Foi bonita a festa do SAAL, pá

Foto

Vamos começar esta história pelo fim: no sítio onde ela acaba, em 2006, entre uma estação do metro e uma agência de trabalho temporário, coisas que em 1974 eram da ordem da ficção científica. Durante muitos anos, de 1979 a 2006, o Bairro da Bouça também foi ficção científica: uma coisa que tinha de acabar, a bem ou a mal, mas em que acreditávamos tanto como no teletransporte (a começar pelo autor do projecto, o arquitecto Álvaro Siza: "Quando fomos ter com ele para lhe anunciar que queríamos fazer as 72 casas que tinham ficado no papel em 1979, ele não queria crer. Foi preciso dizer-lhe: olhe que isto é mesmo para arrancar", diz-nos o sr. Cardoso, um dos primeiros moradores do bairro). Foi a última operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) a ficar concluída - todas as outras ficaram a meio. "Nunca me passou pela cabeça que esta operação terminasse. Em 1979, quando a construção foi suspensa, publicaram-se nos jornais fotos daquilo - incompleto, degradado, incompreensível para quem não conhecesse o projecto - como prova da minha incompetência e da incompetência do SAAL. 30 anos depois aquilo foi para a frente - a vida de facto dá muitas voltas", admite Siza. Este é o sítio onde a história acaba, dizíamos - ainda não sabemos é se acaba bem ou se acaba mal.

Perversão?

Também começámos a ver "As Operações SAAL" - o documentário de João Dias que passa desde ontem no Cinema Classic City Alvalade, em Lisboa, fazendo a pequena história do serviço criado em Agosto de 1974 pelo Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, o arquitecto Nuno Portas, para, "em face das graves carências habitacionais (...), fazer arrancar programas de construção convencional a curto prazo (...) e apoiar (...) as iniciativas de populações mal alojadas" - pelo fim. Também é aqui, no Bairro da Bouça, que o filme acaba: com Alexandre Alves Costa, o arquitecto que coordenou o SAAL / Norte, a olhar para as 72 novas casas do bairro, e sobretudo para a segunda geração de moradores da Bouça, e a dizer que a festa foi bonita, pá, mas só enquanto durou: "Estranhamente as casas estão a ser vendidas a arquitectos, e a mim isso repugna-me muito". Dias depois de acabarmos de ver o filme, ele explica-nos porque é que a conclusão do Bairro da Bouça traiu o espírito das operações SAAL: "Os moradores pobres que estiveram anos à espera daquelas casas acabaram por ter de resolver a vida de outra maneira - e as casas que eram para eles foram compradas por pessoas sem problemas de precariedade económica, ao preço da chuva, com o bónus de ser um projecto do Siza, valorizadíssimo, com o qual a Câmara Municipal do Porto fez um figuraço apesar de, no passado, ter boicotado todas as outras operações SAAL". Ganhou-se, diz, "um belíssimo projecto, que mostra bem aquele momento do Siza" - mas que se tornou "completamente irrelevante em termos de habitação social". "Do ponto de vista simbólico, aflige-me que se tenha vindo terminar uma coisa que na altura teria tido uma utilidade social para agora viverem ali meia dúzia de colegas meus bem instalados na vida. Isso é que é perverso na maneira como isto acabou."

São oito da noite no Bairro da Bouça e o sr. Cardoso trata todos os moradores pelo nome - ou por "sr. arquitecto". Há vários a viver e a trabalhar ali - além das 72 casas que tinham ficado por construir, a segunda fase do projecto também fez sair do papel os três equipamentos originalmente previstos (uma biblioteca local, uma lavandaria e uma sede para a cooperativa), onde agora funcionam gabinetes de arquitectura, uma clínica dentária e a tal agência de trabalho temporário. Nuno Brandão Costa, o arquitecto que ganhou o Prémio SECIL de Arquitectura 2008, foi para lá quando um dos equipamentos foi posto à venda: "Estávamos à espera que aparecesse um milhão de pessoas no leilão, como tinha acontecido quando as casas ficaram prontas. Só estávamos nós, foi uma sorte. O projecto é incrível até na maneira como resistiu ao tempo, o sítio é fantástico e o ambiente é óptimo: há os moradores de sempre e depois uma segunda geração de estudantes universitários, arquitectos, designers." É aqui que ele acha "exactamente o contrário" de Alves Costa: "Não há perversão nenhuma. Os tempos mudaram e as pessoas que estão ali são jovens, estudantes, recém-licenciados que tiveram ali a oportunidade de comprar uma boa casa, barata. Hoje as pessoas que lá estão há 30 anos convivem tão saudavelmente com os novos moradores que até já é difícil distingui-los".

Pode não ser o espírito do SAAL - mas é o espírito da melhor habitação social, aquela que nunca se faz. "O Porto é uma cidade segregada: há zonas onde vivem os ricos todos e zonas onde vivem os pobres todos. No Bairro da Bouça a arquitectura conseguiu criar uma cidade plural e democrática em que pessoas de proveniências diferentes vivem em casas todas iguais", continua Nuno Brandão Costa. Álvaro Siza também gosta do que vê: "O que aconteceu é compreensível - e saudável - e também se passou em outros sítios. O Bloco de Marselha do Corbusier, por exemplo: durante anos esteve degradado e foi considerado um fracasso, uma arquitectura socialmente inaceitável. Neste momento está tudo a funcionar porque houve uma geração - de professores, de arquitectos, de intelectuais - que quis ir para lá viver. Enquanto era para os pobrezinhos aquilo era um desastre. Agora é um sucesso".

Uma utopia

Para quem lá está, como o sr. Cardoso, o bairro é de facto um sucesso. Mas dos 350 sócios iniciais da Associação de Moradores da Bouça não são muitos os que ainda lá vivem - na primeira fase só ficaram disponíveis 56 casas, que serviram para alojar as famílias que viviam em condições mais precárias, e quando as chaves das 72 casas da segunda fase começaram a ser entregues, em 2006, já poucos associados apareceram para as reclamar. "Vim para aqui em 1979, isto ainda nem estava pronto. Não havia electricidade nem saneamento, tinha de ir a um quarto de banho improvisado - e já vim para aqui com cinco filhos. Morava numa ilha na Rua da Peneda que estava em ruína e, quando se deu o 25 de Abril, juntei-me com outros moradores. Ocupámos uma antiga tinturaria que tinha deixado de laborar, a Fábrica do Cu para o Ar, e fizemos ali a nossa sede com um infantário, uma cooperativa de alimentação e um salão de festas. Depois fomos para as casas. O nosso lema era 'Casas para Todos'", explica. No sítio onde agora está o Bairro da Bouça ia haver um empreendimento para funcionários do Ministério da Justiça, com projecto do arquitecto Siza, mas a associação ocupou o que havia e acabou por ficar com o terreno e com o projecto, que depois candidatou ao SAAL.

Houve "barulhos e ferradelas" quando as primeiras 56 casas foram distribuídas, "mas as pessoas acabaram por entender que esta era só a primeira fase".
Durante 25 anos, a primeira fase era tudo o que havia. Na década de 90, finalmente, a Associação de Moradores da Bouça conseguiu garantias da autarquia e convenceu o arquitecto a voltar a olhar para o projecto: "O Siza esteve sempre de pé atrás, mas lá veio ver o que era preciso. Tínhamos aí uns chorões que eu tinha plantado no Dia Mundial da Árvore e que me custou ver cortar, mas teve de ser". Na primeira assembleia para atribuir as novas casas, vieram "cento e tal sócios e filhos de sócios".

Ficaram 12. A associação acabou por ter de leiloar as 60 habitações que lhe caíram no colo de um dia para o outro. "As pessoas viram o tempo a passar e as casas a não serem construídas, foram décadas com as calças na mão. Nem as minhas filhas quiseram esperar - foram dar 20 mil contos por um apartamento quando podiam ter dado 12 mil aqui. Foi uma desilusão: estas casas eram para os sócios e eles é que deviam estar aqui, mas paciência: quem pôde ficar ficou", sublinha o sr. Cardoso. 
Ele foi dos que ficaram. Mas 25 anos é demasiado tempo, diz Siza, "e as referências mudaram": "Aquela galeria que lá está servia para continuar o ambiente das ilhas em que havia aquele espírito de solidariedade e de vivência comunitária intensa - forçada mas intensa -, zangas misturadas.

Esse espírito hoje não existe, e a referência passou a ser a casa esquerdo-direito, que as pessoas associam a um modelo de qualidade de vida". Isso é uma coisa que não há ali. E mesmo que houvesse, argumenta Alves Costa, as pessoas perderam a vontade de morar na Bouça quando perceberam que ia demorar demasiado tempo (e, depois, quando o crédito à habitação transformou a construção privada numa alternativa viável): "As pessoas desmobilizaram quando perceberam que a casa não era realizável, e passado pouco tempo até era difícil falar com elas sobre o assunto: era como se o SAAL nunca tivesse existido. Mantiveram recordações da festa, que foi bonita: da manifestação não sei onde, do piquenique não sei quê, disso não se esquecem, do que se divertiram com o processo".

Quem esteve lá dentro lembra-se disso e também se lembra "do desespero, dos bloqueios, da luta quotidiana, de as pessoas quererem as casas e elas não chegarem, da reacção da direita" - e, no caso de Alves Costa, "da bomba no serviço, da bomba no carro, de mudar de caminho muitas vezes à noite, quando voltava para casa depois das reuniões com os moradores". Quem está de fora, como Nuno Brandão Costa - nasceu em 1970 -, lamenta que a experiência do SAAL não tenha resistido à "normalização democrática": "Quando eu estava a estudar, o processo SAAL era uma coisa presente ainda. Muitos dos meus professores fizeram brigadas e foi aí que ensaiaram tipologias e linguagens que são muito a imagem da Escola do Porto até hoje. O SAAL foi um laboratório para aquela faculdade, mas muita da habitação social corrente que se vê por aí, feita nos anos 80, não aprendeu nada com o SAAL, e isso foi um erro".

Para toda uma geração de arquitectos, ainda assim, o SAAL foi fundador: "Internacionalmente, até aí a arquitectura portuguesa era desconhecida e passou a haver um enorme interesse pelo que estávamos a fazer. Eu fui convidado a fazer habitação social em Berlim e em Haia por causa da minha participação no SAAL. Em Portugal continuamos a achar que aquilo foi uma coisa um pouco louca e um pouco degradante, mas na verdade o SAAL deixou marcas em nós e nos outros", argumenta Siza.

Havia uma revolução em curso no país, e isto era o país a construir-se. "O SAAL era uma utopia, mas achávamos que era uma utopia viável. Perguntávamo-nos 'isto será possível, será mesmo verdade?', mas não tivemos muito tempo para perguntas porque um ano e meio depois percebemos que era mentira", acrescenta Alves Costa. Ele vai estar amanhã às 19h15 no Cinema Classic City Alvalade (também há sessões especiais hoje, com o realizador, e no domingo, com o arquitecto e historiador do SAAL José António Bandeirinha) para falar do tempo em que a arquitectura portuguesa queria mudar o mundo, antes de o mundo a mudar a ela.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Vamos começar esta história pelo fim: no sítio onde ela acaba, em 2006, entre uma estação do metro e uma agência de trabalho temporário, coisas que em 1974 eram da ordem da ficção científica. Durante muitos anos, de 1979 a 2006, o Bairro da Bouça também foi ficção científica: uma coisa que tinha de acabar, a bem ou a mal, mas em que acreditávamos tanto como no teletransporte (a começar pelo autor do projecto, o arquitecto Álvaro Siza: "Quando fomos ter com ele para lhe anunciar que queríamos fazer as 72 casas que tinham ficado no papel em 1979, ele não queria crer. Foi preciso dizer-lhe: olhe que isto é mesmo para arrancar", diz-nos o sr. Cardoso, um dos primeiros moradores do bairro). Foi a última operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) a ficar concluída - todas as outras ficaram a meio. "Nunca me passou pela cabeça que esta operação terminasse. Em 1979, quando a construção foi suspensa, publicaram-se nos jornais fotos daquilo - incompleto, degradado, incompreensível para quem não conhecesse o projecto - como prova da minha incompetência e da incompetência do SAAL. 30 anos depois aquilo foi para a frente - a vida de facto dá muitas voltas", admite Siza. Este é o sítio onde a história acaba, dizíamos - ainda não sabemos é se acaba bem ou se acaba mal.

Perversão?

Também começámos a ver "As Operações SAAL" - o documentário de João Dias que passa desde ontem no Cinema Classic City Alvalade, em Lisboa, fazendo a pequena história do serviço criado em Agosto de 1974 pelo Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, o arquitecto Nuno Portas, para, "em face das graves carências habitacionais (...), fazer arrancar programas de construção convencional a curto prazo (...) e apoiar (...) as iniciativas de populações mal alojadas" - pelo fim. Também é aqui, no Bairro da Bouça, que o filme acaba: com Alexandre Alves Costa, o arquitecto que coordenou o SAAL / Norte, a olhar para as 72 novas casas do bairro, e sobretudo para a segunda geração de moradores da Bouça, e a dizer que a festa foi bonita, pá, mas só enquanto durou: "Estranhamente as casas estão a ser vendidas a arquitectos, e a mim isso repugna-me muito". Dias depois de acabarmos de ver o filme, ele explica-nos porque é que a conclusão do Bairro da Bouça traiu o espírito das operações SAAL: "Os moradores pobres que estiveram anos à espera daquelas casas acabaram por ter de resolver a vida de outra maneira - e as casas que eram para eles foram compradas por pessoas sem problemas de precariedade económica, ao preço da chuva, com o bónus de ser um projecto do Siza, valorizadíssimo, com o qual a Câmara Municipal do Porto fez um figuraço apesar de, no passado, ter boicotado todas as outras operações SAAL". Ganhou-se, diz, "um belíssimo projecto, que mostra bem aquele momento do Siza" - mas que se tornou "completamente irrelevante em termos de habitação social". "Do ponto de vista simbólico, aflige-me que se tenha vindo terminar uma coisa que na altura teria tido uma utilidade social para agora viverem ali meia dúzia de colegas meus bem instalados na vida. Isso é que é perverso na maneira como isto acabou."

São oito da noite no Bairro da Bouça e o sr. Cardoso trata todos os moradores pelo nome - ou por "sr. arquitecto". Há vários a viver e a trabalhar ali - além das 72 casas que tinham ficado por construir, a segunda fase do projecto também fez sair do papel os três equipamentos originalmente previstos (uma biblioteca local, uma lavandaria e uma sede para a cooperativa), onde agora funcionam gabinetes de arquitectura, uma clínica dentária e a tal agência de trabalho temporário. Nuno Brandão Costa, o arquitecto que ganhou o Prémio SECIL de Arquitectura 2008, foi para lá quando um dos equipamentos foi posto à venda: "Estávamos à espera que aparecesse um milhão de pessoas no leilão, como tinha acontecido quando as casas ficaram prontas. Só estávamos nós, foi uma sorte. O projecto é incrível até na maneira como resistiu ao tempo, o sítio é fantástico e o ambiente é óptimo: há os moradores de sempre e depois uma segunda geração de estudantes universitários, arquitectos, designers." É aqui que ele acha "exactamente o contrário" de Alves Costa: "Não há perversão nenhuma. Os tempos mudaram e as pessoas que estão ali são jovens, estudantes, recém-licenciados que tiveram ali a oportunidade de comprar uma boa casa, barata. Hoje as pessoas que lá estão há 30 anos convivem tão saudavelmente com os novos moradores que até já é difícil distingui-los".

Pode não ser o espírito do SAAL - mas é o espírito da melhor habitação social, aquela que nunca se faz. "O Porto é uma cidade segregada: há zonas onde vivem os ricos todos e zonas onde vivem os pobres todos. No Bairro da Bouça a arquitectura conseguiu criar uma cidade plural e democrática em que pessoas de proveniências diferentes vivem em casas todas iguais", continua Nuno Brandão Costa. Álvaro Siza também gosta do que vê: "O que aconteceu é compreensível - e saudável - e também se passou em outros sítios. O Bloco de Marselha do Corbusier, por exemplo: durante anos esteve degradado e foi considerado um fracasso, uma arquitectura socialmente inaceitável. Neste momento está tudo a funcionar porque houve uma geração - de professores, de arquitectos, de intelectuais - que quis ir para lá viver. Enquanto era para os pobrezinhos aquilo era um desastre. Agora é um sucesso".

Uma utopia

Para quem lá está, como o sr. Cardoso, o bairro é de facto um sucesso. Mas dos 350 sócios iniciais da Associação de Moradores da Bouça não são muitos os que ainda lá vivem - na primeira fase só ficaram disponíveis 56 casas, que serviram para alojar as famílias que viviam em condições mais precárias, e quando as chaves das 72 casas da segunda fase começaram a ser entregues, em 2006, já poucos associados apareceram para as reclamar. "Vim para aqui em 1979, isto ainda nem estava pronto. Não havia electricidade nem saneamento, tinha de ir a um quarto de banho improvisado - e já vim para aqui com cinco filhos. Morava numa ilha na Rua da Peneda que estava em ruína e, quando se deu o 25 de Abril, juntei-me com outros moradores. Ocupámos uma antiga tinturaria que tinha deixado de laborar, a Fábrica do Cu para o Ar, e fizemos ali a nossa sede com um infantário, uma cooperativa de alimentação e um salão de festas. Depois fomos para as casas. O nosso lema era 'Casas para Todos'", explica. No sítio onde agora está o Bairro da Bouça ia haver um empreendimento para funcionários do Ministério da Justiça, com projecto do arquitecto Siza, mas a associação ocupou o que havia e acabou por ficar com o terreno e com o projecto, que depois candidatou ao SAAL.

Houve "barulhos e ferradelas" quando as primeiras 56 casas foram distribuídas, "mas as pessoas acabaram por entender que esta era só a primeira fase".
Durante 25 anos, a primeira fase era tudo o que havia. Na década de 90, finalmente, a Associação de Moradores da Bouça conseguiu garantias da autarquia e convenceu o arquitecto a voltar a olhar para o projecto: "O Siza esteve sempre de pé atrás, mas lá veio ver o que era preciso. Tínhamos aí uns chorões que eu tinha plantado no Dia Mundial da Árvore e que me custou ver cortar, mas teve de ser". Na primeira assembleia para atribuir as novas casas, vieram "cento e tal sócios e filhos de sócios".

Ficaram 12. A associação acabou por ter de leiloar as 60 habitações que lhe caíram no colo de um dia para o outro. "As pessoas viram o tempo a passar e as casas a não serem construídas, foram décadas com as calças na mão. Nem as minhas filhas quiseram esperar - foram dar 20 mil contos por um apartamento quando podiam ter dado 12 mil aqui. Foi uma desilusão: estas casas eram para os sócios e eles é que deviam estar aqui, mas paciência: quem pôde ficar ficou", sublinha o sr. Cardoso. 
Ele foi dos que ficaram. Mas 25 anos é demasiado tempo, diz Siza, "e as referências mudaram": "Aquela galeria que lá está servia para continuar o ambiente das ilhas em que havia aquele espírito de solidariedade e de vivência comunitária intensa - forçada mas intensa -, zangas misturadas.

Esse espírito hoje não existe, e a referência passou a ser a casa esquerdo-direito, que as pessoas associam a um modelo de qualidade de vida". Isso é uma coisa que não há ali. E mesmo que houvesse, argumenta Alves Costa, as pessoas perderam a vontade de morar na Bouça quando perceberam que ia demorar demasiado tempo (e, depois, quando o crédito à habitação transformou a construção privada numa alternativa viável): "As pessoas desmobilizaram quando perceberam que a casa não era realizável, e passado pouco tempo até era difícil falar com elas sobre o assunto: era como se o SAAL nunca tivesse existido. Mantiveram recordações da festa, que foi bonita: da manifestação não sei onde, do piquenique não sei quê, disso não se esquecem, do que se divertiram com o processo".

Quem esteve lá dentro lembra-se disso e também se lembra "do desespero, dos bloqueios, da luta quotidiana, de as pessoas quererem as casas e elas não chegarem, da reacção da direita" - e, no caso de Alves Costa, "da bomba no serviço, da bomba no carro, de mudar de caminho muitas vezes à noite, quando voltava para casa depois das reuniões com os moradores". Quem está de fora, como Nuno Brandão Costa - nasceu em 1970 -, lamenta que a experiência do SAAL não tenha resistido à "normalização democrática": "Quando eu estava a estudar, o processo SAAL era uma coisa presente ainda. Muitos dos meus professores fizeram brigadas e foi aí que ensaiaram tipologias e linguagens que são muito a imagem da Escola do Porto até hoje. O SAAL foi um laboratório para aquela faculdade, mas muita da habitação social corrente que se vê por aí, feita nos anos 80, não aprendeu nada com o SAAL, e isso foi um erro".

Para toda uma geração de arquitectos, ainda assim, o SAAL foi fundador: "Internacionalmente, até aí a arquitectura portuguesa era desconhecida e passou a haver um enorme interesse pelo que estávamos a fazer. Eu fui convidado a fazer habitação social em Berlim e em Haia por causa da minha participação no SAAL. Em Portugal continuamos a achar que aquilo foi uma coisa um pouco louca e um pouco degradante, mas na verdade o SAAL deixou marcas em nós e nos outros", argumenta Siza.

Havia uma revolução em curso no país, e isto era o país a construir-se. "O SAAL era uma utopia, mas achávamos que era uma utopia viável. Perguntávamo-nos 'isto será possível, será mesmo verdade?', mas não tivemos muito tempo para perguntas porque um ano e meio depois percebemos que era mentira", acrescenta Alves Costa. Ele vai estar amanhã às 19h15 no Cinema Classic City Alvalade (também há sessões especiais hoje, com o realizador, e no domingo, com o arquitecto e historiador do SAAL José António Bandeirinha) para falar do tempo em que a arquitectura portuguesa queria mudar o mundo, antes de o mundo a mudar a ela.