Aqui um cateter de hemodiálise pode ser uma jóia sofisticada

Nesta galeria há obras de trinta criadores para descobrir. São jóias feitas com materiais preciosos
e objectos improváveis

a Quem entra pela primeira vez na Adorna Corações, a única galeria no Porto dedicada à joalharia contemporânea, não suspeita que há muito mais para ver para além do que está exposto. Estefânia R. de Almeida, joalheira e dona do espaço, situado no Centro Comercial Miguel Bombarda, vai tirando das gavetas algumas das peças que marcam os seus dez anos de carreira. Dispõe sobre a mesa colares, alfinetes, pin's, brincos e anéis. A diferença entre as jóias exprime-se na delicadeza com que se insinuam, nos volumes tridimensionais, nas formas pouco comuns, no uso de materiais improváveis (como cateteres ou uma agulha de sutura, mas já lá vamos). As jóias contemporâneas são mais do que aquilo que vemos: "Têm sempre uma história por trás", diz Estefânia, num português que ainda entra em conflito com o francês falado durante a infância e a adolescência vividas em Paris. Os corações matizados dos colares da série O Meu Querido Diário, por exemplo, são recortes costurados a partir de "flyers, cartazes, cartões e sacos de compras" que fazem o "dia-a-dia urbano" da criadora. Para além de ter como base um processo conceptual "muito definido", a joalharia contemporânea caracteriza-se pela metamorfose das peças - um pin pode ser um brinco, os colares podem servir de pulseiras, até "um anel pode ser usado como um alfinete, quando é mais exuberante", refere Estefânia - e pela incorporação de materiais do quotidiano.
Desde o papel, passando por vidro, dinheiro, madeira, plástico, pedaços de garrafas de Coca-Cola, "tudo é possível", afirma Pedro Sequeira, jovem criador do Porto e um dos trinta autores representados pela Adorna Corações (onde é possível encontrar joalheiros tradicionais que agora são contemporâneos e professoras de Matemática que se meteram a fazer jóias).
Peças algo efémeras
Apesar de pescar alguma irreverência na nova joalharia - que, nos anos 60, representara uma revolta contra a joalharia burguesa -, a joalharia contemporânea rompe com a tradicional sem o intuito "de ir contra o que está estabelecido", pois já adquiriu "um terreno próprio", esclarece Ana Campos, professora e orientadora da licenciatura em Joalharia da Escola Superior de Artes e Design e uma das precursoras da joalharia contemporânea em Portugal. A partir dos anos 90, "volta-se a utilizar o ouro e as pedras", mas com uma interpretação distinta, "associando novos materiais", acrescenta.
A efemeridade ou, no mínimo, a pouca durabilidade de muitos dos materiais incorporados na joalharia contemporânea fragilizam a sua vertente comercial. "É um negócio pouco sustentável, porque as pessoas têm um conceito muito organizado nas suas cabeças - a joalharia há-de ser sempre algo com pedras preciosas", considera Pedro Sequeira. Não se trata de uma questão de preconceito, sublinha o joalheiro, mas de falta de oportunidades para conhecer. Apesar de o número de "jovens criadores da cidade estar a aumentar" e de se realizarem cada vez mais workshops e cursos profissionais, refere Ana Campos, a Adorna Corações é a única galeria de joalharia contemporânea no Porto (havia a Pedras e Pêssegos, que encerrou, e a Shibuichi, que migrou para a Internet).
Para Pedro Sequeira, a abertura de mais espaços seria um aspecto "positivo", mas há opções "mais viáveis": introduzir a joalharia contemporânea no circuito das galerias de artes plásticas. "A joalharia contemporânea representa uma evolução da tradicional para uma área que contempla as artes plásticas", diz Estefânia R. de Almeida. Sendo peças "tridimensionais" e "únicas", em "tamanhos pequenos", "a maior parte das jóias [contemporâneas] são esculturas", assevera a criadora. "Falta os galeristas acreditarem e apostarem em nós", salienta Pedro Sequeira, que, apesar de tudo, consegue vender as suas peças em cidades como Tóquio, Washington ou Munique. Já Susana Barbosa, jovem joalheira de 35 anos, diz que espaços como o museu Marta Sampaio Ortigão, Galeria Árvore, Muuda, loja do Museu Soares dos Reis ou a loja do Museu de Serralves constituem "hipóteses de exposição e venda de trabalhos". Para Inês Sobreira o importante é que um joalheiro "não se dedique a um só tipo de trabalho". "Faço peças mais conceptuais, mas também posso desenvolver trabalhos na área do design, mais comerciais, que vendam em locais mais abrangentes", explica a criadora.

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