Torne-se perito

Um think thank para melhorar as instituições públicas

Três a cinco milhões de euros por ano para fazer estudos que permitam discutir o futuro do país. Uma fundação contra a passividade. A família que criou o Grupo Jerónimo Martins quer partilhar o muito que tem recebido da sociedade e decidiu criar um think thank. Por José Manuel Fernandes

a O sociólogo António Barreto, presidente da nova fundação, leva-nos até junto de uma das fotografias dispostas ao longo do corredor dos escritórios da Jerónimo Martins. "Venha conhecer o homem que nos permite estar aqui", diz enquanto aponta para o retrato a preto e branco de Francisco Manuel dos Santos, nascido em Safurdão em 1876, pequena aldeia perto da Guarda. "Escolhi o nome do meu avô para a fundação porque é a ele que senti que devia prestar homenagem", explicar-nos-ia, pouco depois, Alexandre Soares dos Santos, aos 74 anos ainda à frente de um dos maiores grupos privados portugueses, a Jerónimo Martins, que em 2007 facturou 5,35 mil milhões de euros e teve lucros de 131,3 milhões de euros. "Para a sua época, foi um homem extraordinário."
Naquele andar da Torre 3 das Amoreiras, em Lisboa, parecemos muito longe do mundo que as imagens espalhadas pelas paredes e algum velho mobiliário e equipamento evocam. O mundo de uma Rua Garrett que já desapareceu mas que ainda era o centro de Lisboa quando, em 1921, Francisco Manuel dos Santos se mudou do Porto para Lisboa após comprar, com outros comerciantes da cidade nortenha, a histórica mercearia do Chiado, desaparecida com o incêndio em 1988. Esse estabelecimento, fundado por um galego ainda no século XVIII, já ligado a um grande grupo armazenista, vivia então dias difíceis. Para vencer a situação económica em que encontrou a empresa, Francisco Manuel dos Santos teria mesmo de se endividar junto da banca, a quem pediu cinco contos, uma pequena fortuna para a época, e deu apenas uma garantia: "o seu trabalho e a sua honestidade".
"O meu avô fez, como empresário, coisas fantásticas", recorda Alexandre Soares dos Santos. Uma foi ter tornado a Jerónimo Martins na primeira empresa a introduzir em Portugal o pagamento do 13º mês, no final da década de 1920. Outra foi mandar estudar todos os rapazes que entravam para a Jerónimo Martins, pagando-lhes o curso comercial. A terceira foi ter tido a visão de alargar a actividade à indústria, lançando as bases para a Fima-Lever, que já seria negociada pelo meu pai." A primeira fábrica, a Fábrica Imperial de Margarina (FIMA), foi inaugurada em Sacavém em 1944. Além de margarina, também produzia óleos alimentares.
O neto, que dirigiu nas duas últimas décadas a expansão da empresa para outros mercados, em especial o polaco - onde a Jerónimo Martins já tem mais de metade da sua facturação e muito mais de metade dos seus resultados -, vai buscar à memória daquele avô que veio do nada e criou as raízes do que é hoje o grupo a inspiração para a sua decisão, e da sua família, de abdicarem de uma parte importante dos seus rendimentos para criarem uma fundação que, estatutariamente, até estará interdita de adquirir património próprio. "Era um homem virado para o futuro, que queria ajudar a sociedade em que vivia e que se preocupava com os outros. Se há tanto tempo dava o exemplo pagando os estudos aos seus empregados, era nossa obrigação mostrar que também podíamos, de uma forma adaptada aos tempos que vivemos, devolver à sociedade portuguesa uma parte do muito que a sociedade portuguesa nos deu, partilhar as benesses que desde o meu avô temos vindo a receber", explica.
Num país onde domina o espírito individualista, a sociedade civil é fraca e muito dependente do Estado, Alexandre Soares dos Santos e os seus filhos decidiram que a sua empresa familiar - a Sociedade Francisco Manuel dos Santos, accionista maioritário do Grupo Jerónimo Martins - deveria encontrar uma forma de se colocar ao serviço da sociedade. Porquê? "Porque os dividendos não se fizeram apenas para distribuir pelos accionistas, fizeram-se para que esses accionistas pudessem fazer alguma coisa pelo bem comum."
Participação mínima
Na opinião do actual patriarca da família, este espírito permitiu que os negócios prosperassem sem que nunca, com o passar das gerações, houvesse rupturas irreversíveis entre os descendentes de Francisco Manuel dos Santos: "Seguimos sempre o princípio de distribuir um dividendo mínimo de 35 por cento, para que todos saibam com o que contam, mesmo os que estão mais longe da gestão, mas esse dividendo também nunca ultrapassou os 50 por cento. O resto foi sempre para investir, pois entendemos que temos de continuar a crescer, ou para apoiar actividades como as que prosseguirá a nova fundação."
O germinar da ideia levou anos e Alexandre Soares dos Santos recua até ao período em que organizou, no Hotel do Vidago, conferências anuais, onde contou com a colaboração de Luís Valente de Oliveira, ex-presidente da comissão de planeamento do Norte e ministro de 1985 a 1995: "Tiveram uma grande qualidade, mas já nessa época me deixaram uma certa tristeza, pois verifiquei que o número de portugueses que participava era mínimo." Como se não fosse importante discutir o futuro do país, "como se não tivéssemos de pensar nas gerações futuras, nos nossos filhos e netos, que não podem ficar sem alternativa a não ser procurarem emprego fora do país", prossegue Soares dos Santos.
Por isso, em vez de financiar uma fundação para promover obras sociais ou fomentar a cultura ou a investigação científica - "para isso já existem outras" -, a família optou por uma espécie de think thank. Mas não exactamente um think thank, como os muitos que existem na Europa e nos Estados Unidos.
"Por regra, os think thanks prosseguem uma agenda política ou ideológica específica", explica António Barreto, que presidirá à administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos. "Ora o nosso objecto não será promover o liberalismo ou a social-democracia, por exemplo, nem fornecer estudos que sirvam de base a propostas políticas dos partidos. O objecto da fundação é realizar com total independência estudos que permitam conhecer melhor a sociedade, disponibilizá-los e colocá-los à discussão para que possam permitir um debate mais informado sobre quem somos e para onde estamos a caminhar."
Ou, como se lê nos estatutos, "promover e aprofundar o conhecimento da realidade portuguesa, procurando desse modo contribuir para o desenvolvimento da sociedade, o reforço dos direitos dos cidadãos e a melhoria das instituições públicas". Para isso a fundação arrancará com um financiamento anual de três a cinco milhões de euros e deverá destinar a quase totalidade desse dinheiro à realização de estudos que, como ironiza Alexandre Soares dos Santos, "não terão de chegar às conclusões pedidas por quem os encomendou e financiou".
António Barreto, que tem uma longa experiência de direcção de estudos académicos como investigador do Instituto de Ciências Sociais - de onde se reformou há alguns meses -, prevê que, com estas verbas, a fundação tenha uma capacidade de investimento que a colocará entre as três ou quatro com mais orçamento dedicado à concretização dos seus objectivos, podendo encomendar dois grandes estudos e seis a dez estudos médios por ano.
"Entretanto iremos também aprender como funciona uma fundação", concretiza o filho José Soares dos Santos, que será um dos dois vice-presidentes da administração. Depois, passado este período inicial de cinco, sete anos, a família decidirá se mantém o modelo da dotação anual, ou se cria um fundo destinado a financiar de forma sustentada a actividade da fundação.
Políticos não vão gostar
Todos têm a noção de que, apesar da clareza da missão e de o conselho de curadores integrar "do melhor que há na sociedade portuguesa" - para além de Alexandre Soares dos Santos, que preside, do seu tio Vasco Santos, que é o único filho vivo do fundador da sociedade, integram-no figuras como o constitucionalista Gomes Canotilho, o ex-ministro Valente de Oliveira, a animadora do Banco Alimentar contra a Fome Isabel Jonet, o cirurgião João Lobo Antunes, o empresário Carlos Moreira da Silva, os professores Rosado Fernandes e Manuel Braga da Cruz, o jurista António Araújo e o bispo do Porto, Dom Manuel Clemente -, vão ser atacados.
"Já me disseram para estar preparado", corta Soares dos Santos. "Já contamos com especulações sobre o que é que nós queremos com este projecto", acrescenta António Barreto. Porquê? "Porque a sociedade portuguesa é contra a modernização, é contra novas formas de olhar para problemas antigos. E os políticos não vão gostar. Já fui avisado para me preparar para uma reacção violenta", concretiza o líder da Jerónimo Martins.
De certa forma, um dos primeiros projectos da fundação permitirá logo perceber a receptividade que terá: tratar-se-á de reunir numa só base de dados, disponível de forma gratuita on-line, todas as estatísticas relevantes sobre Portugal. Algo que o Instituto Nacional de Estatística (INE), por exemplo, não faz de forma integrada.
António Barreto, que no passado já realizou dois projectos que tiveram por base a reunião do maior número possível de elementos estatísticos sobre a evolução de Portugal nas últimas quatro décadas, explicou-nos os limites do actual sistema público: "O INE, até porque está obrigado a fornecer um conjunto alargado de elementos precisos à União Europeia, melhorou muito nos últimos anos, mas o sistema em vigor não lhe permite centralizar toda a informação. Uma parte importante das nossas estatísticas é feita, por delegação do INE, nos diferentes ministérios, o que está longe de ser a melhor solução, até porque são os próprios interessados nos resultados que as elaboram. Nalgumas áreas, já há estatísticas fiáveis e de qualidade, noutras há enormes lacunas e é muito difícil encontrar um número quando o procuramos. Além disso, como as metodologias adoptadas diferem, nem sempre conseguimos que os elementos sejam compatíveis."
Desafiar a nação
A própria existência desta informação de base, rigorosa e ao dispor de todos, será uma das bases para os estudos que serão encomendados. Quais? "Os que o conselho de curadores e a comissão científica forem considerando mais relevantes", explica Barreto. Mas já se está a ver, por exemplo, a realizar trabalhos tão diferenciados como análises sobre as condições em que vivem os idosos e como são apoiados pelas famílias, pela segurança social pública ou pelas instituições privadas de solidariedade social ou a comparar o modo de funcionamento de dois centros de saúde, um de excelência, outro dos que pareçam ter perdido o comboio da modernidade.
"É possível que alguns destes estudos incomodem", admite Alexandre Soares dos Santos. "Mas quando Portugal atravessa esta crise enorme, uma crise de identidade, uma crise que deriva de o país não saber para onde há-de ir e de não possuir uma sociedade civil activa, achámos que só pode ser positivo desafiar a nação e os portugueses a assumirem os seus problemas. Todos têm de ter uma voz actuante, têm de perceber que não podemos continuar neste clima em que os governos dizem o que se faz, o parlamento limita-se a dizer ámen e quem sofre as consequências de tal passividade somos nós, os portugueses."

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