Torne-se perito

Da escrita à desescrita

Os contos à volta da fogueira, os percalços das cascas da banana e escritores que desescrevem? No Correntes d'Escritas, o encontro literário da Póvoa de Varzim, já com dez anos, tudo pode acontecer. E não é que acontece... Por Isabel Coutinho

a Um escritor, aquele que conta uma história, tem nos seus olhos uma arma de caça: uma caçadeira. Era isto que Paulina Chiziane, a primeira mulher moçambicana a ter publicado um romance, calmamente dizia com os seus olhos, nesse dia, muito azuis. A escritora falava para a multidão que enchia mais uma das sessões do encontro de literatura de expressão ibérica Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim, que terminou sábado à noite."Quando estou com um grupo de pessoas e acontece alguma coisa, os meus olhos de escritora de repente disparam, dão um tiro. Há qualquer coisa que cai, eu recolho e levo para casa. Depois de um mês ou de meses e até de anos aquela imagem, que consegui abater com a bala dos meus olhos, torna-se a minha presa, que levo para a cozinha e preparo com todo o requinte", explicou Chiziane, nesta décima edição do encontro.
Um bom escritor e um bom poeta é, para a autora de Balada de Amor ao Vento (ed. Caminho), um bom caçador. Aquele que no meio da multidão tem a capacidade de dizer é esta a palavra que quero, que preciso. Para a autora que escreve livros com muitas estórias e se inspira nos contos à volta da fogueira, o instante da escrita dura exactamente esse momento que é igual ao da trajectória de uma bala. "O resto são os temperos e outras coisas", diz.
Chiziane vem de uma sociedade de tradição oral, mas teve "o privilégio" de aprender a ler e a escrever em Moçambique, onde, depois da guerra civil, 75 por cento da população feminina ainda é analfabeta. Naquela mesa, onde a romancista participava, discutia-se a frase "o olhar escreve ou melhor a caneta vê". Mas se nem todos os moçambicanos escrevem - mas olham como os outros -, como fazem então para transmitir a sua cultura? Foi para explicar isso que Chiziane começou a contar uma história que lhe contaram na infância e fez a sala inteira cantar em coro com ela. Era a história de uma mulher que na ausência do marido decidiu ter um amigo e depois teve um filho. Quando o marido chegou da grande viagem, quis saber de quem era aquele filho. A mulher lá se tentou justificar, mas o homem, zangado, pegou na criança, foi para junto de um rio, cortou-a em quatro e atirou-a à água.
De vez em quando a mulher passava por aquele lugar para chorar. Um dia, quando lá chegou, as águas começaram mexer-se e ela começou a ouvir uma voz que reconheceu. A voz cantava: "I mame atako, I mame atako." Era, explicou Chiziane, a criança no fundo das águas que cantava "é a mãe que vem me visitar e trazer-me comida". E então todos os que tomavam banho naquele rio africano perguntavam quem era a voz daquela criança. As pessoas foram-se aproximando e descobriram ao ouvir aquela voz "I mame atako" que o homem era um assassino. "Para nós, africanos, escrever significa muito mais do que ver. A história da tradição oral significa som, movimento, uma série de outros signos. E significa também ver. Enquanto africana, quando conto uma história, estou a usar a imagem que eu vi - a mão da avó, o crepitar da fogueira - e, ao mesmo tempo, estou a ouvir essa voz da natureza e das pessoas. A cor das palavras da fogueira, o som do crepitar do fogo, o gesto da avó... Tudo isso que faz o livro."
Das bananas à literatura
E quem diria que, num encontro de escritores (este ano participaram nas Correntes mais de 100) vindos de várias partes do mundo, onde se cruzam vários sotaques e línguas, se iria ouvir falar de bananas? Foi como se a semana passada se juntasse a esta porque no Brasil, e quem contou isto foi o escritor brasileiro Moacyr Scliar, nas comemorações do centenário do nascimento da portuguesa Carmen Miranda falou-se muito de bananas. "Falando em Carmen, na emigrante portuguesa que ela foi, e falando na banana, eu me lembrei de outra figura que foi muito importante para mim: o meu pai. Ele, como a Carmen, era emigrante, só que não foi para o Brasil vindo de Portugal, partiu da Rússia", contou o autor de O Exército de um Homem Só (ed. Caminho)
Os pais de Moacyr faziam parte de um contingente de emigrantes que saíram da Rússia no período da guerra civil que se seguiu a 1917, em que houve muitas perseguições e massacres. "Rio Grande do Sul recebeu muitos contingentes migratórios de Alemanha e de Itália, pessoas que atravessaram o oceano em busca de uma nova vida nesse lugar que era para eles completamente desconhecido: o Brasil. É uma coisa curiosa como o fenómeno da emigração mudou: hoje, quando as pessoas emigram, elas sabem o que as espera, pelo menos o cenário é-lhes conhecido dos filmes, fotografias e da televisão."
Esses emigrantes que vieram da Rússia para o Rio Grande do Sul não tinham a menor ideia do que os esperava, o que não os impedia de ver o Brasil como uma coisa maravilhosa, com que eles sonhavam por causa do clima ameno, por ser um país gigantesco e amável, e por causa das frutas. "Frutas que, para eles, emigrantes pobres, eram completamente desconhecidas. O meu pai nunca tinha visto um abacaxi, nunca tinha visto uma manga, nunca tinha visto uma banana. E ele foi apresentado para uma banana, exactamente no dia em que ele chegou a Porto Alegre."
E Moacyr continua, revelando detalhes: "É uma viagem longa, como vocês sabem, levava cinco semanas saindo de um porto na Alemanha", continuou o escritor para entrar no tema que lhe coube em sorte - O Medo ou o Fascínio do Desconhecido. "Eles foram no porão de um navio de carga. Uma viagem terrível que aguentavam com essa esperança de chegar ao paraíso que seria o Brasil. O meu pai devia ter dez anos quando deixou a Rússia. Era um menino magrinho quando embarcou, mas no barco passou fome, ficou pele e osso, um esqueleto."
Então o navio atracou na cidade e eles desembarcaram. Nessa época a população de Porto Alegre ia assistir à chegada dos europeus e um gaúcho percebeu que o pai de Moacyr tinha fome e ofereceu-lhe uma banana. "Ele imaginou que era uma coisa para comer. Mas não tinha sido treinado para comer banana e, como não falava português, ficou com perplexidade a mexer na banana. Até descobrir que dava para descascar a banana."
"É que ele sabia que a laranja se descascava, porque na Rússia nos dias de aniversário costumava haver uma laranja para distribuir pela família inteira, um gomo para cada um, e ele sabia que, na laranja, havia a casca e os caroços. E ao descascar a banana apareceu uma coisa que ele pensou que era o caroço da banana. E jogou fora o caroço. Comeu a casca de banana até ao fim para surpresa do gaúcho."
Até ao pai de Moacyr morrer, com mais de 80 anos, disse sempre ao filho que "casca de banana não é tão ruim como a gente pensa". "O certo é que ele arriscou no desconhecido", afirma o escritor para quem esta história revela a visão do emigrante em relação ao país desconhecido. "Era o olhar de um deslumbrado capaz de descobrir coisas que os nativos não vêem. Para mim, o escritor é o emigrante que vê a banana e come a casca. Quando eu penso nessas coisas, acho que fui introduzido na literatura por duas pessoas que transformaram o desconhecido em magia - os emigrantes que foram os meus pais - e isso é a tarefa da literatura." E a sala inteira aplaudiu.
O "desescritor" magnífico
Sobre a tarefa da literatura também falou Juan José Millás, que, com O Mundo (ed. Planeta), recebeu o Prémio Planeta 2007 e o Prémio Nacional de Narrativa 2008. O escritor espanhol veio pela primeira vez ao Correntes d'Escritas. Achava que ia para o Porto, acabou por aterrar na Póvoa. Ele que foge a sete pés de encontros de escritores, conseguiu pôr a sala inteira a rir ao falar sobre Os Desafios da Escrita.
Contou que tem uma casa nas Astúrias numa vila de agricultores e criadores de gado que sobreviviam da criação de vacas e da produção de leite. E que quando Espanha entrou na Comunidade Europeia e chegou a globalização, estabeleceram-se quotas para a produção de leite. Foi dito aos criadores de gado: "- Você quanto produzia? - Produzia tanto. - Pois, em função do que você produzia antes, agora poderá produzir tantos litros por ano." E esta lógica foi-se estendendo a toda a cultura agrícola e pecuária espanhola. De maneira que se começou a produzir cada vez menos e se passou a subsidiar a falta de actividade. "Pagava-se às pessoas para deixarem de produzir leite, para deixarem de produzir trigo, ovos, etc. Esta foi a primeira etapa", explicou o escritor e jornalista espanhol. Na segunda etapa, continuou, pagava-se ainda mais para destruir.
"Alguém ia ao Ministério da Agricultura e dizia: 'Matei cinco vacas' e pagavam-lhe por isso. Outro dizia: 'Eu arrasei três hectares de videiras' e pagavam-lhe X por hectare. De maneira que culturas milenares, sítios onde o cultivo e as ganadarias eram uma forma de cultura desde há séculos, desapareceram e aqueles campos foram substituídos por lugares onde as pessoas fazem motocrosse, porque os camponeses, com o dinheiro que lhes davam por matar vacas ou arrancar videiras, compravam motos todo-o-terreno."
Foi então que Juan José Millás teve um pesadelo. Imaginou um dia que os ministros da Cultura da União Europeia se reuniam em Maastricht e decidiam que "o romance, a narrativa, era uma indústria contaminadora e que havia que afastá-la dos núcleos urbanos do Ocidente". Chegaria, então, uma altura em que "os diálogos se construíam no Vietname, as descrições na Coreia, os monólogos interiores não sei onde, ou no Sudeste asiático, e depois juntava-se tudo isto e montava-se o livro na Alemanha, por exemplo". Isto numa primeira etapa. "Numa segunda, davam-nos quotas também. Diziam: '- Você, quanto escreveu ao longo da sua vida? - Tantas páginas. - Pois, você pode escrever três contos por ano'." Depois, numa terceira etapa, pagariam aos escritores para "desescrever".
"Isso quer dizer que eu chegaria ao Ministério da Cultura e diria: 'Desescrevi um romance meu, chamado A Desordem do Teu Nome, por exemplo, e pagar-me-iam por tê-lo desescrito e, além disso, quereria o destino que me pagassem mais por tê-lo desescrito do que por tê-lo escrito." E apareceria uma figura nova, a do desescritor, que seria um tipo logicamente boémio, desastrado... "Vê-lo-íamos passar por aí e perguntaríamos: 'Quem é este? - Este é um desescritor magnífico, desescreveu Madame Bovary!"
O pesadelo está a transformar-se em realidade. Juan José Millás tem a impressão que isto, em alguma medida, e de forma subtil, já aconteceu. "Não de um modo tão descarado como sucedeu na agricultura ou na pecuária. Mas, de um modo subtil e secreto, já começámos a desescrever", disse para a plateia. "Um dos maiores desafios da escrita será resistir a esta longa etapa de desescrita em que parece termos entrado."

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