A arte como contágio em Jeff Koons

Tarde cinzenta de Julho em Londres. Mas mesmo assim, no imenso e verdejante Hyde Park, o tempo parece suspender-se; corre-se, passeia-se, degusta-se uma refeição rápida, usufrui-se. Nas imediações da Serpentine Gallery, instituição pública londrina e um dos espaços da arte contemporânea mais emblemáticos do mundo, uma pequena multidão contempla-se. Todos parecem interrogar-se acerca das razões de estarem ali.
Como sempre, há um grupo de japoneses que não tem dúvidas: estão ali porque estão ali e já que estão ali fotografam o que está ali. Em primeiro lugar, o pavilhão exterior da galeria, que é todos os anos concebido pelos mais diversos e reputados arquitectos.
Este ano foram convidados os japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, do atelier SANAA (o mesmo que ganhou o concurso internacional para o novo pólo de Serralves em Matosinhos). A sua construção temporária apresenta-se como um tecido orgânico, fundindo-se com a natureza envolvente, exteriorizando-a. Por entre árvores, uma peça escultórica em alumínio vagueia pelo parque, contaminando-o.
Mas o grupo de japoneses não tem tempo a perder. No interior está "Jeff Koons: Popeye Series", exposição de uma estrela da arte contemporânea. É conhecido do grande público pelas esculturas grandiosas, inspiradas em objectos da cultura de massas, feitas em materiais inusitados. Entre os trabalhos que toda a gente conhece encontramos "Puppy", o cão de flores que está à entrada do Guggenheim de Bilbao; "Brancusi", o coelho feito de plástico espelhado; ou a série "Made In Heaven", as fotos onde posa ao lado da ex-mulher, a actriz porno Cicciolina.
No ano passado, as suas esculturas - entre elas a muito comentada por estes dias "Michael Jackson and Bubbles", pertencente à série "Banality", em que exalta o artifício e a decadência de ícones contemporâneos - ocuparam o Palácio de Versalhes. Agora, Londres acolhe a maior mostra que uma galeria britânica dedicou a um dos artistas mais controversos do nosso tempo. Inaugurou na primeira semana de Julho, prolongando-se até 13 de Setembro.

Uma ecologia de ideias
À entrada, o grupo de japoneses é destituído das máquinas fotográficas. Talvez por isso, o seu olhar agudiza-se. Vão-se as defesas. Os sentidos activam-se. De repente, ouve-se uma gargalhada, proveniente do meio do grupo. E outra. E outra. Num ápice, todos os que estão na sala riem. Ninguém consegue parar, olhando para uma mulher que se contorce, de riso.
Ri olhando para "Dolphin" (2002), um golfinho suspenso por entre utensílios de cozinha, ou será a culpa de "Acrobat", lagosta gigante, com bigode à Salvador Dalí, equilibrada por uma cadeira de madeira e um objecto metalizado? Nós rimos por contágio directo. Mas não só. Há na exposição um ambiente - Koons chamar-lhe-ia "uma ecologia de ideias" - evocador de uma contagiante alegria. Pinturas ou esculturas, homens, mulheres, animais, objectos, desenhos animados, Popeye e os seus músculos, o silicone de uma modelo em topless, brinquedos insufláveis completamente cheios de si, todos resplandecentes, a imagem da perfeição, gloriosamente felizes.
Koons gostaria de ter visto as suas peças fazerem rir uma mulher cujo riso contaminou os outros à volta. Na sua estética existe qualquer coisa de inocência, um regresso à origem, mesmo se os níveis de leitura são complexos. "Na infância existe apenas aceitação, não se sente que algo é esperado de nós" afirmava, em entrevista, ao "The Art Newspaper" de Julho, antes de explicitar o que gostaria que as suas peças comunicassem.
"Gostava que o público, ao ver as minhas peças, experimentasse algo semelhante àquele tipo de excitação que nos contagia quando somos confrontados com o nosso próprio potencial. Quando aprendemos a nadar, por exemplo. Nesses momentos somos inundados por um enorme sentimento de emancipação."
A experiência individual de uma exposição é essencial para Koons. Para ele, a arte está no observador, não no objecto. O observador deve ter confiança nas suas próprias experiências e na sua visão particular da arte. Para adquirir essa confiança - que ele define como auto-aceitação - utiliza arquétipos, imagens populares, com as quais todos se podem relacionar. No caso da série "Popeye" este enunciado vai mais longe, introduzindo objectos de utilização quotidiana, reafirmando a sua crença de que o momento de sedução com qualquer material encoraja a uma mais profunda e afirmativa conexão com o mundo à volta.
Como todos os gigantes da arte, provoca paixões desencontradas. A sua actividade atrai respostas conflituosas, ou não personificasse ele o artista dos anos 80, época de excessos, de oportunidades e de mudanças sociais, por vezes superficiais. Se existiu alguém que teve o engenho de representar os valores e desejos desse período foi ele, argumentam os seus defensores. Desde o início dos anos 80 que explora séries temáticas centradas no consumismo, na banalidade, na sexualidade, no prazer. Mas agora estamos em período de crise, a sustentabilidade está ameaçada, o horizonte é incerto. Jeff Koons nada tem a dizer sobre este tempo, dizem os detractores, como se a arte pudesse ser reduzida a um paradigma unificador. A verdade é que ele já não está nessa prateleira. Ama-se. Odeia-se. Mas não se passa ao lado.

Popeye e Olívia
A exposição da Serpentine mostra pinturas e esculturas, cedidas por instituições públicas e privadas, pertencentes à série "Popeye", iniciada em 2002, mas inclui muitas peças que foram concluídas pouco tempo antes da exposição londrina. "Todas as séries de trabalhos que completo respeitam um longo período de incubação" dizia ao "New York Times", por alturas da inauguração na Serpentine. "Se tiver uma ideia hoje tenho que esperar pelo menos dois anos até esse trabalho estar amadurecido. O meu novo projecto, a seguir a 'Popeye', está em produção e vai levar mais alguns anos até estar terminado."
A maior parte dos trabalhos incorpora combinações surrealistas de objectos quotidianos, referências a obras de arte históricas, um imaginário próprio dos desenhos animados e bonecos insufláveis. Há peças inéditas, como "Popeye Train", composição onde integra elementos figurativos e abstractos, fazendo alusão a Popeye, o marinheiro, e Olívia Palito, a sua namorada, personagens dos emblemáticos desenhos animados concebidos há 80 anos, por alturas da Grande Depressão.
Popeye foi criado em 1929, em plena crise económica, e o seu espírito heróico repercute-se nas pinturas, onde surge invariavelmente a fumar cachimbo, e nas esculturas, com os infatigáveis bonecos insufláveis mantendo um ar optimista, apesar das escadas, dos obstáculos e dos mais diversos desperdícios que os rodeiam.
Há também muita ilusão. Os seguranças não têm mãos a medir pedindo que não se toque nas peças. Percebe-se a tentação. Os bonecos insufláveis infantis são afinal meticulosamente concebidos com materiais como alumínio e aço inoxidável. Algumas pinturas de grandes dimensões e cores saturadas que parecem colagens, ou reproduções mecânicas, foram pintadas à mão com tinta a óleo, com a ajuda de rabiscos computorizados.
Não espanta que, no seu estúdio gigante de Chelsea, em Nova Iorque, se faça rodear de 120 assistentes. Os materiais que utiliza requerem um complexo processo de produção e as suas peças são tratados de precisão e detalhe. Às vezes, reconhece o próprio, o processo de criação adquire contornos obsessivos.
Os primeiros insufláveis de brincar na piscina adquiriu-os há nove anos, quando foi visitar a sua mãe, na Florida. Depois, já em casa, através da Internet, adquiriu mais uns quantos exemplares. Normalmente compra entre 100 a 200 exemplares de cada boneco. "Parecem todos iguais, mas têm ligeiras variações" justifica. "Preocupo-me com a forma, o grafismo, a cor."
Há qualquer coisa de fantasioso, infantil até, no seu imaginário. Mas quando fala do seu trabalho cita figuras da história da arte, cuja presença fantasmagórica se sente ali. Salvador Dalí, que chegou a conhecer na juventude, mas também Marcel Duchamp, pioneiro na utilização de objectos vulgares, ou os inevitáveis Roy Lichtenstein e Andy Warhol, figuras da 'arte pop', que já tinham até recorrido à imagem de Popeye no seu percurso. No caso de Koons, as referências e piscadelas de olho à história da arte não pretendem excluir ninguém. São apenas uma forma de conectar a sua iconografia pessoal com a história colectiva, como a cadeira suspensa que parece ser suportada por três macacos ("Monkeys"), nos conecta com o nosso mundo real.
É verdade que, no seu cosmos, apenas os fortes, bonitos, jovens e eternamente sorridentes parecem ter lugar. Talvez por isso, muitos dizem que a sua arte é cínica e manipuladora. Na série "Popeye" parece apenas interessado em despertar a fantasia, espécie de prazer inconsciente da infância, assumindo que existe qualquer coisa de transparentemente impessoal na sua arte. Uma arte que acontece, espera ele, dentro do espectador.
No final, o grupo de japoneses vê-lhe serem devolvidas as máquinas fotográficas. Falam uns com os outros de forma rápida. Não há gargalhadas, mas há risinhos. Parecem comentar o que acabaram de ver. Jeff Koons nunca perceberá exactamente se foi pela sua exposição, ou pelo simples prazer infantil de terem, outra vez, entre mãos, o seu objecto preferido, mas a verdade é que sorriem muito, uns para os outros, contentes.

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