O folhetim na rádio Numa história em [...] episódios

esumo dos episódios anteriores: deixando de lado antigas histórias em episódios, da Ilíada aos romances medievais, o folhetim, antepassado da telenovela, surgiu na primeira metade do século XIX e tem-se metamorfoseado de medium em medium. Este quarto capítulo da minha "novela" trata do folhetim radiofónico. Para trás ficaram as novelas nos jornais, em livro, no teatro e no cinema.No princípio de 1930, quatro anos depois do arranque da rádio comercial nos EUA, o director de uma emissora propôs a uma agência de publicidade a ideia de desenvolver um seriado diurno para atrair as mulheres, principal audiência antes do jantar, e os anunciantes de produtos para o lar. Assim nasceu Sonhos Pintados, um folhetim radiofónico de 15 minutos diários sobre uma mãe dedicada e suas crianças. Só durou um ano, mas chegou para estabelecer o género na rádio americana. Foi a primeira soap opera, ópera de sabão: ópera por ser uma forma irónica de apelidar as narrativas melodramáticas dos novos folhetins radiofónicos, de sabão porque os patrocinadores, que tinham intervenção directa interna nos programas, eram, entre outros, os fabricantes de produtos de higiene e beleza Colgate, Lever Brother e Procter & Gamble. O primeiro folhetim que recebeu o nome genérico de soap opera foi The Puddy Family, de 1932, patrocinado pela Procter & Gamble. Em 1933 havia nove folhetins à tarde na rádio e em 1941 os seriados representavam quase 90% da programação patrocinada durante o dia.
As principais características da soap opera mantiveram-se até hoje: elenco permanente de actores, continuidade da intriga, ênfase no diálogo em vez da acção, ritmo mais lento do que a vida e tratamento marcadamente sentimental ou melodramático. Nas duas primeiras décadas, o argumento andava sempre em torno duma família branca de classe média numa cidadezinha. O pecado e a violência, sempre fora de cena, afectavam amiúde as vidas quotidianas das famílias, mas o bem inevitavelmente triunfava. A base da novela no diálogo associava-se à inserção da narrativa numa comunidade, em locais onde a interacção é dialógica, como os lares, hospitais e locais de trabalho.
Em Portugal, o teatro radiofónico surgiu nos anos 1930 na Emissora Nacional, do Estado, mas o primeiro folhetim só surgiu após a Segunda Guerra. Nem por acaso foi As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis. Convém um flashback, que as Pupilas merecem. Não apenas são uma ficção de perfeita construção dramática e de elegantíssima tensão na relação entre personagens, como Júlio Dinis atingiu aí o auge da sua produção folhetinesca. As Pupilas saíram em folhetim no Jornal do Porto em 1866. Os capítulos, cheios de diálogos desprendidos do narrador, terminam com suspense e interrogações. "Que mais irá acontecer?", perguntava a leitora. A resposta obtinha-se comprando o jornal no dia seguinte. O autor começara a escrever folhetins para aquele diário em 1862. Logo o primeiro, As Apreensões de uma Mãe, apresentou-o como um "daguerreótipo", uma fotografia dos costumes do Minho: criar d'après nature, segundo a natureza, era essencial para o êxito do novo género literário. O naturalismo fotográfico dos ambientes e das personagens (não necessariamente das narrativas) era o destino do folhetim. O romance-folhetim "pretende confundir-se com a vida", escreveu Maria Ema Tarracha Ferreira. Júlio Dinis, que escreveu diversos folhetins na sua curta vida, defendia que "é deste género de literatura que o povo precisa", por fornecer-lhe "subsistência intelectual". Antes da rádio, as Pupilas tiveram versão no teatro logo em 1868: a transposição de um medium para outro, hoje corrente entre literatura e cinema, era habitual com a chegada dos êxitos literários ao teatro. Outro exemplo: L'Assommoir (A Taberna), romance da série naturalista de Émile Zola, saiu como folhetim em 1876, em livro no ano seguinte e, depois do êxito e do escândalo, estava numa sala parisiense em 1879. As Pupilas também conheceram dezenas de edições em livro (32.ª em 1943) e duas versões no cinema. Já no século XXI voltaram a originar um seriado, desta vez a televisão (João Semana, RTP1, 2005).
Depois das Pupilas fizeram-se folhetins na rádio de 1954 a 1974. A maioria baseou-se em argumentos originais de Alice Ogando, Odette de Saint-Maurice e outros, mas as adaptações realizadas revelam a relação forte com o folhetim jornalístico: Camilo, Dumas, Walter Scott, Dickens e Júlio Dinis. Alice Ogando, viúva do comediógrafo André Brun, d'A Vizinha do Lado e A Maluquinha de Arroios, começara a escrever para sobreviver. Foi a Barbara Cartland portuguesa, tendo criado literatura cor-de-rosa sob o apropriado e extraordinário pseudónimo Mary Love. Adaptou os Três Mosqueteiros, de Dumas, em 1955; no ano seguinte Saint-Maurice adaptou a sua continuação, Vinte Anos Depois, e Ogando contra-atacou com a terceira parte da saga folhetinesca de Dumas, O Visconde de Bragelonne. A Emissora apresentou 10 a 13 folhetins por ano entre 1958 e 1974.
Além dos folhetins, surgiu depois a radionovela, adaptação portuguesa das versões latino-americanas da soap opera. Também já existia na BBC desde o pós-guerra: The Archers, radionovela de 1950 em torno duma família rural, começou como série dramática numa emissora regional da BBC; pretendia passar mensagens aos agricultores e à população na época do racionamento alimentar; o folhetim passou à BBC nacional em 1 de Janeiro de 1951, continuando hoje a emissão ao fim de 58 anos e mais de 15.700 episódios. A primeira radionovela portuguesa de grande êxito popular teve um título melodramático apropriado, roubado ao título da ópera de Verdi: A Força do Destino (1955). Passou na Rádio Graça e os 300 episódios deram para um ano. O argumento centrava-se na personagem do médico Figueirola (Ricardo Isidro), casado com uma mulher má (Lurdes Santos), e apaixonado por Margarida (Lily Santos), que era coxa (como a protagonista de L'Assomoir). Ficou conhecida por "A Coxinha do Tide", pseudónimo popular que condensava as duas características essenciais do género: o melodrama e o patrocínio dum detergente. Anos depois, uma radionovela teve um título semelhante ao duma recente telenovela da TVI: A Sombra da Outra. Em 1973-4, muitas mulheres de Portugal renderam-se à novela radiofónica Simplesmente Maria, vinda do além-mar latino-americano e adaptada ao rincão português. Recordo-me bem de ver, ao princípio da tarde, mulheres populares sós ou em magotes agarradas aos transístores rua fora, fábricas adentro. Era o 25 de Abril a chamar por elas aos gritos e elas absorvidas apenas pela estória de Maria.
Continua...
Post scriptum
O comunicado do "Conselho" "Deontológico" do "Sindicato" dos "Jornalistas" contra o Jornal Nacional de 6.ª, que referi na semana passada, nada concretiza quanto a regras deontológicas quebradas. O comunicado teve divulgação na imprensa e na TV, mas, com a liberdade de imprensa cada vez mais ameaçada pelo medo, é preciso ler o post scriptum nos documentos. São tão importantes que a ERC censurou a divulgação pública das declarações de voto dos seus membros. No caso do comunicado do "Deontológico", o post scriptum diz que o comunicado foi aprovado com o voto contra de Otília Leitão, que, numa lapidar declaração de voto de 19 palavras, destrói por completo a verborreia dos colegas: "Voto contra porque não se provou que tenha sido infringida qualquer norma do Código Deontológico do Sindicato dos Jornalistas."

Sugerir correcção