A seita dos essénios, que teria escrito os Manuscritos do Mar Morto, "nunca existiu"

A tese de Rachel Elior sobre os autores dos mais antigos textos bíblicos que sobreviveram
até aos nossos dias e que foram descobertos em 1947 é contestada por outros especialistas

a Os Manuscritos do Mar Morto, os únicos documentos bíblicos do primeiro século da era cristã que sobreviveram até hoje, podem não ter sido escritos pela seita judaica e esotérica dos essénios, como sempre se pensou? Rachel Elior, investigadora israelita e professora de misticismo judaico na Universidade Hebraica de Jerusalém, lançou a polémica, afirmando não apenas que os essénios não escreveram os manuscritos, mas que esta seita nunca existiu. A base da teoria de Elior é uma ideia muito simples: entre os perto de 900 documentos descobertos entre 1947 e 1956 dentro de potes escondidos em 11 grutas na zona de Wadi Qumran, junto ao Mar Morto, no deserto da Judeia, não há uma única referência aos essénios. Seria razoável, pergunta a investigadora, que os autores destes documentos não se referissem a si próprios nem uma vez? "Desperdiçaram-se 60 anos de investigações para tentar encontrar os essénios nos manuscritos", disse Elior à revista norte-americana Time. "Mas eles não existem. É uma lenda sobre uma lenda."
De onde vem, então, a história desta estranha seita que, segundo têm defendido dezenas de especialistas ao longo de décadas, era uma comunidade esotérica e ascética que se isolara nas grutas de Qumran, seguindo práticas não-judaicas, abdicando de todos os prazeres terrenos, nomeadamente do sexo? Elior defende que toda a história tem origem numa única fonte, o historiador judeu-romano do I século Flávio Josefo.
De acordo com o relato que Josefo escreveu quando era prisioneiro dos romanos, existiam no século I da era cristã no território que é hoje Israel vários grupos. Três deles eram dominantes: os saduceus, sacerdotes que dominavam o culto do Templo, os fariseus, que seguiam uma linha menos rígida que os primeiros, e os essénios, que se tinham afastado da linha oficial do judaísmo, e viam-se como puros. No confronto com os romanos só os fariseus sobreviveram.
Os essénios foram arrasados, por volta do ano 68 d.C., quando os romanos chegaram ao Mar Morto. Teria sido nessa altura que o grupo escondera os manuscritos que só viriam a ser encontrados em 1947, quando um pastor entrou por acaso numa das grutas à procura de uma ovelha.
Rachel Elior vem agora dizer que todas as referências aos essénios têm como base primeira o que Josefo escreveu. E que este, sendo judeu, terá inventado os essénios "para explicar aos romanos que os judeus não eram todos derrotados e traidores, e que havia alguns com um heroísmo e uma devoção religiosa excepcionais". A inspiração de Josefo, segundo a investigadora israelita, teria sido os espartanos, que eram vistos como o modelo das mais altas virtudes.

Rejeição do sexoA questão da rejeição do sexo pelos essénios é central, porque corresponderia a uma estilo de vida em contradição com o princípio judaico que encoraja os homens a multiplicarem-
-se. "Não faz sentido haver milhares de pessoas a viver de forma contrária à lei judaica e não existir qualquer referência a elas em nenhum dos textos judaicos e fontes da época", argumenta Elior.
Perpetuou-se assim a ideia desta seita pura e ascética, à qual foi atribuída a autoria dos manuscritos depois de estes terem sido encontrados. Os documentos esquecidos durante 19 séculos nas grutas (entre os quais cópias da Bíblia hebraica do século II a.C.) incluem as regras da comunidade (os supostos essénios), hinos, poemas, calendários, textos litúrgicos, orações, apócrifos bíblicos e exegese do Antigo Testamento.
Se os essénios não existiram, de onde vêm, então, os documentos? Elior defende que se trata "do que resta de uma enorme biblioteca" que teria sido levada de Jerusalém para Qumran pelos sacerdotes saduceus.
A teoria de Elior foi imediatamente contestada por vários especialistas, entre os quais James Charlesworth, director do Projecto dos Manuscritos do Mar Morto no Seminário Teológico de Princeton, que tem defendido, por exemplo, que S. João Baptista viveu entre os essénios e inspirou-se nas ideias destes.
O facto de a palavra "essénios" não aparecer em nenhum documento não prova nada, disse à Time, porque os membros da seita referiam-se a si próprios como "filhos da luz". Argumenta, além disso, que os arqueólogos encontraram manchas de tinta nas grutas, o que provaria que os manuscritos tinham sido escritos aí.
Também o professor Hanan Eshel da Universidade de Bar-Ilan, em Israel, se mostrou indignado com a teoria de Elior. "Perto de 70 estudiosos aceitam a ideia de que um dos grupos essénios viveu em Qumran e agora alguém vem dizer que somos todos idiotas", disse ao diário israelita Ha'aretz.
Os manuscritos "nunca existiram". "É uma lenda sobre uma lenda", assegura a investigadora Rachel Elior

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