Torne-se perito

A maldição do Ministério da Cultura

Um grupo de personalidades ligadas à cultura vai lançar um manifesto apelando à refundação das políticas do Estado para o sector. Os signatários arrasam a actual gestão de Pinto Ribeiro, um ministro que, ao contrário de Isabel Pires de Lima, até tinha gerado boas expectativas nos meios culturais. Desde que Carrilho deixou o lugar, tem sido difícil encontrar um sucessor convincente. O que hoje preocupa o ministro de Guterres é ver o ministério conquistado em 1995 ir encolhendo a ponto de um dia poder voltar a caber nas dimensões de uma secretaria de Estado. Por Luís Miguel Queirós

a Desde que Manuel Maria Carrilho abandonou o segundo Governo de António Guterres, em Julho de 2000, alegando que deixara de dispor dos meios financeiros necessários para levar por diante as políticas que lançara, o lugar de ministro da Cultura parece estar amaldiçoado. O melhor que conseguiu algum dos seus seis sucessores foi passar razoavelmente despercebido. E nenhum deles durou muito. A antecessora imediata de José António Pinto Ribeiro levava apenas dez meses de cargo quando teve de enfrentar uma petição com quase duas mil assinaturas, na qual se pedia a José Sócrates que pusesse travão ao "somatório de contradições, desconhecimentos, desrespeitos e incompetência que tem caracterizado o desgoverno da Profª Drª Isabel Pires de Lima".
O filme repete-se agora, com algumas variações. Dentro de dias, um grupo de figuras com trabalho reconhecido na criação e na gestão cultural - e que inclui, entre outros, os cineastas João Mário Grilo e João Botelho, os encenadores Ricardo Pais e Joaquim Benite, o coreógrafo Paulo Ribeiro, o músico Pedro Abrunhosa, a ex-directora do Instituto Português de Museus (IPM) Raquel Henriques da Silva, os editores João Rodrigues e Carlos Veiga Ferreira, a directora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, e o actual responsável do Museu Nacional de Arqueologia, Luís Raposo - vai divulgar um manifesto que apela à "refundação das políticas culturais do Estado português". O P2 falou com alguns deles e o diagnóstico que traçam destes 15 meses que Pinto Ribeiro leva em funções é bastante negro.
"Temos tido péssimos ministros", diz Raquel Henriques da Silva. "Queixavam-se da Isabel Pires de Lima, e a imprensa foi às vezes indecente com ela, mas era uma magnífica ministra ao pé deste senhor, o que também é fraca consolação". Tendo sido "muito crítica em relação a algumas medidas de Carrilho", a ex-responsável do IPM não tem hoje dúvidas: "Foi o único ministro da Cultura que tivemos, e trabalhei com mais três a seguir a ele. Acusavam-no de ser arrogante, mas ouvia os directores-gerais".
Enquanto não se diluir a memória do seu consulado, parece que Carrilho está mesmo condenado a ser o fantasma residente dessa espécie de casa assombrada em que se tornou o Ministério da Cultura.
Mas também se pode procurar a explicação para os sucessivos desaires dos posteriores inquilinos num motivo mais prosaico. É o que pensa Rui Vieira Nery: "O ministério não tem dinheiro, e essa é a questão central", diz o musicólogo, que foi secretário de Estado de Carrilho e bateu com a porta ainda no primeiro Governo de Guterres. "Enquanto não se assumir a Cultura como uma prioridade política, percebendo que ela faz parte do pacote de desenvolvimento, os defeitos ou as qualidades dos ministros são irrelevantes: tanto faz estar lá o general Tapioca como o general Alcazar."
De facto, se nem todos os ministros pós-Carrilho foram tão violentamente atacados como Pires de Lima, só talvez de Augusto Santos Silva, que sucedeu a José Sasportes, se possa dizer que fez um lugar razoavelmente tranquilo. Vindo da pasta da Educação, o hoje belicoso responsável dos Assuntos Parlamentares geriu a Cultura de forma bastante discreta, pelo menos em comparação com o calculado protagonismo público de Carrilho. Não galvanizou os meios culturais, mas também não criou oposição de monta. Ao contrário de Sasportes, que olhava com desconfiança a excessiva intervenção do Estado na Cultura, Santos Silva identificava-se mais com a filosofia de Carrilho. E sempre tinha ainda algum dinheiro para gastar, além de que possuía um traquejo político bastante superior ao de qualquer um dos que lhe sucederam.
Com a chegada ao poder do PSD de Durão Barroso, em 2002, o lugar foi oferecido a Pedro Roseta, um político respeitado, mas que não respondia propriamente ao que se poderia esperar de um ministro da Cultura no século XXI. Entretinha-se a percorrer o país, honrando com a sua presença as mais dispares iniciativas - na sua primeira visita ao Porto, aproveitou, por exemplo, para dar um salto à festa popular da Rádio Festival -, e, onde quer que fosse, brindava a assistência com longos discursos de registo pedagógico.
Era o quarto ministro em dois anos. Criticadíssimo na imprensa, ainda se aguentou até à saída de Barroso para a Europa. Santana Lopes escolheu então Maria João Bustorff, que também se revelou um erro de casting, e cuja medida mais emblemática - e muito contestada - foi a de dividir o ministério em duas secretarias de Estado, transferindo para Évora a dos Bens Culturais.
Parecia um tipo com garra
Quando José Sócrates escolheu Pinto Ribeiro para substituir Isabel Pires de Lima, passada a surpresa inicial de a opção ter recaído numa figura que parecia mais vocacionada para uma pasta como a da Justiça, criou-se a expectativa de que, pela primeira vez desde Carrilho, poderia ter-se encontrado um ministro capaz de voltar a fazer a diferença.
O país conhecia-o dos muitos debates televisivos em que participou enquanto responsável do Fórum Justiça e Liberdades, nos quais mostrou ter o dom da palavra e uma inegável capacidade argumentativa, que, no tempo que lhe deixava livre a sua bem sucedida carreira como advogado comercial, se empenhava em colocar ao serviço de causas cívicas. Tinha ainda a vantagem de se dar bem com a banca, o que prometia facilitar-lhe a vida no que respeitasse ao mecenato e a eventuais parcerias com o sector privado.
É certo que o seu currículo na cultura era mais ou menos inexistente, descontada a algo dúbia excepção de ter sido administrador da Fundação Bernardo, escolhido por consenso entre o Estado e o banqueiro. Mas não lhe faltavam amigos de longa data entre figuras prestigiadas dos meios culturais, e várias delas vieram publicamente testemunhar que Pinto Ribeiro era um homem genuinamente culto. Jorge Silva Melo contou mesmo que o novo ministro lhe fora apresentado por Eduardo Prado Coelho, na segunda metade dos anos 60, como sendo "o homem mais inteligente de Lisboa".
No entanto, o director dos Artistas Unidos não parece estar hoje muito entusiasmado com o que tem sido a política do MC no âmbito do teatro. Num artigo que assinou no P2 no Dia Mundial do Teatro, a 27 de Março, pergunta: "Pois não está, neste momento, toda a profissão teatral em Portugal a trabalhar de graça, com salários em atraso ou de miséria, por pura incapacidade das autoridades chamadas 'culturais', burocratas enredados numa teia de dossiers impraticável e que sobre eles tende a desabar?".
Paulo Ribeiro, que, a par do trabalho na sua companhia de dança, dirige a programação do Teatro Viriato, em Viseu, também chegou a depositar esperanças no novo ministro, que, diz, "parecia ser um tipo com garra", mas não tardou a decepcionar-se, ainda que não o distinga especialmente dos seus antecessores. "O problema é que os ministros mudam e, mesmo quando são da mesma cor política, nem dão continuidade ao que os anteriores fizeram de bom, nem rompem com o que fizeram mal."
Ao contrário dos autores da petição contra Pires de Lima, que ainda acreditavam que as coisas se resolviam pedindo a Sócrates a cabeça da ministra, o grupo que agora vai lançar um manifesto para a refundação das políticas culturais - prevê-se que seja divulgado ainda nesta primeira quinzena de Maio - já não acredita em meras trocas de nomes. O manifesto não será, de resto, entregue a José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, mas sim a todos os partidos que concorrem a eleições.
O objectivo, explica o jornalista e crítico de música Jorge Pereirinha Pires, é o de aproveitar as eleições que se avizinham e desafiar os partidos a comprometer-se com um "caderno mínimo de encargos" no sector da Cultura. "Somos um conjunto de pessoas diversificado, e o que nos une é a convicção de que é preciso tomar medidas urgentes e que já não é possível aguentar mais quatro anos disto", diz Pires, que foi adjunto de Carrilho no seu primeiro mandato.
Os autores do manifesto não se ficarão pela crítica. Estão neste momento a ser ultimados documentos sectoriais, que irão propor princípios e linhas de actuação para os vários domínios de intervenção do MC, desde o património e os museus, passando pelo cinema, as artes do palco ou a música, até à política do livro e da leitura. Ou seja, uma espécie de novos Estados Gerais, como os que o PS de Guterres promoveu antes de chegar ao poder, mas desta vez fora do âmbito partidário.
Não somos uma corte
Não decerto por acaso, o documento Uma Agenda para a Cultura, anunciando o futuro manifesto, foi divulgado uma semana após ter chegado à imprensa o texto A Cultura Contra a Crise, que Carrilho enviara à Fundação Res Pública, do PS, e no qual afirma que a política cultural se tornou "cada vez mais invisível, ilegível e incompreensível, ameaçando fazer, dos anos 2005/09, uma legislatura perdida para a Cultura".
Um texto que, na opinião do crítico Augusto Manuel Seabra, expressa num artigo escrito para o blogue Arte Capital, vem mostrar que a "verdadeira oposição" à actual política do MC - "um discurso de tal modo consistentemente crítico", argumenta, "não pode deixar de ser considerado de oposição" - "estava afinal na bancada da maioria" socialista. Muito crítico do consulado de Pires de Lima, de quem afirma que "acumulou disparates e prepotências", Seabra vê em Pinto Ribeiro um "ministro inexistente" e diz que o MC "está paralisado".
Carrilho, hoje embaixador de Portugal na Unesco, diz que escreveu o documento, se não com a convicção, pelo menos com a esperança de que este pudesse dar origem a um debate sério no interior do PS. Só quando se tornou óbvio que isso não ia acontecer é que decidiu divulgá-lo na imprensa.
Se o objectivo era lançar, nos meios culturais, a discussão que não tinha conseguido desencadear no seu partido, não há dúvida de que foi bem sucedido. Os autores do manifesto subscrevem o seu diagnóstico e, no essencial, adoptam as suas propostas, designadamente a de se voltar a assumir, como meta a médio prazo, um por cento do Orçamento de Estado (OE) para a Cultura. Mas também a necessidade de que o MC seja rapidamente reinvestido de uma visão estratégica e de políticas sectoriais claras e bem estruturadas.
Ainda que sem nomear Pinto Ribeiro, Carrilho lamentava, no seu texto, "a atonia e a desorientação que têm marcado áreas tão vitais como as do livro e da leitura, do cinema e do audiovisual, em que não se vislumbram, ao nível da tutela do sector, quaisquer opções, orientações ou políticas".
Talvez consciente de que uma colagem excessiva pode criar a ideia de que o movimento que integra tem uma agenda escondida, Raquel Henriques da Silva garante: "Não somos a corte de Carrilho, nem temos um ministro na manga".
É evidente, no entanto, que o consulado do ex-ministro é a referência que está na cabeça dos promotores do manifesto, e eles não o negam. O director do Museu Nacional de Arqueologia, Luís Raposo, que, tal como Raquel Henriques da Silva, teve vários diferendos com Carrilho, reconhece que este tinha "um conceito audacioso de Cultura e uma visão profissional do papel do Estado", distante do "casulo das pequenas influências" e do "amadorismo de salão" que desde então vê imperar.
O encenador Joaquim Benite, director da Companhia de Teatro de Almada, acha que Carrilho "foi o único ministro que não se limitou a uma administração casuística dos dossiers". João Mário Grilo diz que o ex-ministro "é uma referência importante para muitas pessoas" porque a actividade do seu ministério se fundava num "enunciado político claro".
Os homens da Regisconta
Entre as principais críticas que este grupo dirige directamente ao actual ministro está justamente o alegado carácter avulso das medidas que toma. Mas também o modo como se vem demitindo de tomar posição em assuntos que lhe deveriam dizer respeito. Raquel Henriques da Silva dá o exemplo do polémico projecto de construção de um novo Museu dos Coches, que partiu de uma iniciativa do ministro da Economia, e sobre o qual Pinto Ribeiro evitou emitir uma opinião clara, afirmando que se tratava de uma decisão do Governo.
A ex-responsável dos museus também acha estranho que tenha passado em silêncio a recente demissão, pelo ministro das Finanças, da directora e do vice-director da Direcção-Geral do Livro e da Bibliotecas, Paula Morão e José Manuel Cortês, que não terão apresentado nos prazos previstos os relatórios de avaliação dos seus subordinados. "Sei da qualidade absoluta do trabalho deles, e a sua demissão é de um autoritarismo que tem a marca deste Governo e deste primeiro-ministro."
O músico Pedro Abrunhosa sugere mesmo que, em última análise, o homem a substituir é José Sócrates. Num artigo publicado no mês passado no Diário de Notícias, recorda que "este Governo dotou o Ministério da Cultura com o mais baixo orçamento de sempre" e, embora não desculpabilize Pinto Ribeiro - "o ministro sabe que esta verba desonra os agentes culturais e a si próprio" -, pergunta-se se a solução não passará "pela mudança pura e simples do primeiro-ministro".
Outra crítica unânime é a que aponta para a crescente burocratização da Cultura. Ricardo Pais, que conduziu o Teatro Nacional de S. João (TNSJ) na sua passagem a Entidade Pública Empresarial, diz que o cargo de presidente do Conselho de Administração, que acumulava com o de director artístico, se tornou "um martírio". Explicando que a equipa teve de aprender gestão empresarial de um dia para o outro, e que toda essa formação foi feita às custas do orçamento do TNSJ, sem qualquer apoio do Estado, o encenador, que decidiu deixar ambos os cargos no início deste ano, acusa o Estado de "exigir relatórios a toda a hora", quando "não cumpre os seus mais elementares deveres regulares e legais".
Admite que ainda chegou a alimentar algumas expectativas de que a co-tutela das Finanças - que o TNSJ passou a ter, por força do seu novo estatuto - pudesse trazer alguma competência específica, mas rapidamente se desiludiu. O contrato-programa, um documento que deveria estruturar toda a actividade do teatro, foi recebido com mais de um ano de atraso. Para já não falar do seu próprio contrato de gestão, do qual ainda hoje está à espera, embora tenha deixado há meses o TNSJ.
Joaquim Benite lamenta que o peso da burocracia nos concursos a financiamentos seja cada vez maior e que a complexidade dos formulários obrigue os responsáveis das companhias a perder boa parte do seu tempo a tentar dar-lhes resposta. Isto quando chegam a perceber o que o Estado quer. O encenador recorda que o formulário de candidatura aos fundos comunitários do QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional) "estava tão cheio de contradições e ambiguidades que se tornava incompreensível". Ninguém conseguiu entregá-lo até final de Março, como estava previsto, e o Governo acabou por alargar o prazo até 30 de Abril, mas só publicou os esclarecimentos às múltiplas dúvidas suscitadas pelas companhias a 17 de Abril, o que lhes deixou pouco mais de uma semana "para apresentar candidaturas que envolvem o envio de centenas de documentos".
Raquel Henriques da Silva garante que "quem fez o PRACE [Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado] não percebe nada de Cultura" e evoca um célebre anúncio publicitário para explicar que, no MC, "a remodelação dos institutos foi feita com homens e mulheres da Regisconta, que entravam por ali dentro, punham os óculos escuros e faziam as reformas segundo critérios de pura e estúpida rentabilidade".
Rui Vieira Nery, que não está envolvido no manifesto, de cuja eficácia, aliás, duvida, concorda que a burocracia tem aumentado, mas acha inevitável que assim fosse. "Quando não há dinheiro para distribuir, a burocracia tende sempre a crescer, porque tem um efeito dissuasor e permite ir adiando as coisas". torff
Sem ideias, não há dinheiro
Nery admite que recolocar a Cultura em debate, como se espera que este manifesto faça, é sempre positivo, mas não lhe parece provável que o documento venha a dar origem a mudanças significativas na política cultural. "O poder, em democracia, e ainda bem, está nos partidos políticos", diz o musicólogo, que não acredita que as figuras envolvidas no manifesto, apesar do seu reconhecido prestígio, possam ter aí uma influência decisiva. Para Nery, os Estados Gerais lançados pelo PS no final do cavaquismo, nos quais participou activamente, só puderam ter êxito justamente porque tiveram origem partidária.
A principal fragilidade do manifesto talvez seja essa aparente contradição de apostar tudo em levar os partidos a assumir compromissos eleitorais, quando, ao mesmo tempo, se reconhece que o programa do Governo para a Cultura até é francamente satisfatório, e que o problema é as promessas não serem cumpridas.
Todos estão de acordo que quaisquer soluções passam, antes de mais, por aumentar substancialmente o orçamento para a Cultura. Carrilho vem há muito dizendo que o investimento na Cultura, para lá de ganhos menos contabilizáveis, e que são talvez os mais importantes, é uma aposta inteligente em tempos de crise, porque gera emprego e riqueza. Muitos exemplos europeus o demonstram e, em Portugal, essa estratégia permitiria ainda rentabilizar toda uma nova geração de profissionais da Cultura altamente qualificados, que não tem meios para trabalhar e que se vão limitando a gerir precariamente projectos avulsos. Nery está de acordo e acrescenta: "Se amanhã duplicassem o orçamento para a Cultura, faziam um brilharete e a verba em causa seria irrelevante do ponto de vista do combate ao défice".
O problema é que essa aposta só pode vir de um decisor político, e daí que Nery ache que a melhor esperança para o MC ainda é que "algum político de peso admita assumir o cargo e exija, para o aceitar, os meios financeiros necessários".
A actual desorçamentação do MC é tão gritante que Raquel Henriques da Silva está convencida de que Pinto Ribeiro já se terá arrependido de, logo após a sua tomada de posse, ter afirmado que era possível "fazer melhor com menos dinheiro". Com a generalidade dos organismos directamente dependentes do ministério a contar os tostões para tentar assegurar serviços essenciais, a afirmação poderá ter funcionado para o exterior, mas internamente não caiu decerto nada bem.
A perspectiva de Carrilho sobre a alegada primazia do dinheiro, é ligeiramente diferente da de Nery. Não duvida de que são precisos meios financeiros, mas acha que também só é possível consegui-los quando se tem "projectos consistentes, que tragam solução a problemas reais e que tenham sido bem testados junto dos agentes no terreno". Acredita que "o dinheiro vem atrás das ideias, e não o contrário". E recorda que também teve de conquistar o orçamento de que depois veio a dispor, tendo conseguido aumentá-lo 47 por cento nos quatro anos do seu primeiro mandato. "Se eu fosse primeiro-ministro e um ministro da Cultura quisesse dinheiro sem ter ideias nenhumas, eu também não lho dava."
Regresso à secretaria
Carrilho também é, apesar de tudo, menos céptico do que Nery quanto ao possível impacto de iniciativas como a do anunciado manifesto. "Se uma discussão deste tipo tivesse sido lançada mais cedo, as coisas poderiam ter sido diferentes."
Mas ambos estão de acordo na ideia de que um ministro da Cultura, além de ter de estar tecnicamente preparado para o cargo, precisa de peso político. Carrilho acha que a própria heterogeneidade do campo de intervenção das políticas culturais torna difícil que a solução possa passar por um profissional do sector. "Tem que ser alguém que saiba e que goste de fazer política."
Quando o nome do actual ministro foi anunciado, a imprensa deu eco ao boato de que teria havido uma confusão com origem na semelhança dos nomes e que Sócrates, na verdade, tencionava convidar o programador António Pinto Ribeiro. Verdade ou não, o facto de o boato ter sido levado a sério por muita gente parece indicar que se começa a encarar com naturalidade que um nome saído dessa geração de programadores culturais, que inclui ainda figuras como Miguel Lobo Antunes ou Rui Horta, possa chegar a ministro da Cultura. E o fracasso de sucessivos titulares sem currículo no terreno da produção e gestão cultural ajuda a que esse cenário seja colocado na mesa.
O manifesto não deverá tomar posição nesta matéria, mas pelo menos um dos seus subscritores, Ricardo Pais, não compra a ideia. Não apenas pelos argumentos aduzidos por Carrilho ou Nery, mas também porque acredita que "a qualidade atribuída aos grandes programadores está, em regra, muito inflacionada".
Se muita gente irá ler no manifesto um desejo mais ou menos óbvio de enterrar a política cultural, ou a ausência dela, seguida pelos governos do PSD e do PS desde o fim do guterrismo, e regressar à estratégia lançada por Carrilho, o próprio ex-ministro afirma irritar-se "com essa coisa do carrilhismo", desde logo porque não acredita que a solução passe por se retomar as suas políticas do final dos anos 90, como se nada tivesse acontecido entretanto no mundo. Fenómenos novos, como a da gratuitidade de acesso a diversos bens culturais trazida pela Internet, entre muitos outros, exigem, acredita, soluções inovadoras. O que acha lamentável é que, ao contrário do que vem acontecendo noutros países europeus, "ninguém discuta estas coisas em Portugal".
Para lá da falta de investimento na Cultura e das medidas que considera erradas e que denuncia no texto que escreveu para a Res Publica, como a cedência do CCB para a colecção Berardo ou a construção do novo Museu dos Coches, o que Carrilho acha especialmente inquietante é que a política que vem sendo seguida - quer na progressiva desorçamentação do MC, quer no modo como se estão a fundir organismos em todos os sectores - parece obedecer a "uma lógica de regresso à secretaria de Estado", tal como existiu no cavaquismo, quando foi gerida por Santana Lopes.
Não é nada claro que o manifesto que agora se anuncia consiga inverter este padrão. Mas, diz Raquel Henriques da Silva, "se a gente não defende que há outra forma de fazer política, qualquer dia só há mesmo esta".

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