Torne-se perito

Na coroa está a bala usada no atentado contra João Paulo II

É da autoria de um famoso santeiro do início do séc. XX, José Ferreira Thedim, que lhe fez depois algumas alterações. Retirou-lhe, por exemplo, as sandálias iniciais

a Já tem 89 anos e sai pouco, apenas em ocasiões muito especiais. Tem à sua volta um séquito de servidores, que não deixam que uma mancha lhe estrague as roupas e, nunca, mas nunca, lhe tocam sem usar um par de luvas. Todas as noites, sai da sua redoma de vidro para um local mais protegido. A imagem da Nossa Senhora de Fátima que habita a Capelinha das Aparições, no Santuário, não tem valor estimado. Hoje e amanhã vai estar em Lisboa e Almada. Todos os seus passos foram já ensaiados.Nos últimos dias, Francisco Andrade, da Servitas, repetiu ao milímetro os caminhos que a imagem irá percorrer. Sabe dizer de cor a altura em que a estátua de 1,10 metros, feita de cedro brasileiro, deixará o seu estojo protector de pele branca, completamente almofadado, para, com todo o cuidado, ser transferida para o andor. Não aquele onde costuma repousar, como aconteceu quarta-feira, nas celebrações do 13 de Maio, mas um outro, também emprestado pelo Santuário. Três parafusos prenderão a estátua de madeira, saída das mãos do santeiro José Ferreira Thedim, de S. Mamede de Coronado, em 1920. Francisco Andrade diz que estas saídas raras da imagem não são um momento de aflição, antes de "responsabilidade". "É claro que pode acontecer um imprevisto, mas está tudo ensaiadíssimo", garante.
A imagem vai viajar até Lisboa num carro não identificado, acompanhado por agentes policiais que seguirão, também, numa viatura descaracterizada. Nas portagens de Alverca passará a ter acompanhamento policial bem visível, em motos que escoltarão a comitiva até ao Hospital de Dona Estefânia. Quinze membros da Servitas estarão, em permanência, envolvidos na "peregrinação" da imagem religiosa, que deverá chegar a Almada a bordo de um barco da Marinha. O objectivo é que tudo corra sem falhas, para que no domingo, a estátua já repouse, de novo, no Santuário.

Feita para ofertaA imagem que milhares de pessoas em todo o mundo veneram foi feita por um dos mais famosos santeiros do início do século passado - José Ferreira Thedim. Foi uma oferta a Fátima de um homem de Torres Novas, Gilberto dos Santos. Diz-se que a estátua de rosto sereno foi feita seguindo instruções da irmã Lúcia, mas Marco Daniel, responsável pelo Departamento de Arte e Património do Santuário de Fátima, garante que nada confirma essa teoria. "Não se pode afirmar com exactidão que a irmã Lúcia tenha falado com Thedim para esta primeira imagem. Sabemos que foi interrogada pelo cónego Manuel Formigão, que tirou diversos apontamentos e os terá passado ao santeiro". A imagem terá sido, aliás, baseada no modelo da S.ª da Lapa, "com algumas adaptações" - deveria vestir toda de branco e ter as mãos postas à altura do peito.
O especialista explica que a mais famosa de todas as imagens de N.ª S.ª de Fátima não permanece tal e qual foi criada. Nos primeiros anos, sempre que foi necessário restaurá-la (sobretudo ao nível da pintura), regressava à oficina de Thedim, que terá, por mote próprio, procedido a algumas alterações. Entre Outubro de 1951 e Maio de 1952, o santeiro teve consigo a sua criação original e retirou à imagem as sandálias simples que lhe calçara no início, deixando os pés nus. A manga dupla das vestes tornou-se uma só. O objectivo era tornar a imagem "mais depurada", aqui sim, seguindo instruções da irmã Lúcia, que já na década de 40 contribuíra com as suas descrições para uma outra imagem de Fátima - aquela que a representa com o coração exposto.
A outra grande alteração introduzida à imagem da Capela das Aparições foi a criação da coroa, que também usa pouco - mais uma vez, apenas em ocasiões especiais. Em ouro e coberta de pedras preciosas oferecidas pelas mulheres portugueses, depois de uma campanha de recolha de jóias, a peça foi feita na casa Leitão & Irmão, de Lisboa, e colocada na imagem, pela primeira vez, em 1946. Motivo da oferta: o facto de Portugal não ter entrado na 2.ª Guerra Mundial - assim como o próprio Cristo-Rei.
Desde 1984 que possui também a bala usada no atentado realizado pelo turco Ali Agca contra o Papa João Paulo II, a 13 de Maio de 1981, no Vaticano. "A coroa tinha um orifício no centro, por baixo do globo terrestre, onde a bala encaixou perfeitamente. O bispo de Leiria-Fátima achou isto providencial e a verdade é que as medidas são as mesmas, mas acho que podemos entendê-lo como coincidência", diz Marco Daniel.

Há mais dez imagensO Santuário tem dez outras imagens, denominadas "peregrinas", algumas das quais também feitas por Thedim, que têm como característica serem mais simples que a original. A tal depuração de que Marco Daniel fala. São elas que, quase sempre, viajam para todos os cantos do mundo, quando tal é solicitado. A primeira imagem fica no Santuário. Esta é apenas a décima vez que sai. O resto do tempo fica (quase todo) na Capelinha das Aparições, protegida por uma redoma, sobre uma coluna situada no local exacto onde estava a azinheira junto à qual Lúcia, Francisco e Jacinta afirmaram ter visto e ouvido a Nossa Senhora. Pouco antes da meia-noite, todos os dias, é retirada e levada para outro local, só regressando de manhã, antes da primeira celebração. Uma tradição que remonta aos primeiros tempos da presença da imagem no local, quando o culto ainda não tinha sido oficializado pela Igreja. Todas as noites, a imagem era transportada para casa de uma crente, Maria Carreira, e, por causa disso, diz-se, escapou incólume ao atentado que destruiu a Capelinha, em 1922.

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