A imperatriz tinha um abismo dentro dela

A sobrinha-neta da imperatriz Isabel da Áustria-Hungria esteve em Portugal a apresentar uma biografia sobre a sua mítica antepassada. O retrato que faz é inesperado: não o da figura romântica que o cinema eternizou, mas o de uma mulher atormentada, que se julgava maldita. Por Dulce Furtado

a Sissi tinha tudo para ser feliz: uma beleza desarmante, riqueza considerável e uma posição social invejável no poderoso império austríaco do século XIX, tendo conquistado como um relâmpago o coração do jovem imperador Francisco José. E nada podia estar mais longe da verdade. O lado sombrio e trágico do aparente conto de fadas é revelado em pormenor na biografia Sissi - A atormentada vida da imperatriz Isabel, escrito pela arquiduquesa Catalina de Habsburgo, sua sobrinha-neta. A autora é neta de Carlos I, o último imperador austro-húngaro.Uma outra rainha com o mesmo nome - Isabel I de Inglaterra -, 300 anos antes, dizia ter um "furacão" dentro dela. Isabel da Baviera tinha um abismo. Um vácuo que a foi sugando e fez dela uma mulher "morta para a vida" muito antes de o seu coração ser perfurado, aos 60 anos, pelo estilete do anarquista italiano Luigi Lucheni, num cais de Genebra, por mais não ser do que uma cabeça coroada.
"Era uma alma torturada, muito distante daquelas imagens doces de w", nota Catalina de Habsburgo, referindo-se à trilogia cinematográfica Sissi, do austríaco Ernst Marischka, realizada entre 1955 e 1957. Com este livro, quis revelar uma Isabel "mais real e mais humana".
Vencer o mito do rosto atraente e dos belos vestidos, dos sorrisos e diamantes e do encanto irresistível da imperatriz bávara, ir além da lenda romântica, não foi tarefa fácil para a escritora - mesmo se desde cedo foi ensinada a recusar as "imagens comerciais" de Sissi. "Ninguém a tratava assim na família, a não ser quando ela era mesmo muito pequena, e o meu pai insistiu muito para que nunca lhe chamasse Sissi", conta. "Faço-o apenas na capa, por razões comerciais."
Com esta biografia - para a qual pesquisou durante três anos os arquivos da família - quis Catalina "ajudar a esclarecer e a explicar as intrigas e os mistérios" em torno da imperatriz, num período histórico particularmente difícil para o império. Os acontecimentos são relatados através de cartas escritas por uma das damas de companhia de Isabel, uma condessa húngara que acompanhou a imperatriz ao longo de 30 anos, e também das histórias que passaram de geração em geração na família Habsburgo.
Uma escolha foi clara, por sentir ser necessário "ver o lado negro" da imperatriz para "apreender a realidade": "Jean-Paul Sartre dizia que não podemos apreciar a luz se não tivermos conhecido a escuridão - e isso exprime o que foi a vida de Isabel. Ela procurava paz, serenidade e espiritualidade e atravessou o inferno sem jamais ter encontrado a luz. Foi sem dúvida uma das mais belas rainhas e imperatrizes da época, mas foi também a mais infeliz."
Por essa razão, a narrativa parte do que a sua autora diz ter sido "o ponto sem retorno", dando-nos entrada na vida dos Habsburgo com a morte do príncipe herdeiro, Rodolfo, único filho varão dos imperadores. "Ela sofreu profundamente com a perda do filho, assassinado selvaticamente, e teve de aceitar em silêncio a teoria oficial do suicídio para salvar a coroa e o trono do marido e para salvar o herdeiro do império que nunca seria o seu filho", sublinha.
A linha de sucessão passaria para Carlos Luís, irmão de Francisco José, e daquele para o seu filho Francisco Fernando - que um dia Rodolfo, no relato de Catalina, olhou durante uma caçada e disse: "É ele quem me sucederá." Errou o kronprinz na fatídica premonição. Francisco Fernando seria assassinado em Sarajevo, em 1914, dando início à I Guerra Mundial, e a coroa haveria de passar dois anos mais tarde das mãos do velho imperador directamente para as do seu sobrinho-neto Carlos I.
Depois de Rodolfo, a culpa
Após a morte de Rodolfo, em 1889, quando este tinha 30 anos, Isabel "perdeu a vontade de viver". Nas cartas que escreve à irmã, uma freira carmelita, a dama de companhia da imperatriz descreve o declínio: "Praticamente não ingere quaisquer alimentos, martiriza o corpo com intermináveis sessões de ginástica, duches gelados, longos passeios, como que para se castigar por se encontrar ainda com vida. (...) Exibe permanentemente o aspecto de um pássaro enlouquecido, perseguido por um caçador implacável."
Rodolfo terá sido o ponto sem retorno, mas a morte perseguira Isabel desde antes. "Ela tinha muito medo da morte, mas era também atraída pela morte", avalia Catalina. Esse sentimento foi amplificado pela perda do cunhado Maximiliano - atraído por Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, a aceitar o trono do vespeiro mexicano, onde acabou morto no Verão de 1867 às mãos de um pelotão de execução revolucionário - e pela morte misteriosa do primo Luís II da Baviera, companheiro muito querido de infância, afogado nas águas do lago Starnberg, em 1886. "Isabel pensava que era maldita, que estava amaldiçoada."
E o afastamento que vivera em relação aos filhos criou nela um sentimento profundo de culpa. "Ela culpava-se pela morte do filho, como antes se sentira culpada pela morte da primogénita", Sofia, aos dois anos de idade, com sarampo. A supervisão dos filhos (Gisela, Rodolfo e, dez anos mais tarde, Maria Valéria) é-lhe retirada pela sogra, Sofia da Baviera, mulher de carácter forte que valorizava as regras, a hierarquia e as convenções, e que via Isabel como uma "jovem mãe tonta", incapaz de providenciar a educação devida aos filhos do imperador.
Foi por esta fase, de resto, que surgiram os primeiros sinais de instabilidade na imperatriz. Aos 23 anos Isabel é uma mulher com os nervos destroçados: vertigens, náuseas, uma fadiga permanente. Os médicos atribuem os sintomas aos partos, aos exercícios e às dietas que a imperatriz segue escrupulosamente para recuperar a figura e manter uma cintura de 50 centímetros.
"Ela procurava um controlo absoluto sobre o corpo e a mente. Não comia dias seguidos e depois ia cavalgar horas a fio. Era muito dura consigo própria, como se quisesse castigar-se. Hoje, face àqueles sintomas, falaríamos de anorexia física e psíquica."
A doença não lhe tira a beleza de início, mas com a perda do filho, quando Isabel tem 51 anos, o "castigo" é levado ao extremo. "O rosto, antes ligeiramente bronzeado, é agora cerúleo e macilento; duas cruéis rugas atravessam-lhe a testa e nega-se a sair sem levar o véu de gaze", descreve a dama de companhia.
A imperatriz permanece um ícone, mesmo se envelhecida e amargurada. Continua a ser uma sensação - cada vez mais "estranha" - por onde quer que passe, com os vestidos negros abotoados até ao queixo e os longos véus escuros. Mas deixa de participar nos eventos oficiais e jamais permite ser fotografada. Os nove anos seguintes, até à morte, seriam de existência errática pelo Mediterrâneo, a bordo do barco a vapor imperial Miramar, com estadias privilegiadas na Madeira, Maiorca e Corfu.
Pés de fora da carruagem
Até ao dia em que viajou pela primeira vez até perto da "cidade grande", Viena, em 1853, Isabel não conhecera outra forma de vida que não a que lhe era proporcionada no castelo de Possenhofen, onde nasceu em Dezembro de 1837: rodeada por bosques e pelas montanhas da Baviera, com um circo no jardim, cães (Sissi nunca gostou de cães pequenos), e educada sem grandes regras, junto com os sete irmãos, por um pai extravagante, terno e carinhoso a quem a cidade entediava e que lhe ensinava os nomes das plantas e das estrelas.
Sissi tem 15 anos quando faz a viagem com a mãe e a irmã mais velha, Helena, de 18 anos, para celebrar o 24.º aniversário do imperador Francisco José em Bad Ischl, onde a família imperial passava o Verão. Foi para Sissi uma viagem de dissabores: afastavam-na dos cavalos e dos cães, proibiram-na de se sentar ao lado do cocheiro, do lado de fora da carruagem com os pés pendurados, e não a deixaram, nem por uma vez, dar de beber aos cavalos.
Levavam o propósito de acertar o casamento de Helena com Francisco José, mas o jovem imperador, que recebera o trono aos 18 anos, não fica impressionado com a "noiva absolutamente perfeita" que a mãe e a tia lhe preparavam. Antes manifesta preferir Sissi, de "terna e sonhadora beleza". Isabel revela-se "dócil mas algo triste pela nova vida que a espera" com o casamento com o imperador, em Abril de 1954.
Amará o marido profundamente, com quem troca cartas "repletas de ternura e doçura", mas nunca se adaptou à vida de Viena e da corte.
Sissi afasta-se por períodos cada vez mais prolongados. "Os austríacos não a compreendiam, não conseguiam perceber por que razão se ausentava", nota a autora da biografia. Essa incompreensão foi particularmente expressada por um jornal de Viena que, a 1 de Janeiro de 1860, assinala a passagem breve de Isabel pela capital do império com o título irónico "Agradecemos a Vossa Majestade por ter passado estes quatro dias em Viena".
"Na Áustria as pessoas estavam habituadas a ver a família real muito próxima, nos teatros, em passeios pelos parques - era tudo muito simples, muito burguês. Acima de tudo não compreendiam por que razão não estava Isabel com o imperador, que era o homem mais dedicado do império", explica Catalina de Habsburgo, para quem Francisco José deu "uma maravilhosa lição de humildade e de amor" ao permitir à mulher partir e ser deixada só. "Ele sabia que não a podia prender."
A imperatriz política
Nada da atitude avessa à corte, manifestada desde os primeiros dias em que envergou a coroa, significa que Isabel fosse alheia aos assuntos do império. "Ela podia ser muito caprichosa e difícil em tempos calmos, mas nos momentos difíceis, em que o império era ameaçado, revelava uma enorme serenidade e cabeça fria", defende Catalina de Habsburgo, apontando que a tia-avó tinha profundo interesse nos assuntos políticos.
O primeiro exemplo foi dado na primeira viagem que os imperadores fazem a Itália, onde o clima de contestação à coroa era enorme, por entre os vários focos independentistas que surgem por todo o lado no império - em meados do século XIX um dos mais poderosos e o segundo maior da Europa, cobrindo um território onde hoje vivem 69 milhões de pessoas. A imperatriz inicia a sua "viagem de encantamento" por finais de 1856 e ao fim de quatro meses parece deixar as terras italianas mais estáveis e tranquilas.
Mas não consegue impedir a partição, que acaba por levar à guerra da Sardenha em 1859 contra os Sabóia e Napoleão III. Os desaires prosseguiriam com a guerra da Prússia, em 1866, que decretou o fim do Sacro Império Romano, sobre o qual os Habsburgo tinham reinado mais de mil anos. Toda a estrutura imperial da Áustria ameaçava ruir, sendo salva apenas pelo Compromisso Austro-Húngaro, que coroou Isabel e Francisco José reis da Hungria em 1867.
"Foi ela quem conquistou a segunda 'cabeça' da monarquia: a Hungria, que Isabel adorava como o país a adorava a ela", sublinha a escritora. "Apesar da oposição da família, e do próprio marido, a imperatriz argumentou em todas as frentes e conseguiu persuadi-los. Isabel era uma mulher especialmente atenta, muito culta e também particularmente intuitiva sobre as questões do império. Ela percebeu que o império dual era o passo que permitiria preservar a monarquia."

Para a maioria dos historiadores a teoria oficial de suicídio de Rodolfo de Habsburgo, o kronprinz do império austro-húngaro, é pacífica: todos os relatórios falam num pacto de morte entre dois amantes e o próprio pai do herdeiro da coroa, o imperador Francisco José, narra o homicídio seguido de suicídio num telegrama enviado ao Vaticano. Só uma dispensa especial papal, por "loucura temporária", permitiu enterrar Rodolfo em solo sagrado.
O herdeiro foi encontrado morto a 30 de Janeiro de 1889 no pavilhão de caça da família real em Mayerling, nos bosques de Viena, junto com Maria Vetsera, uma jovem de 17 anos, oriunda da baixa burguesia, que todo o império sabia ser sua amante. Dias antes tinha discutido com o pai, que lhe negou qualquer possibilidade de anular o casamento com a princesa belga Estefânia - antes lhe exigiu que terminasse o caso de que já se falava sem recato nem discrição por toda a corte.
Mas os herdeiros da casa real dos Habsburgo não crêem nesta "versão arquitectada para preservar o império" e argumentam com as imensas discrepâncias e contradições dos documentos oficiais e com "a verdade" contada por Francisco José ao aproximar-se a sua morte: Rodolfo fora brutalmente assassinado, como a amante - testemunha incómoda -, pela mão de simpatizantes pró-húngaros ou agentes franceses, por ter recusado a participar na deposição do seu pró-alemão pai.
"Não temos prova de que foi um assassinato. E não as teremos até ao dia em que for aberta a sepultura de Rodolfo: aí estará a prova de que os dedos lhe foram cortados durante a luta que acabou com a sua morte e que foi morto não com um tiro mas com uma pancada violenta na cabeça", sustenta Catalina de Habsburgo, sobrinha-neta de Francisco José. E defende: "Os imperadores sacrificaram a honra do filho pela Áustria. Falar em assassinato político naquela altura seria seguramente o início de uma guerra civil no império."

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