Torne-se perito

Camboja

Alguns querem vingança. Outros querem entender o seu passado. Duch é o primeiro dos cinco líderes khmer vermelhos a ser julgado. Estará hoje sentado no banco dos réus

a Cabelo preto levantado, olhos negros e quase um sorriso a quebrar o olhar sério e fixo. Não deve ter mais de dez anos. Ou serão doze? Tem uma grossa corrente de ferro ao pescoço, caída como se fosse um lenço de jovem pioneiro. E um saliente número 1 num cartão preso com um alfinete no lugar de um botão da camisa escura. É a fotografia 0125 de um "preso não identificado", do centro de tortura de Tuol Sleng. Foi tirada entre 1975 e 1979. Agora é arquivo, juntamente com outras seis mil imagens, deste centro transformado em museu do genocídio do Camboja.A prisão foi um dos palcos mais macabros do regime khmer vermelho, que em menos de quatro anos matou entre um e dois milhões de pessoas - o número mais referido é 1,7 milhões. Pessoas como este rapaz, de cabelo preto levantado. Não se lhe conhece a sorte, mas sabe-se o que espera aquele que dirigia a Tuol Sleng, também conhecida como S-21. Kaing Guek Eav, ou Duch, estará hoje no banco dos réus. Será o primeiro de cinco arguidos do tribunal criado pelo Governo do Camboja, com a ajuda das Nações Unidas, para julgar as principais figuras do regime de Pol Pot. É uma estreia, num país onde há 30 anos se espera pela justiça.
Duch é suspeito de crimes de guerra. Tem na sua acusação a responsabilidade pela morte de cerca de 16 mil pessoas, e um rol de crimes de tortura, incluindo mulheres e crianças: detidos que sangravam até à morte, outros a quem eram arrancadas as unhas dos pés e das mãos, outros afogados. Diz-se que quando os soldados vietnamitas libertaram a capital, a 7 de Janeiro de 1979, na prisão restavam só meia dúzia de prisioneiros para contar a história.
Após a queda do regime, converteu-se ao cristianismo. Foi capturado em Maio de 1999, depois de ter confessado as suas culpas ao fotojornalista britânico Nic Dunlop, que esteve vários anos a tentar encontrá-lo. Em Julho de 2007, foi formalmente acusado pelo tribunal.
Uma luz sobre a história
A maior parte dos líderes khmer vermelhos já morreram - incluindo Pol Pot, o seu dirigente máximo, em 1998, sem nunca ter sido julgado. Mas nem por isso os julgamentos serão inúteis ou irrelevantes, independentemente dos seus resultados. Para muitos cambojanos, ajudarão a lançar luz sobre um capítulo negro da sua história, sobre um dos episódios mais tenebrosos do século XX. E isso, não sendo tudo, já é alguma coisa.
"É o que o povo do Camboja quer ver: que há lições a aprender para outros líderes, para que isto não volte a acontecer no futuro", diz por telefone ao P2 Sinal Peanh, fundador da organização não-governamental de ajuda ao desenvolvimento MODE (Minority Organisations for Development of Economy). "O julgamento vai trazer justiça a toda a população do Camboja. É muito importante que seja feita justiça".
É importante compreender como é que khmer se viraram contra khmer transformando os campos de arroz em campos de morte. Como é que um regime matou o seu povo à fome, por doença, por exaustão ou por execução sumária, em nome de uma utopia que só podia ser uma miragem: uma sociedade onde não havia lugar para dinheiro, nem escolas, onde as cidades eram despejadas para encher os terrenos agrícolas.
Em última análise, toda a população cambojana ficou, de uma forma ou de outra, refém deste passado. Mas há ainda muitos que viveram o episódio mais de perto, ou que foram mais directamente afectados. E Sinal Peanh é um deles. A sua história é tristemente semelhante à de tantas outras vítimas.
Quando os khmer vermelhos ocuparam o Camboja, Sinal tinha 13 anos (agora tem 47). "A minha família vivia em Siem Reap [no Centro] e eles obrigaram-nos a deixar a cidade. Todas as pessoas da minha família foram forçadas a trabalhar no campo, das 5h00 às 18h00. Recolhiam estrume de animais para fazer compostagem". Em troca, recebiam "uma pequena quantidade de comida, só para o almoço e o jantar". O facto de muitas das vítimas do regime terem morrido por subnutrição ou falta de cuidados de saúde é um dos argumentos usados pela defesa de que não houve genocídio.
"Nessa altura, as crianças ficavam num centro, não iam para a escola, não estavam autorizadas a ver os pais nem os familiares todos os dias", continua Sinal Peanh. "Os khmer vermelhos treinavam as crianças para controlar os pais e outras pessoas, e se houvesse alguma coisa errada tinha que se lhes dizer. Vi muita gente morrer, incluindo os meus pais, com a cabeça cortada por um machado. Eles mandavam as crianças fazer um cova e enterrar o cadáver".
À noite cantavam-se músicas de louvor a Pol Pot.
Não foram só os seus pais, foram também os três irmãos que morreram. Salvou-se ele e a avó. Terminado o terror, Sinal Peanh vendeu bolos e massas para sobreviver. "Não tinha nem tempo nem dinheiro para estudar. E por isso decidi ir para a Tailândia". Foi lá, na "Escola Católica na Zona 2 do campo de refugiados", que, durante três anos, aprendeu "inglês e cuidados de saúde".
Ódio e vingança
Sinal Peanh não fala em ódio nem em vingança. Mas um estudo recente do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Berkeley concluiu que a grande maioria dos cambojanos é isso que sente em relação aos membros do regime. Metade diz não estar à vontade com antigos khmer vermelhos a viver nas suas localidades; 71 por cento gostariam de os ver sofrer de alguma forma. E, se pudessem, 41 por cento arranjariam forma de se vingar. Em contrapartida, a enorme maioria (85 por cento) não sabe, ou sabe pouco, da existência do tribunal especial.
Uma das razões para explicar esta ignorância pode ser a idade dos cambojanos. "Dois terços da população nasceram depois do regime khmer vermelho", diz Christopher Sperfeldt, conselheiro da ONG Cambodia Human Rights Action Committee, que ajudou a elaborar o estudo da Berkeley. "Muitos querem que seja feita alguma coisa, mas, em termos de prioridades, estão mais concentrados no desenvolvimento, na educação, na saúde, na habitação".
Sperfeldt concorda que o período 1975-79 "é uma parte da história que ainda é muito contestada". Mas embora "este tribunal ajude a mudar isso, é um tribunal criminal: a sua função não é dar uma visão alargada da história".
Para algumas vítimas, bastará ver os réus - que incluem ainda o ex-chefe de Estado do Camboja Khieu Samphan, o "número dois" do regime, Nuon Chea, e os antigos ministros Ieng Sary e Ieng Thirith - a terem de responder pelos seus crimes.
"Um bom resultado [dos julgamentos] dependerá sempre das expectativas, mas alguns querem apenas um pedido de desculpas público", afirma Silke Studzinsky, advogada das partes civis no processo. "Outros querem que a verdade histórica fique escrita para as gerações futuras, e outros querem saber mais sobre o que aconteceu, coisas que não vêm nos manuais escolares".
Há também quem esteja à espera de dados como o dia e o local em que os seus familiares foram mortos. "É muito importante na cultura cambojana ter uma data para homenagear os mortos", continua a jurista.
Foi um caminho penoso e "demorado" até chegar aqui, "com muito dinheiro gasto", comenta Sophal Mar, do Comité para as Eleições Livres e Justas no Camboja. "Mas o início do julgamento é o desenvolvimento que todos os cambojanos queriam ver".
No meio de um historial de atrocidades, Sophal Mar diz ter sido uma pessoa de sorte. Os seus pais viviam em Phnom Penh, a capital, quando os khmer vermelhos os mandaram ir para o campo, só com o necessário para "dois ou três dias". Ou seja, sem nada. A mãe foi para o Norte, o pai para o Sul, com os cinco irmãos e duas irmãs de Sophal. "Phnom Penh tornou-se uma cidade-fantasma. Ninguém tinha autorização para viver na capital. Não havia nada a funcionar, escolas, lojas, nada". Ele nasceria dois anos depois. Todos sobreviveram, excepto o avô, "que foi morto, não sei porquê".
Sophal Mar teme o que muitos dizem e escrevem: que o tempo passe demasiado devagar e que os outros arguidos - todos mais velhos que Duch (que terá 67 anos) e com uma saúde frágil - não cheguem a responder por tudo o que fizeram. Crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídio.
A defesa de um genocida
Como se defende alguém que tem às suas costas acusações como estas? Da mesma forma como se defende qualquer pessoa que tenha cometido um crime, afirma Paula Escarameia, perita da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. "Não há grande diferença em relação a um tribunal interno". O arguido "tem as mesmas garantias", como, por exemplo, o direito a um advogado e a "perceber tudo o que se está a passar no tribunal".
É provável que o arguido argumente que não foi o autor moral dos crimes, ou mesmo "que diga que foi ele, há muitas circunstâncias que podem ser atenuantes", ressalva Paula Escarameia. "Pode dizer que não tinha meios para controlar os acontecimentos. Só se é responsável pelos subordinados quando se pode controlá-los. É preciso que se prove que houve intenção de cometer o crime".
"Acredito que todos, independentemente do que tenham feito, têm direito a um julgamento justo", disse Jacques Vergès, o advogado de Khieu Samphan (que irá também responder por crimes de guerra, numa data a marcar), numa entrevista dada em Novembro à revista alemã Der Spiegel.
Vergès - conhecido como o "advogado do diabo", que tem no seu currículo a defesa de Carlos, o Chacal, o nazi Klaus Barbie, e assistência jurídica ao ex-ditador sérvio Slobodan Milosevic - explicava: "O público é sempre rápido a dar o rótulo de 'monstro'. Mas os monstros não existem, tal como não existe o mal absoluto. Os meus clientes são seres humanos...".
O advogado francês deu também algumas pistas sobre quais serão as suas linhas de argumentação: "Como chefe de Estado, representava o país, mas não era responsável pela repressão. É uma pessoa amável. Está inocente".

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