1932 -2008 Miriam Makeba

Nascida na África do Sul, forçada ao exílio durante décadas, Miriam Makeba tornou-se um símbolo da luta dos negros. O coração parou aos 76 anos, no final de um concerto contra a máfia, em Itália

a Morreu Zenzile Makeba Qgwashu Nguvama Yiketheli Nxgowa Bantana Balomzi Xa Ufun Ubajabulisa Upaphekeli Mbiza Yotshwala Sithi Xa Saku Qgiba Ukutja Sithathe Izitsha Sizi Khabe Singama Lawu Singama Qgwashu Singama Nqamla Nqgithi. Chamavam-lhe Miriam Makeba. Ou, simplesmente, Mamã África. O nome completo aparece numa carta que a própria cantora sul-africana escreveu, em 1960, à revista norte-americana Time. "Houve um pequeno erro no que diz respeito ao meu nome africano, e, se for possível, gostaria de o soletrar correctamente para vocês", pede no início da carta. E no final, abaixo das várias linhas que o nome ocupa, explica: "Uma criança fica com o primeiro nome de todos os seus antepassados homens. Muitas vezes, a seguir ao primeiro nome, aparecem uma ou duas palavras descritivas, falando do carácter da pessoa, e fazendo de um verdadeiro nome africano uma espécie de história".
Miriam Makeba morreu na madrugada de ontem, aos 76 anos, vítima de ataque cardíaco, depois de se ter sentido mal num concerto em Itália. A mulher que foi um símbolo da resistência ao regime de apartheid na África do Sul deu o seu último espectáculo em apoio a uma outra luta: a do escritor e jornalista Roberto Saviano, autor do livro Gomorra, contra a Camorra, a máfia napolitana. O concerto em Castel Volturno, perto de Nápoles, era uma manifestação de solidariedade para com Saviano, ameaçado de morte pela máfia.
O rei não a ouviu
Não sabemos o que significa todo o seu nome, mas o Guardian "traduzia" ontem o primeiro: Zenzi vem da palavra uzenzile, que, na língua xhosa, etnia do pai de Miriam, quer dizer "a única pessoa a quem podes culpar é a ti própria". Miriam Makeba nasceu num subúrbio pobre de Joanesburgo, filha de um funcionário da Shell e de uma empregada doméstica e curandeira. Começou a cantar cedo, na Escola Metodista em Pretória, mas, conta o diário britânico, o que deveria ter sido o momento alto desse início de carreira foi uma enorme desilusão. Miriam e outras crianças tinham preparado uma música para cantar ao rei Jorge VI, mas, depois de terem estado à chuva à espera do monarca britânico, ele passou sem sequer parar para as ouvir.
O episódio não impediu, no entanto, que a carreira de Miriam avançasse, em paralelo com uma complicada vida privada. Casou com um polícia, aos 17 anos teve uma filha, Bongi, mas pouco tempo depois descobriu que o marido a enganava com a irmã - foi o primeiro dos seus divórcios. A carreira musical começou a sério quando se juntou aos Cuban Brother, primeiro, e depois, em 1954, aos Manhattan Brothers, numa altura em que o jazz e o ragtime vindos da América se misturavam, na África do Sul, com os hinos religiosos que se ouviam nas igrejas.
Foi o cinema que a lançou numa carreira internacional, graças a um pequeno papel no filme Come Back África, que a levou ao Festival de Veneza em 1959, pela mão de Lionel Rogosin, e daí para os Estados Unidos. Começaram então os problemas com o regime sul-africano, que em 1960 decidiu impedi-la de regressar ao país, quando ela tentou ir ver a mãe que estava a morrer. Uma proibição que acabou por fazer dela um ícone da luta dos negros. "Mantive a minha cultura. Mantive a música das minhas origens. Através da minha música tornei-me a voz e a imagem de África, e das pessoas, sem realmente me aperceber disso", escreveu em 1987.
Os vários exílios
Mas se de um lado as portas de fecharam, do outro abriram-se completamente, e Miriam, apoiada, entre outros, por Harry Belafonte, tornou-se uma estrela na América, tendo a assistir aos seus espectáculos figuras como Miles Davis, Sidney Poitier, Elizabeth Taylor ou Bing Crosby. Nasceram então os grandes êxitos que marcaram toda a sua carreira, como Pata Pata e Click Song. E, embora tenha sido Marilyn Monroe quem ficou para a História por ter cantado os parabéns a John F. Kennedy, Miriam Makeba também cantou nessa grande homenagem no aniversário do Presidente americano em Madison Square Garden. Em 1966 tornou-se a primeira artista africana a receber um Grammy.
Voltou a casar, primeiro com o trompetista Hugh Masekela, e, depois do divórcio, com Stokely Carmichael, líder dos Panteras Negras. E, de repente, tudo começou a correr mal. As portas que se tinham aberto nos EUA fecharam-se, os concertos começaram a ser cancelados. A sua ligação a um activista da luta pelos direitos dos negros não foi aceite pela América, apesar de ela ter sempre recusado ser classificada como uma cantora política.
E Miriam mudou-se para a Guiné, onde, mais uma vez se divorciou, e voltou a casar, e onde sofreu o profundo trauma de, em 1985, ver morrer a sua filha Bongi na sequência de complicações causadas por um aborto. Segundo a AFP, as suas dificuldades financeiras eram tão grandes na altura que nem sequer podia pagar o caixão da filha.
Ela própria contou em 2000, numa entrevista à revista Salon que a má gestão da sua carreira nos tempos áureos fez com que não recebesse nada pelos seus sucessos e tivesse que continuar a dar concertos para sobreviver.
Um longo adeus
"Nunca compreendi porque é que não podia voltar para casa", disse Miriam Makeba, em 1990, quando finalmente regressou a Joanesburgo, para assistir à queda do apartheid e cantar a euforia dos negros sul-africanos após a libertação de Nelson Mandela. Nas suas músicas cantou sobre esse exílio. "Não tenho para onde ir, não tenho onde me esconder. É um sentimento que não consigo explicar. E não posso voltar a casa" (Umhome, do álbum Homeland).
E na entrevista à Salon explica como se sentiu de regresso à África do Sul: "Bem, continua a ser o mesmo sítio, onde deixei o meu cordão umbilical. Na minha cabeça e no meu coração estive sempre em casa. Sempre imaginei regressar a casa. Porque quando parti não tinha qualquer intenção de não voltar".
Em 2005 anunciou que se ia retirar, mas, dizia ontem o Guardian, os concertos de despedida foram-se sucedendo, até ao da noite de sábado, em Itália, onde ainda cantou durante meia hora, antes de o coração falhar.
Por muito grande que fosse o seu nome, dificilmente conseguiria contar toda a sua história. Talvez, afinal, ela caiba melhor nessas duas palavras: Mamã África.

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