E agora, PS?

resultado das europeias veio chamar a atenção para uma realidade que tem sido perigosamente ignorada pelos dirigentes do PS: em democracia, quem decide são os eleitores e não há realidades imutáveis nem fidelização de voto que resista à descaracterização radical de um partido. José Sócrates levará até ao fim o seu mandato executivo, possibilitado pela maioria absoluta que obteve a 20 de Fevereiro de 2005. Resistiu à pressão da oposição. Resistiu às manifestações de trabalhadores na rua protestando contra as suas orientações políticas e as mudanças radicais que elas estavam a provocar nas suas vidas. Resistiu à pressão da crise internacional que ameaça desorganizar a economia mundial e atirar milhões de trabalhadores a nível mundial para o desemprego e a exclusão, precisamente tentando alimentar o monstro de forma a contrariar a onda avassaladora do desemprego. E nunca se demitiu nem mudou de política.
Até resistiu ao envolvimento do seu nome em notícias sobre crimes de tráfico de influências e de corrupção, suspeições que até hoje não foram provadas mas que estão formuladas enquanto suspeições em investigações judiciais e às quais reagiu como se apenas se tratasse de uma campanha difamatória de alguns órgãos de comunicação social contra o seu bom nome e honra.
Mas, por mais que quisesse fazer passar a imagem de que era insubstituível e de que não havia alternativa, por mais que tivesse assumido uma atitude politicamente arrogante de quem considera que governa, quem sabe até se por direito divino, José Sócrates não resistiu ao voto dos cidadãos.
O PS teve apenas 26,58 por cento dos votos, sendo esta uma das mais baixas percentagens da sua história eleitoral, só ultrapassada pelos 20,77 por cento nas legislativas de 1985 (com 1.038.893 votos), pelos 22,24 por cento nas legislativas de 1987 (com 1.262.506 votos) e pelos 22,48 por cento nas europeias de 1987 (com 1.267.672 votos). E teve o seu mais baixo resultado em votos expressos, com menos de um milhão de votos (946.294), quando em 2004, nas europeias, obteve 1.516.001 votos.
A democracia tem de facto a particularidade única e maravilhosa de dar a decisão aos cidadãos. Até quando, perigosamente para a verdade da representação democrática, os cidadãos decidem não votar. Por muito que seja preciso alertar para o risco da abstenção e o que isso significa de diminuição do universo de pessoas representadas pelos gestores do Estado e da sociedade. E que seja gritante, eleição após eleição, que uma enorme parte da sociedade portuguesa se recusa a expressar o seu direito de voto nas urnas (desta vez a abstenção atingiu 63,15 por cento), com toda a dimensão brutal de desfasamento entre cidadãos e os seus representantes políticos que isso significa. Em democracia, a última palavra é sempre dos eleitores e o voto é livre e é pessoal.
Estas eleições demonstram que a democracia funciona e torna-se, de facto, uma chatice para quem se auto-convence de que está imbuído de poder eterno e que pode tratar a opinião e a vontade dos cidadãos com tratos de polé. E tenta de forma tronitoante fazer passar a mensagem de que depois de si vem o caos, quando, por mais que se tente ignorá-lo, em democracia há sempre uma alternativa. Mesmo que esta seja o que alguns consideram o caos.
O que é, porém, mais importante é que a estrondosa derrota de Sócrates pode ultrapassar em muito o impacto exclusivo sobre a carreira do ainda primeiro-ministro. O PS vive um momento decisivo. O PS tem sofrido, há mais de dez anos, um processo de descaracterização ideológica, que se iniciou com António Guterres e prolongou com Ferro Rodrigues e que culminou no programa político de governação de José Sócrates, em que a defesa dos princípios social-democratas foram cedendo à influência das teses neoliberais. Sócrates, escorado numa maioria absoluta, acelerou e radicalizou essa descaracterização, com mudanças radicais no modelo do Estado Social. Resta saber o que sobreviverá do PS após José Sócrates.
Perante o cenário que se desenha de o PS ganhar com uma maioria relativa ou mesmo perder as legislativas, o fim da liderança de Sócrates já não é uma miragem dentro do PS. E a questão que se coloca é a de saber, acabado o cimento do poder, qual será a dimensão da implosão do PS? O que será recuperável do que foi o ideário socialista deste partido? Até onde poderá o PS reencontrar-se no futuro com o seu eleitorado?
Essas respostas passam claramente por aquilo que estarão na disposição de fazer figuras como António Costa, António José Seguro, Paulo Pedroso, José Vera Jardim, João Cravinho. Mas também por Manuel Alegre, que optou por permanecer no PS, antevendo precisamente que o desfecho do consulado de Sócrates poderia estar próximo.
O terramoto eleitoral de domingo indicia, contudo, que o futuro do PS já não passa apenas pelo próprio PS. É que, se os eleitores se zangaram e votaram contra a governação de Sócrates, o que é facto é que esta eleições demonstraram uma deslocação de eleitorado para a esquerda. Ainda que o PSD tenha ganho (31,70 por cento) e o CDS tenha reconquistado o segundo deputado (8,37 por cento), à esquerda do PS o PCP voltou a subir a percentagens que não alcançava há quinze anos (10,66 por cento) e o BE teve um surpreendente crescimento, triplicando a representação e duplicando a votação (10,73 por cento).
Que evoluções irão viver-se nos próximos anos na esquerda portuguesa? Isto porque a resistência e recuperação do PCP, como partido que sobrevive à queda do socialismo soviético e se fortalece nacionalmente, podem consolidar-se. E o crescimento do BE, que, apesar de ser um partido que vive do voto casuístico e conjuntural a cada eleição, pode provocar alterações no eleitorado e no próprio partido que facilitem a fidelização.
Ora se isso acontecer a vida do PS pós-Sócrates está definitivamente dificultada como partido âncora do poder e da governabilidade. Resta perceber é com que direcção e como vai o PS ultrapassar a crise de identidade e sobrevivência em que mergulhou oficialmente no domingo. E essa resposta não passa por Sócrates nem surgirá antes das próximas legislativas.

Jornalista São José Almeida

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