O padre que denunciou o inferno

Foi o primeiro a denunciar o regime Khmer Vermelho. Teve de esperar muito até ser ouvido. O julgamento dos responsáveis do regime, que começou na terça-feira, não o apazigua. "É a injustiça internacional."

Todos os dias, durante meia hora, o padre François Ponchaud começa por pensar nas pessoas de que mais gosta, e reza por elas. A seguir nas de que gosta um pouco menos. Depois nas de que não gosta nada. Finalmente, nas que detesta, e por estas reza também. Não sabemos se há algum khmer vermelho nesta lista: Ponchaud foi a primeira pessoa a denunciar as atrocidades que estavam a ser cometidas no Camboja durante o brutal regime de Pol Pot (1975-1979). Mas sabemos que para o padre francês, que cruzou o seu destino com um dos capítulos mais negros do século XX, a História não está encerrada.É possível que o Camboja de 1965 tenha parecido um paraíso para Ponchaud, então com 26 anos e recém-ordenado missionário católico: um ambiente bucólico, pontuado por campos de arroz e monges budistas. Uma realidade distante dos episódios sangrentos da guerra na Argélia em 1961, onde fora obrigado a combater. "Argélia é uma grande vergonha para mim. Foi um lugar muito, muito difícil, aprendi muitas coisas lá: os ideais são bons, mas a realidade é diferente", afirmaria mais tarde.
Mas nem esse tempo, nem essa experiência, o prepararam para o que viria a seguir. Porque ninguém estava preparado para o que veio a seguir.
Cinco anos antes de os khmer vermelhos conseguirem tomar a capital, a 17 de Abril de 1975, já o Camboja começava a sua descida ao inferno. A guerra no vizinho Vietname passou a fronteira, e rebeldes khmer vermelhos saíam da selva para combater ao lado dos vietcongs (que tinham no Leste do país bases aéreas) contra as tropas do Governo de Phnom Penh, apoiadas por Washington e pelo Vietname do Sul.
A violência foi tal que quando os khmer tomaram a capital para instituir o Kampuchea Democrático foram recebidos com sorrisos e alguma esperança. Mas os cumprimentos não foram retribuídos pelos antigos guerrilheiros. E essa foi a primeira sensação de estranheza de Ponchaud. Não houve tempo para respirar de alívio pelo fim da governação corrupta de Lon Nol.
Nem sempre o terror se manifesta com data e hora marcada. Mas desta vez, apesar de nem tudo ser claro logo à partida, muito se revelou nesse mesmo dia de Abril. "Por volta da uma da tarde começou um espectáculo alucinante", descreveu a um jornalista do Taipe Times. "Milhares de pessoas doentes e feridas começaram a abandonar a cidade. Os mais fortes arrastavam-se, outros eram levados por amigos, outros estavam deitados nas camas puxadas por familiares, ainda com o saco de soro pendurado. Foi assim que os primeiros saíram, cerca de 20 mil."
Foi só o princípio, porque cumprir a utopia de um país sem cidades, nem dinheiro, nem escolas, e onde todos trabalhavam na terra, exigiria milhões de deslocados. "Vi todos os meus amigos a sair... Havia centenas de milhares de pessoas a andar alguns quilómetros por hora", afirmou numa entrevista à CNN, em Dezembro passado. "Era uma visão desconcertante." Usou duas palavras para descrever o ambiente: "Incompreensão e medo."
"Nunca esquecerei um aleijado, sem mãos nem pés, que se arrastava pelo chão como um verme", escreveu Ponchaud. "Ou o homem com o seu pé pendurado à perna, preso só por pele", que perguntou se poderia ficar em sua casa. O padre disse-lhe que não ficaria seguro ali. A recusa fê-lo sentir que tinha perdido a dignidade humana.
Um país de mortos-vivos
O missionário recebeu ordens para ficar na embaixada francesa, onde muitos foram pedir asilo. Ao longo de três semanas, passou horas e horas no portão, a pôr em prática o seu excelente khmer, para tentar negociar com os rebeldes - um dos muito poucos estrangeiros a conseguir fazê-lo. Deixaram-no sair da embaixada por duas vezes.
Mas por muito que tivesse estudado a cultura cambojana - era uma das obrigações impostas pela Missão, estudar a língua e os costumes - não havia pistas possíveis para descodificar o que se estava a passar. Phnom Penh, onde viviam 2,5 milhões de pessoas, era agora uma cidade fantasma.
Também Ponchaud teria de sair. Partiu na última coluna de evacuação rumo à fronteira com a Tailândia, com todos os outros estrangeiros que ainda estavam na capital. "Era como se tivéssemos enlouquecido. Estávamos a sair de um país de mortos-vivos."
"O regime de Lon Nol [1970-1975] era muito, muito corrupto e não havia espaço para a esperança... a única esperança era a vinda do Khmer Vermelho", explicou ao jornal de Taiwan. "Sabíamos desde 1970 que quando os khmer vermelhos capturavam uma aldeia, matavam o chefe da aldeia, redistribuíam as terras e levavam as pessoas para a floresta. Mas achávamos que isso era um efeito da guerra e que quando vencessem [os métodos] mudariam."
Não foi o que aconteceu, como pôde constatar através de relatos de amigos e das gravações que lhe chegavam da voz oficial do regime, Rádio Phnom Penh, onde se descrevia as transformações do país.
Em Setembro de 1975, regressou a França. Era ele o responsável das Missões Estrangeiras de Paris pelos refugiados vindos da Tailândia (recusou-se a partir para outro país: "Precisava primeiro de reflectir sobre o que acontecera"). Ao princípio, nem ele próprio acreditava no que ouvia. Registava os relatos de torturas, execuções, trabalhos forçados, deportações, mortes por fome, doenças ou exaustão... E cruzava esses testemunhos com as informações da rádio.
"Estavam a incendiar aldeias... a mandar as pessoas para a floresta sem lhes dar nada para comer... Foi para além da minha imaginação." Dos 40 católicos cambojanos pelos quais era responsável, apenas dois sobreviveram.
O genocídio fez 1,7 milhões de mortos, aproximadamente um quarto da população. Hoje, a maioria não tem recordações do regime Khmer Vermelho, porque 60 por cento dos cambojanos são jovens. Mas serão raros os que não terão histórias para contar de familiares que morreram ou foram torturados durante esse período.
Alertas ignorados
Os primeiros gritos de alerta de Ponchaud não foram ouvidos. Escreveu um extenso artigo para o Le Monde; em 1976, depois de três meses de escrita, tinha já preparado aquele que foi o primeiro relato detalhado sobre o genocídio, Camboja: Ano Zero, publicado no ano seguinte (que a New York Review of Books descreveu como, "de longe, o relato mais bem informado a surgir do Camboja, onde está a decorrer a revolução mais sangrenta da história".)
Em 1978 mandou uma carta para a Amnistia Internacional e outra para o então Presidente francês, Giscard d'Estaing. Não obteve resposta de qualquer dos lados. E os cambojanos também não obtiveram ajuda. "Foi bastante frustrante", disse à CNN. "Os governos não reagiram. Os países não defendem os direitos humanos. São sempre subservientes à política."
E a política mandou que o Governo vietnamita desse atenção ao seu livro, que usou como arma de propaganda para a invasão do Camboja, consumada a 7 de Janeiro de 1979. "Em 1978, quando os vietnamitas estavam a preparar a invasão, ou a 'libertação', traduziram o meu livro e liam-no na Rádio Hanoi... Por isso, está a ver, eu ajudei a invasão vietnamita", disse ainda ao Taipe Times.
A política também mandava os Estados Unidos da América usarem vários recursos na oposição ao Vietname, incluindo o apoio ao inimigo vietnamita, o movimento Khmer Vermelho. Por isso, quando o director da Amnistia Internacional perguntou a Ponchaud, em 1983, se estaria disposto a participar num eventual tribunal para julgar Pol Pot por genocídio, o padre respondeu: "Sim, com uma condição: antes de Pol Pot, têm de julgar Nixon, Kissinger e Carter... São assassinos maiores do que o Pol Pot... Destruíram o Camboja com os seus B52 e em Janeiro de 1979 apoiaram o Khmer Vermelho e deram-lhe dinheiro para combater os vietnamitas."
Não foi uma resposta por impulso. Ainda na semana passada, no mesmo dia em que Duch, o primeiro responsável khmer vermelho a sentar-se, pela primeira vez em 30 anos, no banco dos réus, a AFP punha em linha uma entrevista em que Ponchaud reafirma: "Os países que dirigem este tribunal [especial para o genocídio], incluindo a ONU, apoiaram os khmer vermelhos até 1989, ou seja, durante 14 anos. É um processo hipócrita, diga-se as coisas como elas são! Por que é que até 1989 a China, os EUA, a Europa, apoiavam o Khmer Vermelho?" E adianta: "Estou escandalizado por este processo de hipocrisia e injustiça internacional."
Ponchaud pode ter desistido da justiça, mas não desistiu do Camboja, para onde voltou em 1993. Tornou-se num profundo conhecedor do budismo - "Buda ajudou-me a ser um cristão melhor", diz. Também refere que, "sem o budismo, o Camboja está perdido". Não dispensa a meditação diária, que o "purifica".
Dá missas em khmer - traduziu a Bíblia, em 1998 - e envolve-se em projectos sociais. Muitos sabem que o homem de cabelo branco que passa por eles na rua, de lambreta, é o "amigo dos cambojanos", como lhe chamam.
Viveu numa casa de um subúrbio miserável de Phnom Penh para perceber melhor a vida dos pobres. E tirou as suas conclusões: "Estas pessoas vivem em condições muito difíceis, mas ainda assim estão sempre a sorrir. Nas sociedades ocidentais, as pessoas estão sempre a queixar-se. Às vezes, acho que são estas pessoas que estão mais perto da salvação." a

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