Torne-se perito

Darwin

a Em 2009 faz 150 anos que foi publicado A Origem das Espécies de Charles Darwin (1859), um dos livros mais importantes de todos os tempos. Darwin foi detestado pelo pensamento reaccionário no século XIX por ter tornado Deus uma hipótese desnecessária (a frase é do outro evolucionista, Lamarck, não de Darwin) e a direita religiosa norte-americana abomina-o ainda hoje. Mas serviu a direita laica e moderna, racista e fascista do século XIX e do início do século XX que precisava de justificar a preponderância dos mais fortes sobre os mais fracos. A nova direita moderna também gosta muito de Darwin: o aniversário do livro foi assinalado em tons de festa pela sua revista porta-voz, a Economist, no número do Natal de 2008. Parece que esta direita descobriu, através dos seus think-tanks, as muitas virtudes do darwinismo, já não as raciais, mas as sociais e económicas. Debaixo da legitimação de Darwin seria possível dizer-se, como escreve a Economist com rara grosseria, que o crescimento económico é infinito, mas que sempre haverá pobres.
O oportunismo darwinista da direita liberal contemporânea mostra que esta abandonou a tradição humanista, sendo nesse aspecto (como noutros) mais moderna que a esquerda actual, que recalcou aspectos modernos do marxismo, incluindo o anti-humanismo. Mas já houve outra esquerda e dá vontade de recordar a época em que a esquerda falava de Darwin sempre em companhia de dois outros pais fundadores do anti-humanismo moderno, Freud e Marx: a transição da década de 1960 para a de 1970, quando os intelectuais marxistas pensavam em francês - e nunca mais houve, desde essa época, gente que fosse marxista e pensasse em francês com importância histórica ou cultural que mereça menção. Dizia-se na altura, não apenas que Marx, Freud e Darwin fundaram a cultura moderna acabando com Deus (isto já não levantava nenhum sobrolho), mas sobretudo pondo termo ao Homem. Marx tirou Deus da História, mas também evidenciou que o Homem não faz a história, é produto dela. Freud eliminou Deus da vida interior do Homem e, além disso, colocou o livre arbítrio, esse distinguo humano por excelência, à mercê de forças obscuras, não as da inteligência. E Darwin, finalmente, provou que o Homem resulta da evolução - o que quer necessariamente dizer que não constitui o seu culminar mas apenas uma fase, se calhar nem sequer particularmente importante. Como se dizia na altura, o marxismo não é um humanismo. É claro que muito menos o seriam a psicanálise ou o darwinismo. A famosa "morte de Deus" era também, e naturalmente, a "morte do Homem".
As direitas passaram ao lado deste debate. Não abdicavam de Deus e o Homem não passava da Sua criatura. Mas, hoje, a direita moderna, livre do passado antigo de que já só se reclama para parecer bem na missa de domingo, sem vergonha e sem problemas, deixa às Igrejas o que é de Deus e ao Capital o que é do Homem. E o Capital é o seu outro nome para a sobrevivência dos mais aptos. Não admira que vá repescar Darwin.

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