Torne-se perito

Clemenceau A última viagem do velho guerreiro

O antigo navio porta-estandarte da Marinha de guerra francesa vai terminar os seus dias num estaleiro do Reino Unido. Longe da glória de outros tempos, há muito que se transformara numa fonte de embaraços. O mau da fita tem um nome: amianto

a Pela terceira vez na sua longa vida, o porta-aviões Clemenceau, outrora o orgulho da Marinha francesa, largou para a sua derradeira viagem. O enorme navio, baptizado em honra do antigo estadista francês Geroges Clemenceau (primeiro-ministro durante a I Guerra Mundial) e retirado do serviço activo em 1997, viu-se envolvido nos últimos anos numa lamentável odisseia de avanços e recuos com vista ao seu desmantelamento. No início desta semana, oito pequenos rebocadores retiraram-no do porto francês de Brest, rumo aos estaleiros da ABLE UK, em Hartlepool, no Norte do Reino Unido, onde terminará os seus dias.É sempre um momento triste, quando um grande vaso de guerra troca a imponência da sua capacidade militar pelo apagamento da reforma. Mas, no caso do Clemenceau, mais do que tristeza, a França sentiu alívio. Porque a saga do antigo navio-almirante da Marinha francesa já há muito se transformara numa fonte de embaraços para o Governo gaulês.
O clímax desta triste história foi atingido há três anos, quando o Clemenceau, então já transformado num sarcófago vazio de 265 metros de comprimento por 51,2m de altura a que foi dado o nome de Casco Q790, viajou até à Índia para ser desmantelado, acabando por regressar a mando das autoridades francesas, fortemente pressionadas pela opinião pública mundial.
Acontece que o Clemenceau, lançado à água em Dezembro de 1957, é uma verdadeira bomba ambiental. Na sua construção foram utilizados vários materiais perigosos, incluindo chumbo, mercúrio e químicos que entretanto revelaram as suas facetas letais, mas o inimigo número um tem nome: amianto. As estimativas sobre a quantidade que continua a bordo variam desde as 40 até às 1000 toneladas.
O amianto é um metal de excelentes qualidades para a indústria e com múltiplas aplicações. Mas as suspeitas sobre os seus malefícios para a saúde, que já vêm de tão longe quanto os tempos do Império Romano, confirmaram-se nas últimas décadas: é cancerígeno e provoca doenças respiratórias em quem com ele contacta regularmente.
O edifício-sede da União Europeia esteve fechado durante anos para ser descontaminado (o amianto, que é resistente ao fogo e um isolante térmico e eléctrico, foi durante muito tempo utilizado na construção civil). Por todo o lado, os países do mundo ocidental esforçam-se para erradicar da vida das pessoas o antigo material milagroso (é abundante, mais resistente à tensão do que o aço, moldável e facilmente transformável em fibras) a que os antigos gregos chamaram "indestrutível" - asbestos, o nome por que é conhecido nas línguas inglesa e francesa.
A grande questão que se coloca, portanto, é a saúde dos trabalhadores que procederão ao desmantelamento do navio. Confrontadas com os (quase inexistentes) padrões de segurança em Alang, na Índia, para onde o Clemenceau rumou no final de 2005, várias ONG mundiais, entre as quais a Greenpeace, envolveram-se numa campanha contra a viagem do "navio assassino". O Egipto começou por bloquear a sua passagem no Canal do Suez, depois autorizou-a. Mas, em Fevereiro de 2006, quando já se aproximava de águas territoriais indianas, o porta-aviões foi mandado regressar pelo então Presidente francês, Jacques Chirac, a braços com forte contestação interna, a nível judicial e político.
Cemitério de navios
Em Maio desse ano, o Clemenceau retornava a casa. Fundeou em Brest, onde tinha a companhia de dezenas de outros navios (ao todo, 56, contabiliza a Europe 1), na sua maioria militares. Todos estão desactivados, mas são mantidos em estado de navegar, porque essa é a condição essencial para um dia virem a ser desmantelados no estrangeiro. Pelo menos um deles, o antigo cruzador Colbert, de 181 metros de comprimento, funciona como atracção turística e atrai muitos visitantes.
Foi em Brest que o grande orgulho da Marinha francesa passou os dois anos seguintes, à espera de conhecer o seu destino final. Para o Clemenceau era o segundo regresso a casa depois da sua anunciada "derradeira viagem" - é que em Outubro de 2003 o então já baptizado Casco Q790 zarpara de Toulon rumo a Espanha, onde deveria ser desmantelado pela empresa espanhola Gijonese.
Acontece que depressa se percebeu que o porta-aviões rumava à Turquia, e não a Espanha, pelo que o contrato foi cancelado e o navio regressou tristemente ao porto de partida (uma cronologia dos últimos anos do Clemenceau pode ser consultada no site da Europe 1, em www.europe1.fr).
Ao cabo de 36 anos de serviço activo, que o viram navegar mais de um milhão de milhas marítimas (cerca de 2.000.000 km - o equivalente a 48 vezes o perímetro da Terra) em todos os mares do planeta e em cenários tão diversos como a Guerra do Golfo ou o conflito dos Balcãs, o que restava do Clemenceau agonizava sem destino definido. Seguiu-se o folhetim indiano, depois vieram mais batalhas jurídicas.
Limpeza final
Na segunda-feira passada, finalmente, o Tribunal Administrativo de Rennes rejeitou a última tentativa das associações ambientalistas para impedir a transferência do Casco Q790 para o Reino Unido, onde, na foz do rio Tees, aguardará vez atrás de quatro navios da Marinha dos EUA para ser colocado na maior doca seca do mundo (cerca de dez hectares) e transformado em matéria-prima para a cada vez mais sequiosa indústria mundial do aço.
Isso só acontecerá depois da limpeza final, que retirará da estrutura todos os materiais contaminados com amianto e outras substâncias perigosas. A empresa responsável pela operação, a ABLE UK, garante que dispõe de todas as condições de segurança para tratar materiais tóxicos. Mas o navio só se lançou na sua última viagem após uma operação preliminar levada a cabo pelas autoridades francesas. Objectivo: livrar o casco de algas japonesas e moluscos norte-americanos, que poderiam tornar-se espécies invasoras em águas britânicas. Era este o último arsenal do Clemenceau.

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