1.176.615 portugueses rodeados de América por todos os lados

São 1.176.615 portugueses e descendentes de portugueses. Alguns criaram um mundo entre
a América e Portugal. Há 50 anos, o vulcão dos Capelinhos impulsionou uma grande vaga.
E essa grande vaga revitalizou a comunidade luso-americana. Os Açores já não se entusiasmam com o seu regresso. "Eles não precisam mais que a gente lhes explique
a América." Por Ana Cristina Pereira

a Tentaram americanizá-lo mal chegou aos Estados Unidos e o matricularam na escola primária. Tinha dez anos e, de repente, já não era Diniz Aurélio Lourenço Borges - era Dennis Borges. "À moda da América é assim", sossegava-o uma tia. Na escola, rodeado de "alunos cujos pais ou avós tinham emigrado (e continuavam a emigrar) dos Açores para uma zona rural de nome Tulare, circundada de leitarias e ranchos", sentiu-se como um "peixe fora de água". "Quase ninguém" falava português. E "pouquíssimos se afirmavam portugueses". Só os que, como ele, tinham acabado de chegar àquela espécie de terra prometida. A aventura de Diniz Borges está dentro do livro Capelinhos - As Sinergias de um Vulcão, editado pela Portuguese Heritage Publications (Califórnia, 2008), a propósito dos 50 anos das erupções no Faial. Entre Dezembro de 1958 e meados da década de 80, uns cem mil açorianos abalaram para os EUA. E essa grande vaga teve grande impacte na revitalização da comunidade luso-americana.
Até à vinda dos sinistrados - e dos açorianos, madeirenses e continentais por eles contagiados -, quase só havia portugueses e descendentes da primeira grande vaga, que se estendera da viragem do século XX até aos anos 20. Uns eram idosos "americanizados" e os outros parte do mainstream.
Com estes seria diferente. Com estes o laço não se perderia (pelo menos assim, num instante). Graças à televisão, ao telefone, à Internet. Onésimo Teotónio de Almeida, da Universidade de Brown, até usa a expressão L(USA)lândia: pedaços de Portugal rodeados de América por todos os lados.
O livro (editado em inglês e em português) junta 45 autores dos dois lados do Atlântico. A mostrar que portugueses dos EUA e portugueses de Portugal não vivem de costas voltadas, enfatiza José do Couto Rodrigues, presidente da Portuguese Heritage Publications. E, sobretudo, a "homenagear todos aqueles que estremeceram sob o horror do vulcão".
Um ano de abalos
Entre as 7h00 e as 8h00 de sexta-feira, 27 de Setembro de 1957, após mais de 200 abalos, a uns 400 metros do farol dos Capelinhos, "rebentou" o vulcão. As populações ergueram as mãos ao céu, pediram misericórdia divina. E o "diabo" a cuspir lava, gazes, fumos. Só parou mesmo a 25 de Outubro de 1958.
Eram belas as erupções. "O reverso apresentava-se submerso pelas cinzas: as casas de cabeça vazia e escancarada (os tectos não resistiram) ficaram inabitáveis, os terrenos agrícolas irremediavelmente perdidos, as pessoas desalojadas dependentes dos poucos haveres que salvaram e da solidariedade de muitos", recorda, num capítulo, o escritor Álamo Oliveira.
O auxílio chegou do lado ocidental do Atlântico. Os açorianos dos EUA angariaram fundos. E instigaram políticos. Mandaram cartas e telegramas a representante e senadores - eles também eram "bons americanos" e estavam inquietos com o drama que sacudia o Faial.
Primeiro o senador John Pastore, de Rhode Island, depois o senador John Kennedy, de Massachusetts, ouviram os sentidos apelos: propuseram ao Congresso norte-americano abrir uma excepção para os sinistrados. O Azores Refugee Act foi promulgado pelo Presidente Dwight Eisenhower, a 2 de Setembro de 1958: 1500 vistos para chefes de família.
Para acelerar o processo, e prevenir fraudes, a administração americana enviou o vice-cônsul Richard Flanagan. A 26 de Dezembro de 1958 embarcavam os primeiros 24 faialenses. Iam todos da freguesia do Capelo. Seguiram no Carvalho Araújo para São Miguel. Dali, o navio avançou para Santa Maria. Em Santa Maria entraram num avião da TWA com destino aos EUA.
Tinham de ir até 30 de Junho de 1960. "Para trás ficavam os mortos in memoriam, as casas sem reconstrução, as procissões votivas dos abalos e, sobretudo, o medo justificado de que voltassem os estremeções, os roncos, os impulsos, ampliando o número de casas esborralhadas, ficando com as tripas à mostra, numa devassidão apenas adivinhável", retrata Álamo Oliveira.
O prazo ainda não tinha terminado e os vistos já estavam esgotados, descreve Daniel Marcos, do Instituto Português de Relações Internacionais. O governador Freitas Pimentel "começou a sensibilizar o consulado norte-americano em Ponta Delgada para a necessidade de aumentar o número de vistos". OS EUA aprovaram uma quota extra de 500.
Em busca de vida melhor
A assistente social Manuela da Costa passou o Verão de 2007 a perguntar a açorianos chegados aos EUA entre 1960 e 1980: "Porque emigraste?" A pergunta confundiu "muita gente". "Mas que pergunta! Pela mesma razão que todos partimos: à procura de uma vida melhor".
Quem queria ir tinha de arranjar nos EUA quem assinasse um termo de responsabilidade - uma "carta de chamada". Quem não tinha parentes ou conhecidos apelava à solidariedade dos compatriotas. E lá se desenrascava.
Os recém-chegados, nota José Luís Neves Pereira da Silva, da San José High Academy, "na sua maioria habituados a uma vida rural difícil nos Açores, não tinham medo de trabalho". E eram procurados por empregadores luso-americanos e por grandes empregadores não portugueses.
Com esta vaga renasciam, no seio da comunidade, "igreja, sociedades do Espírito Santo, sociedades de seguros, filarmónicas, grupos folclóricos, programas de rádio e de TV e imprensa". E geminavam "novas associações e actividades, incluindo cursos de língua portuguesa, bibliotecas, clubes de futebol", enunciam os investigadores Joe Machado e Vicky Machado.
Trouxeram "um maior orgulho na sua cultura, que começou a ser celebrada e projectada numa Califórnia mais receptiva à grande diversidade cultural, já que o conceito de mosaico étnico americano viera substituir o referido melting pot como modelo de integração". Ao contrário dos antecessores, "não tiveram de esquecer a língua materna para ter sucesso".
Pareciam "uns messias" quando visitavam os Açores. Manuela da Costa, a assistente social, faz uma descrição hilariante: "Trazíamos lindos vestidos, jóias, chapéus, sapatos de verniz e malas. A nossa pele era macia e tínhamos covinhas na cara, cabelo limpo e luzidio e dentes brancos e saudáveis. Tínhamos crianças gordas, que nem português falavam, não comiam sopa, davam bananas às galinhas, dava-lhes brecas na missa e nunca apanhavam tareias. Havia uma aura à volta dos 'americanos'. Cheirávamos bem; tínhamos tudo novo; éramos generosos e tínhamos bastante para apoiar a nossa generosidade".
Nas muitas conversas que teve não conseguiu "apurar quando" nos Açores deixaram "de ser recebidos com amor e hospitalidade" e passaram "a ser ridicularizados como estúpidos sem educação". Conseguiu apenas somar impressões como a sua ou a da sua vizinha.
Que aconteceu? Os ilhéus já não estão isolados. "Os açorianos podem visitar a América com a mesma facilidade com que nós podemos visitar os Açores", interpreta. "Eles não precisam mais que a gente lhes explique a América. Eles sabem quem são os americanos, e não somos nós. Criámos um mundo entre a América e os Açores, e é esse mundo que levamos quando os visitamos."
Mas quem são, afinal, os portugueses dos EUA? A partir dos censos de 2000, a socióloga Maria da Glória Pires de Sá faz uma caracterização dos portugueses ou descendentes de portugueses. Estamos perante um universo de 1.176.615 - 240.780 dos quais nascidos fora dos EUA.
Há portugueses em todos os estados. Mais de metade vive nos estados da Califórnia e de Massachusetts. É, porém, no estado de Rhode Island que a sua presença se sente com maior força: "Enquanto na Califórnia constituíam um por cento da população total, em Rhode Island constituíam nove por cento da população total, 22 por cento da população estrangeira".
A investigadora da Universidade de Darthmouth admite, no capítulo que abre a segunda parte da obra, um aumento de "orgulho étnico". Entre 1990 e 2000, apesar de apenas 25.497 imigrantes portugueses legais terem dado entrada no país, o número de portugueses residentes no país aumentou 276.555. Como não houve aumento significativo de natalidade, deduz que um número crescente de cidadãos de origem portuguesa se está a identificar como tal.
A comunidade numa frase: "Níveis de educação relativamente baixos aliados a um grau de sucesso económico relativamente alto".
Já não se distinguiam muito da população em geral no secundário: 75 por cento dos portugueses tinham esse nível de ensino ou mais contra 80 por cento dos americanos. A diferença era mais acentuada no superior: 19 por cento de portugueses, 24 por cento de americanos.
A evolução, avisa Maria da Glória Pires de Sá, "tem sido maior do que se supõe". Comparando 1970 com 2000, a percentagem de portugueses com o secundário triplicou entre homens e quadruplicou entre mulheres; entre os descendentes duplicou tanto para homens como para mulheres.
Se os portugueses não trouxeram uma cultura de escolaridade, as sociedades de acolhimento também não encorajaram: "Até há pouco, a maioria dos portugueses não tinha grande dificuldade em obter empregos relativamente bem remunerados nas fábricas de Nova Inglaterra ou nos ranchos da Califórnia".
Com o desaparecimento das fábricas procuram alternativas. Em 2000, o trabalho fabril já perdera supremacia. Só as portuguesas continuavam a privilegiar as fábricas. As luso-descendentes tinham "praticamente o mesmo perfil ocupacional das outras euro-americanas": trabalho de escritório. Entre homens dominavam os trabalhadores manuais qualificados como carpinteiros, mecânicos ou electricistas.
Rendimento médio superior
Apesar do défice escolar, os portugueses dos EUA ocupavam "uma posição económica relativamente privilegiada". As famílias portuguesas tinham um rendimento médio superior às famílias americanas (55.100 dólares versus 50.040) e viviam em casas mais caras (160.100 versus 119.600). A taxa de pobreza estava abaixo da média (oito por cento versus 12).
"Esta prosperidade relativa deve-se, em parte, ao facto de os portugueses continuarem a ser maioritariamente trabalhadores manuais e se encontrarem em sectores da economia relativamente bem remunerados, como é o caso das indústrias de manufactura e da construção civil", avalia.
Miguel Moniz, do Centro de Estudos de Antropologia Social do ISCTE, teoriza sobre a integração. "Define-se 'integração bem sucedida' pela quantidade de dinheiro que um migrante consegue ganhar? Quanto poder político é que ele tem?" Ao fazer centenas de entrevistas para um projecto que examinava a falta de progressão de carreira dos portugueses num dos maiores empregadores de Nova Inglaterra encontrou obstáculos, como a falta de conhecimento da língua, a falta de confiança nas suas próprias habilidades, a falta de apoio de quem faz a supervisão. Um outro factor para alguns não terem sido promovidos: "eles simplesmente não queriam aquele tipo de trabalho".
"Ouvi um grande número de trabalhadores que manifestava o seu contentamento por trabalhar num lugar onde não era preciso pensar no que se fazia; eram pagos; tinham responsabilidade mínima sobre a sua própria área; e não se preocupavam com o que os outros faziam", conta. No fim do dia, disse-lhe um trabalhador, só queria "ter energia para trabalhar no seu quintal e passar algum tempo com a família". Isso era o que lhe dava gozo.
"O sucesso na integração social é altamente variável", adverte. "O objectivo não é conseguir uma medida de realização, como se define na lógica cultural da América à qual chegaram, nem é reflectir as narrativas das realizações económicas e sociais dos migrantes, como são apresentadas em jornais e livros". O objectivo é construir o tipo de vida que desejam.

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