É brilhante este Brillante

É para já a obra maior da competição de Cannes: Kinatay, do filipino Brillante Mendoza.
Uma viagem ao fim da noite de Manila que nos faz cúmplices de uma barbaridade

a Um susto de filme. Como quem não quer a coisa, pega no espectador mais ou menos desprevenido, mais ou menos inocente - porque nunca se é, completamente - e leva-o pela noite dentro até ao fim da noite. Não há forma de abandonar a viagem, mesmo quando começamos a encontrar na escuridão os contornos da brutalidade. Estamos encurralados na passividade do voyeurismo. E mesmo que acabemos a viagem razoavelmente imaculados, seguros - porque nunca saímos assim, completamente, de um filme -, nunca nada vai ser igual. É essa a experiência do espectador de Kinatay, do filipino Brillante Mendoza, obra brutal, para já o filme maior da competição de Cannes. Nada vai ser igual a partir de agora em relação ao cinema de Mendoza, o que não é nada que estivéssemos a pedir, um momento de epifania com a obra deste realizador de 49 anos que começou a fazer filmes há cinco, vindo da publicidade e do teatro, e que esteve em concurso em Cannes o ano passado com Serbis.Essa viagem do espectador pelo horror é a viagem do protagonista de Kinatay - em filipino, Chacina. Um estudante na academia de polícia de Manila, já com um filho e um casamento na linha do horizonte mais próximo - e Manila amanhece no início de Kinatay - não se pode dar ao luxo de prescindir de fazer trabalhinhos por fora, de pactuar, despreocupadamente, com o milieu da droga. Nada que afecte o seu projecto de inocência.
Até que entra numa carrinha - começa a anoitecer em Manila -, onde vai passar grande parte desta viagem. Ao lado destes gangsters aparentemente de trazer por casa e de uma prostituta que não cumpriu as suas obrigações. Já é noite em Manila quando a carrinha, o aprendiz, os gangsters e a prostituta (desmaiou devido aos murros) chegam a uma casa. Aí o serviço vai ser completo - o título do filme é Chacina.
Começa a amanhecer em Manila quando um estudante da academia de polícia regressa a casa, exausto. Adormece no táxi. É manhã em Manila.
Não há elipses assim em Kinatay. Como se tinha percebido pela forma como a câmara do realizador percorria um cinema porno no anterior Serbis (a Lusomundo lança-o directamente em DVD, com o título Serviços), Mendoza faz todo o caminho e vai até ao fim. Kinatay é uma extraordinária experiência do tempo: deixa-nos a sensação de filme em plano único, que vai incorporando a mudança ao longo do caminho, que se vai transformando - do dia para a noite, literalmente, depois outra vez para o dia. É uma angustiante experiência com o espaço: em grande parte do filme estamos dentro de uma carrinha; em outra grande parte estamos dentro de uma casa vazia, tacteamos a escuridão, com os gritos em fundo.
Se alguém filmasse no escuro o espectador de Kinatay, como seria a sua expressão de rosto? Insondável, ambígua, culpada e inocente como está no rosto de um cadete da polícia?
"As pessoas podem ver um filme de terror e até ficarem assustadas. Mas eu não queria que as pessoas vissem o meu filme. Eu queria que as pessoas experimentassem o meu filme. Nas Filipinas, é comum esses casos de massacres e depois aparecerem os corpos. Lê-se nos jornais, mostram na televisão. Mas as pessoas já não sentem nada. É entertainment. Eu quis que as pessoas sentissem que não é entertainment", disse o brilhante Brillante Mendoza, é favor fixar este nome.
Os gatos de Ghobadi
É uma viagem a que não se diz não a de No One Knows about Persian Cats, do curdo, iraniano Bahman Ghobadi (Un Certain Regard). O título, explicou o realizador, refere-se ao facto de os gatos, e em geral os animais domésticos, não estarem autorizados a passearem com os seus donos nas ruas de Teerão. Vivem indoors. Assim também ninguém sabe o que se passa no underground da capital iraniana, em que se toca rock, heavy metal e hip hop, música que as autoridades consideram "impura" e que proibiram. Ghobadi, deprimido com a sorte reservada para os seus filmes (não estreiam, estão proibidos, ficam invisíveis), lançou-se numa espécie de catarse: tendo conhecido um casal de músicos, acabados de sair da prisão (por serem músicos) mas nada derrotados em relação ao desejo de conseguirem um visto e um passaporte que os permita tocar em festivais internacionais, montou, em 15 dias, improvisando um argumento, jogando às escondidas com a polícia, um "falso documentário". Isto é: é tudo verdade, as histórias que se contam, as pessoas que participam no filme (aconteceu-lhes a elas), e é tudo recriado. Com um indesmentível orgulho - mostrar a energia de uma cidade que se aloja nas caves, que está escondida nas casas - e com uma não menos indisfarçável tristeza. E No One Knows about Persian Cats é já um dos títulos acarinhados do festival. Mas é preciso dizer que o filme tem a insustentável leveza de um guia turístico. Mesmo que seja pelo underground.

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