Ranulph Fiennes

Acaba de escalar o Evereste aos 65 anos, seis anos depois de ser operado ao coração. Parece impossível, mas essa é uma palavra inexistente para Sir Ranulph.

O Livro Guinness dos Recordes, para quem os superlativos não são propriamente "baratos", classificou-o, em 1986, como "o maior explorador vivo" do mundo. Por essa altura, ele já tinha liderado uma expedição ao Nilo Branco em hovercraft (1969), outra ao glaciar Jostedalsbreen, na Noruega (1970), e participara na épica odisseia da volta ao mundo sobre o eixo polar (entre 1979 e 1982), tornando-se na primeira pessoa a pisar ambos os pólos por terra. Na semana passada, conquistou o "terceiro pólo", o cume do monte Evereste (8848m de altitude). Com 65 anos, um duplo by-pass no coração e um cancro na próstata à espreita.Durante as duas décadas que mediaram entre o reconhecimento público e o mais recente acto da sua vida aventurosa, este membro da nobreza britânica (é Sir não por distinção real, mas por nascimento) não parou de acelerar pela vida. Diz que foi empurrado para esta actividade e para a faceta complementar de autor de livros, pelo facto de não saber fazer mais nada e ter sido expulso das Forças Armadas. Diz ele. A explicação da mãe é mais linear: "Quando nasceu, percebi logo que ia ser mau ou louco. Felizmente, é louco!"
As mães lá sabem. E a verdade é que os factos - parte deles, pelo menos - confirmam esta visão maternal da estranha incapacidade de "Ran", como é conhecido dos britânicos, para estar quieto. Veja-se a carreira militar, por exemplo. O sonho confesso do jovem Sir Ranulph Twisleton-Wykeham-Fiennes, 3.º baronete, era chegar ao comando de uma unidade militar escocesa, como o seu pai, de quem herdou o título praticamente à nascença, uma vez que o progenitor morreu em combate na batalha de Monte Cassino, Itália, durante a II Guerra Mundial, no ano do seu nascimento (1944).
Se a ambição era séria ou meramente fruto da necessidade de um jovem bem nascido encontrar algo para fazer, nunca saberemos. Porque Ranulph, de facto, inscreveu-se na tropa e até conseguiu, após uma pequena batota que envolveu apanhar um táxi para cumprir o trajecto de uma marcha em autonomia durante as provas de selecção, entrar para um ramo das forças especiais, o SAS. Mas, desgraçadamente, foi expulso alguns meses depois.
Deixemo-lo explicar, em testemunho passado à revista Legion, órgão oficial da Real Legião Britânica, o que se passou nesse Verão de 1965: "Um antigo colega de escola contou-me os seus planos para destruir a barragem de sacos de areia erguida em Castle Combe - era uma aldeia bem bonita e a 20th Century Fox queria estragá-la para filmar Dr. Doolittle. Ele decidira fazê-lo na noite antes de [o actor Rex Harrison] chegar para as filmagens, como forma de protesto em nome dos aldeões. Eu tinha um curso de explosivos e tornara-me muito bom a mandar coisas pelos ares com um mínimo de material. No final de cada dia, não devolvia o excedente, considerando que tinha 'ganho' o direito de o manter. Podia vir a dar jeito... E assim, durante dois meses, o meu carro foi-se enchendo de explosivos. Pediram-me para criar uma diversão, o que eu fiz, usando material incendiário."
Bom, a coisa não correu bem. Na verdade, avisada por uma denúncia anónima, a polícia interveio e, apesar de ter aplicado as suas técnicas recém-aprendidas de evasão para iludir os cães (mergulhou num ribeiro e respirou por uma palhinha), Ranulph Fiennes foi apanhado no parque de estacionamento. "Fiquei muito aliviado por ter sido multado em 500 libras e não condenado a cumprir pena de prisão, mas fui imediatamente expulso do SAS. E então capacitei-me de que nunca iria cumprir o meu sonho de infância, uma vez que os Royal Scots Greys não quereriam para comandante um tipo condenado por fogo posto..."
Parente da rainha
Diz-se que um militar é sempre um militar e, portanto, o jovem parente afastado da rainha Isabel II (e, já agora, terceiro primo do actor Ralph Fiennes) continuou de olhos postos na tropa. Faltavam-lhe dois anos de comissão e as perspectivas de carreira não estavam boas. Emigrou, para trabalhar junto do Exército do sultanato de Omã, a braços com uma rebelião de inspiração comunista. Fiennes percebe que o regime é mau, mas gosta ainda menos da hipótese de uma ditadura vermelha, pelo que se entrega de alma e coração à sua missão. Comanda um pelotão de reconhecimento que se infiltra por diversas vezes em território inimigo e recebe uma condecoração por bravura.
Mas, aos 26 anos, o caminho chegava, novamente, a uma bifurcação. E aí entra Virgínia (Ginny) Pepper, a namoradinha de infância (conheceram-se tinha ele 12, recém-chegado da África do Sul, e ela nove; começaram a namorar quatro anos depois) e sua futura mulher, até morrer de cancro no estômago, em 2004. Foi ela quem contactou um agente literário especializado em livros de aventura, que depois convenceu Fiennes a passar à escrita a sua aventura de hovercraft no Nilo Branco. Nascia um grande comunicador (já escreveu 16 livros), embora no começo, recorda ele, tenha falado muitas vezes em "terriolas de província para audiências constituídas por mulheres acima dos 70 anos...".
A crescente fama do ex-militar permite-lhe agora encontrar apoios para novas explorações e aventuras. Foi à Noruega, deu a volta ao mundo pelos pólos, liderou a expedição que descobriu a cidade perdida de Ubar, em Omã (1992), atravessou a Antárctida a pé (1995), tentou chegar a solo e em autonomia ao pólo Norte (2000). Um acidente nesta última viagem provoca-lhe queimaduras de gelo em todos os dedos da mão esquerda. No regresso, e perante a insistência do médico em esperar algum tempo até amputar as zonas necrosadas, Ranulph Fiennes pega numa serra eléctrica e trata do assunto em casa...
Por esta altura já ele assenta muitos dos seus projectos em iniciativas de caridade, recolhendo donativos para um fundo de luta contra o cancro. Injustiça suprema, essa mesma doença que, entre 2004 e 2005, lhe levou, em 18 meses, a mulher, a mãe e duas irmãs. Antes, ele próprio enfrentara a morte, quando um ataque cardíaco o apanha a entrar para um avião no aeroporto de Bristol - esteve três dias em coma, foi submetido a um duplo by-pass e, durante a intervenção, o seu coração parou 13 vezes.
Para um homem já quase na casa dos 60, isto poderia ser o fim da linha. Mas não para quem, quando está em casa, corre todos os dias duas horas no parque nacional de Exmoor, para manter a forma. E, por falar em corrida, eis que o maior aventureiro vivo do planeta volta a surpreender: quatro meses depois de o coração ter falhado, anuncia o ambicioso projecto de correr sete maratonas em sete continentes, em sete dias consecutivos!
Vigiado de perto pelo seu parceiro e médico Mark Stroud (que, na dúvida, se fez acompanhar de um desfibrilhador), cala as vozes que o acusam de estar completamente louco. Ou talvez não: segundo ele, o cardiologista autorizou-o a correr as maratonas desde que o seu ritmo cardíaco não ultrapassasse as 130 batidas por minuto, mas Fiennes esqueceu-se de levar o monitor e, portanto, ainda hoje não sabe se cumpriu as ordens do médico...
Entre os dias 26 de Outubro e 1 de Novembro de 2003 cumpre os 42.195km na Patagónia, Falkland (fazendo as vezes de Antárctida, que o mau tempo não permitiu alcançar), Sydney, Singapura, Londres, Cairo e Nova Iorque. No final, admite que não voltaria a fazer tal coisa, mas a sua proeza enche os cofres da British Heart Foundation e torna-o ainda mais famoso.
Não queria ser um vegetal
A tragédia pessoal que se abate sobre ele em 2004, com a morte da mulher, poderia ter sido (mais) um ponto final nesta sede de viver. "Foi um período muito mau, de facto", confessou em entrevista à revista Voyager. "Estava num casamento feliz há 36 anos. Quando ela desapareceu, depois do cancro, eu tentava desesperadamente não sucumbir e tornar-me num vegetal, e havia um grave perigo de isso acontecer. Muitas pessoas morrem depois do desaparecimento dos seus entes mais queridos e mais próximos." É preciso encontrar um objectivo, uma missão.
Entra em cena o alpinismo (Ginny nunca lhe permitira passar das aventuras "horizontais" para as "verticais"). Em 2005, Sir Ranulph tenta escalar o Evereste (novamente com a missão de angariar fundos para caridade), mas abdica a 400 metros verticais do cume, vítima de um colpaso - "Sentia-me como se tivesse um elefante sentado no peito." Há quem encare este falhanço como sinal de que o velho leão está cansado; outros acusam-no de exibicionismo, argumentando que o Evereste é só nome e não envolve grande talento de escalada.
Orgulho ferido ou pura determinação, Fiennes, que entretanto combatera com sucesso um cancro na próstata, treina-se durante dois anos em Chamonix e decide enfrentar os críticos. Apesar de ter um problema severo de vertigens, anuncia o próximo objectivo: vai escalar a face norte do Eiger, uma das vertentes mais dramáticas e assassinas dos Alpes. Aparentemente, passar cinco dias numa parede vertical de gelo e rocha com mais de 1500 metros de desnível, batida por ventos fortes e propensa a avalanchas é a melhor maneira de enfrentar as vertigens e provar que sabe escalar (mesmo sem as falanges dos dedos da mão esquerda...).
"Foi a experiência mais aterrorizadora da minha vida", confessou depois. A rota levou-o a viver cinco dias e quatro noites pendurado e exposto aos elementos, a escalar passagens para lá da vertical e a ter mesmo de olhar para baixo (o maior terror dos que sofrem de vertigens), sob pena de não ver onde punha os pés. Em Março de 2007, apoiado pelo guia Kenton Cool e pelo fotógrafo Ian Parnell, triunfa onde dezenas de alpinistas perderam a vida.
Por esta altura, já o imparável aventureiro se tinha casado de novo, com Louise Millington, 23 anos mais nova, que conhecera meses depois da morte de Ginny e que, um ano antes (em Abril de 2006), dera à luz a sua primeira filha, Elizabeth. Nem os fascínios da paternidade o prendem ao lar. Talvez a nova esposa não o apoie tanto como a primeira (que foi mesmo galardoada com a medalha polar, apesar de nunca ter participado em qualquer expedição), mas também não tem ilusões de uma vida sossegada: "Não teria começado uma relação com um homem de 60 anos à espera que ele mudasse", assumiu ela.
E assim foi. Em 2008, nova tentativa na montanha mais alta da Terra. "A minha mulher não está nada contente", explicou ele ao The Times antes da partida, "mas não conseguiu impedir-me de ir." Desta vez, o coração aguenta, mas o cume continua a iludi-lo. Ranulph Fiennes, lorde e par do reino, educado em Eton, em tempos candidato a substituir Sean Connery no papel de James Bond (chegou a fazer audições) e agora já com idade para se reformar, insiste. À terceira é de vez. Na semana passada pisou o cume do Evereste.
Não lhe perguntem porquê. Apesar de alguns comentadores falarem de "masoquismo, idiotismo aristocrático, idealismo deslocado e personalidade gravemente atormentada", como recorda o jornal The Guardian, talvez a melhor definição do subconsciente deste homem de modos simples tenha sido dada por um psiquiatra que o analisou em detalhe: "Foi como mexer no vazio com uma colher de chá", admitiu Anthony Clare. Em declarações à BBC News, Ranulph Fiennes, o único homem no mundo a ter chegado aos pólos a pé e escalado o Evereste, foi bem mais directo ao assunto: "Não sou de filosofar." a

lfrancisco@publico.pt

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