar todas as outras teatralidades. Impor distracções impossibilita que o texto crie imagens e transmita sensações".
A surpresa, o choque e a revelação de um texto novo começa, então, na ambiguidade do cenário. Régy colocou Châtelain no centro do palco, no cimo de uma plataforma que fez os espectadores especular sobre o seu significado. Pontão, cais, vaga ou barco são hipóteses que o encenador não rejeita mas que dizem pouco (ou tudo) sobre o que realmente é. "Todas as imagens são válidas e possíveis de existir. Não há interditos", diz Régy para quem "o cenário não representa nada". E, no entanto, parece ser deste dispositivo cénico, assinado por Sallahdyn Derrey, que tudo surge - o corpo imóvel, a luz hipnótica, a reverberação que contagia. Régy quer evitar as definições porque "a definição mata as coisas". "O cenário deve ajudar o espectador a preencher as referências que o texto propõe, mas deve também ajudá-lo a concentrar-se no texto". O que existe, existe porque "o que nos é dito é a nossa própria viagem interior". "Não é a viagem proporcionada exclusivamente pelo espectáculo que nos faz viajar e conhecer geografias distantes, mas é a viagem interior, feita a partir do que queremos ver, que nos faz descobrir geografias também interiores. Tudo o que atravessamos é a escrita nos proporciona e faz viver ao invés de nos dizer como fazer". O longínquo, como disse Pessoa, "está onde o longínquo sempre esteve. Em lado nenhum". É para lá que Claude Régy se dirige. É lá que encontramos e ouvimos esta "Ode Marítima".
A imobilidade dentro de nós
"Ode Marítima" era um segredo antigo de Régy que o convite de Avignon acelerou. Foi alimentando a ideia durante muito tempo, perguntava-se se era possível fazê-lo, se seria capaz. Vemos a sua encenação e não imaginamos outra. Regy também não. "Há esta versão, que é a minha, não é possível pensar em versões. E isto não é um espectáculo. O único espectáculo que existe é a força da escrita na criação de imagens. O que se pode fazer é dar espaço para que a voz do autor, a voz do tempo em que ele escreveu, passe, através do veículo que é o corpo do actor, e chegue ao público. O dispositivo cénico é só uma passagem e o encenador o mensageiro".
Régy já foi mensageiro de diferentes autores e prefere, das várias peças que fez, as que não partiram de textos teatrais. Também tradutor, de Tcheckov, Gregory Motton, David Harrower e de Pessoa, descobriu com Marguerite Duras que o teatro "deve estar o mais próximo possível da essência". Em 1968 quis fazer uma versão teatral de "A Amante Inglesa". Pediu autorização a Duras, que lha concedeu mas, depois de assistir aos ensaios, preferiu escrever um texto novo, a partir de apenas três frases do seu romance. O que daí resultou definiu o olhar que Régy alimenta e persegue desde então.
Quem se lembrar da encenação que fez de "4.48 Psicose", de Sarah Kane, apresentada na Culturgest em 2004, recordará uma Isabelle Huppert imóvel - "tinha uma cruz marcada no chão para não se mexer um milímetro"-, de olhar aparentemente perdido e uma voz que concentra em si toda a força da encenação. "O teatro é um sistema visual que proporciona a vida ao texto e vai ao encontro da vida do espectador. É a relação entre estas duas vidas que capta a essência do espectáculo e permite que exista". Em "Ode Marítima" há apenas uma voz, quase proustiana, que opera numa falsa desmultiplicação. O imaginário de Pessoa constrói-se a partir de memórias longínquas, pessoais e colectivas, formando um corpo autónomo e concreto, palpável até na sua complexidade metafórica. "Na insistência pela repetição", acrescenta Régy que lida mal com os tradutores que, "aficionados, forçam a poesia". "A tradução é simples", diz surpreendido quando lhe dizemos que esta versão francesa abre espaços nas palavras portugueses que achávamos não serem possíveis. Espaços, pausas e imagens que a tradução descobre por entre a marcação espacio-temporal que Pessoa desenhou. Régy prefere falar de "um trabalho de escuta do original". "É quando ouvimos o texto que o percebemos, não é quando o explicamos". Esta tradução, explica, "ressoa a uma construção da linguagem porque nos liberta da responsabilidade de entender as palavras, de as fazer existir, libertamo-nos das regras e, creio, ainda que cepticamente, tocamos o mistério através das palavras". "O essencial da escrita não é senão a incapacidade da qual tentamos sair. Fica exposta uma voz secreta, uma voz muda". Voz essa que Régy trabalha recusando a declamação.
Jean-Quentin Châtelain, imóvel no cimo daquele "machânt" (jargão para "coisa"), aproxima a palavra do gesto e juntos "iniciam uma viagem que parte do mesmo lugar e se desenvolve na mesma sensibilidade". Uma voz que é mais do que entranhada, que é mais do que profunda, que é mais do que gritada. Uma voz que habita o poema que existe no corpo que permanece imóvel. "O êxtase está no estático", diz o encenador. "A imobilidade não é imóvel. Os movimentos do corpo são gerados pela voz à escuta do que é a consciência interior". A imobilidade mostra o que a agitação oculta".
Claude Régy diz que os seus actores não se mexem desde 1968, afirmação envolta em graça e política. A descoberta feita com Duras deu-se com Paris a arder e, desde então, o teatro de Régy, segundo o próprio, "tem-se afastado cada vez mais do que dizem que o teatro é, da sua relação com a vida". "Em duas horas o actor leva as mãos à boca por três vezes e isso é o único movimento que existe", diz, explodindo numa gargalhada. "Se calhar não é teatro". É.
Na sua imobilidade, no diálogo intenso entre imaginário e realidade, na gestão delicada mas, no final, impressiva, dos diferentes elementos (luz, som, cenário, texto, interpretação, encenação), na impossibilidade de acreditar na repetição - "é essencial que não seja igual. Uma vez fixo, não se move mais. A cada noite, na presença do público vivo, cria-se qualquer coisa de particular, uma revolução", diz um encenador que está presente em todas as representações porque não acredita que o trabalho termine na estreia -, Régy constrói um universo que é uma experiência sensorial, onde a liberdade existe em duelo com as dificuldades e onde o teatro resiste às "leis e aos parâmetros habituais do teatro". Règy quer transgredir o limite, tal como Pessoa queria escapar da sufocante Lisboa e gritava pelos que existiam do outro lado do nevoeiro. Tal como Pessoa, também o teatro de Régy quer estar "o mais próximo possível do espectador, o mais alto possível, o mais visível possível". O longínquo pode nunca ter existido mas com "Ode Marítima" sentimos que caminhamos na sua direcção e que estamos no bom caminho.

Depoimentos recolhidos em conversas com o encenador e em debates com a imprensa e o público

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