A relação especial entre o jesuíta português e o imperador da China

Talvez ninguém possa reclamar a amizade do "Filho do Céu". Mas o padre Tomás Pereira conseguiu a confiança de um dos imperadores mais notáveis da história chinesa

a Quem tivesse o privilégio de entrar na Cidade Proibida entre 1673 e 1708 poderia ver Tomás Pereira a confundir-se, nos trajes e na língua, com um chinês. Ele e outros padres jesuítas. Mas poucos, muito poucos, teriam o privilégio de se aproximar de Kangxi, um dos imperadores mais populares da história chinesa. O que fez Tomás Pereira para ser um deles?Há homens que têm a sorte de viver em períodos únicos, irrepetíveis. Como aquele em que a Europa descobre a China, e a China descobre a cultura europeia. E há homens que têm a sorte, e o engenho, de estar à altura da sua missão. O padre Tomás Pereira viveu mais de três décadas perto do imperador, e só a morte - celebram-se agora 300 anos, e a Fundação Oriente começa hoje um simpósio para o assinalar - os separou.
A história dos jesuítas na China "concentra-se em alguns gigantes", escreve Catherine Jami num artigo da colecção de textos History of Mathematical Sciences, Portugal and East Asia (Fevereiro 2008). "Mas apesar do facto de Portugal ser a nação mais bem representada entre os missionários, nenhum destes 'gigantes' era português". Nem sequer Tomás Pereira. "No entanto, a sua carreira na corte do imperador Kangxi (1662-1722) foi bastante espantosa".
Poderia ter calhado que Tomás Pereira fosse para o Sião - e seria esse até o destino mais provável - e poderia também ter acontecido que durante o período em que viveu em Pequim, a corte mudasse de mãos. "Por sorte, Tomás Pereira esteve 35 anos sob o mesmo imperador, que ainda por cima era um homem notável e até a 'dinastia' reinante [regime comunista] reconhece isso", comenta ao PÚBLICO Jorge Santos Alves, do Instituto de Estudos Orientais da Universidade Católica. "Era alguém com uma curiosidade infindável".
E para a aguçar, chamavam-se aqueles que possuíam características singulares. Aqui não foi uma questão de imponderáveis. Foi a música que fez Tomás Pereira ser chamado a Pequim quando estava ainda em Macau (antes passara por Goa, onde foi ordenado) pelo padre Ferdinand Verbiest, então Administrador do Calendário - um cargo importante na corte, que Pereira viria a desempenhar depois da sua morte.
Não se tratava de puro entretenimento. A música tinha um papel fundamental na comunicação entre os missionários e as autoridades chinesas. Pereira acabou por escrever o primeiro tratado em chinês sobre música europeia, e ensinava a arte aos filhos do imperador. E foi com a música que captou a atenção de Kangxi, a quem ensinou também álgebra e aritmética.
Homem do seu tempo
O padre jesuíta teve o privilégio de viver "o momento em que a Europa descobre a China e em que há um interesse do imperador face à Europa", continua Santos Alves. "Os jesuítas levavam o peso da tradição cultural e religiosa já desde os finais do século XVI, quando começaram por se estabelecer na China".
De resto, adianta, "a China nunca foi pouco curiosa relativamente ao exterior. Pensava-se que a história chinesa era de imobilismo e sino-centrismo. Mas o que a China faz é uma filtragem do que vem de fora para depois fazer um processo de sinização. Fez com o budismo, fez com o islão e faz com teorias políticas mais recentemente".
As missões não se limitavam à evangelização. Os membros da Companhia de Jesus entenderam, muito pragmaticamente, que "só se podiam manter na China se estivessem abertos a outras realidades que não só a religiosa: letras, artes, tecnologia... As gavetas do conhecimento nesta altura não estavam fechadas, e Tomás Pereira era do seu tempo; sendo jesuíta, se não sabia alguma coisa, estudava".
Assim se explica que o mesmo homem que ensinava matemática ao imperador, construía relógios, redigia tratados sobre budismo, concebia um órgão de proporções descomunais que mandou instalar numa igreja de Pequim, e um carrilhão que, dizia Verbiest, atraía as atenções dos populares "que ficavam sobretudo admirados com o prelúdio musical que precedia o bater das horas". E, escreve Catherine Jami: "Atraía certamente mais multidões do que qualquer calendário rigoroso ou tratado de geometria, chegando a camadas da população que não eram instruídas para entender as capacidades científicas dos jesuítas".
Um posto apetecível
As missões dos jesuítas eram duras, e a Ásia, por ser dos postos mais difíceis, era também dos mais ambicionados, pela quantidade de potenciais missionáveis.
Mas chegar lá não era para todos. "A primeira selecção era feita na viagem: muito poucos sobreviviam", diz António Vasconcelos de Saldanha, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Tomás Pereira nunca fez evangelização. Não era um homem do terreno. Concentrava-se a fazer pressão junto de mandarins que depois interviriam a favor dos jesuítas junto do imperador. "Sabiam a que portas bater para discutir pequenas coisas, pequenos gestos que constroem uma relação pessoal com o imperador, que era difícil de conseguir para um chinês, quanto mais para um ocidental", adianta Santos Alves.
"Conhece a corte, o que assegurava a protecção da missão nos vários pontos do império, não só de jesuítas, como de franciscanos e dominicanos", acrescenta Saldanha.
Uma figura referencial
"O imperador [Kangxi] é uma figura referencial", acrescenta Saldanha. "Um dos melhores imperadores do ponto de vista militar, de carácter. Unificou [a China], abriu ao exterior, inovou administrativamente, anulou inimigos externos. Quando se procura o que há de glorioso na China, o seu reinado é extremamente importante. E Tomás Pereira é fundamental para compreender o imperador".
Acompanhou-o algumas vezes em expedições. E teve um papel importante no tratado sino-russo de Nerchinsk, de delineamento de fronteiras: "O primeiro que a China celebrou num quadro moderno", explica o professor do ISCSP. "A China não negociava tratados porque isso supunha igualdade [entre as partes]. A própria ideia de fronteira não era fácil".
Tomás Pereira tem uma intervenção diplomática que não se limita à tradução do tratado, assinado a 22 de Agosto de 1689, mas faz uma interpretação "informada, de aconselhamento. Desmonta o discurso", acrescenta Santos Alves.
E esse era o papel que lhe convinha. Ainda que trabalhando para o imperador, Pereira defenderia a coroa portuguesa: num acto de invulgar deslealdade, não apresentou aos responsáveis russos a sugestão enviada por Verbiest, e defendida pelo próprio Kangxi, para a criação de uma rota de comércio terrestre entre a Europa e a China. "A abertura dessa rota teria significado para Portugal a perda definitiva do controlo da circulação dos jesuítas na Ásia", escreve Jami.
Em todo o caso, Pereira sai do tratado com um capital de confiança que acaba por pôr à prova. Estima-se que o imperador tenha agradecido a Pereira o seu papel no tratado de Nerchinsk assinando o "Édito da Tolerância", em 1692. "Foi o momento da afirmação do cristianismo na China, que foi seguido depois de grandes perseguições", adianta Saldanha.
"Não há dúvidas de que para os missionários, este Édito foi muito importante", diz por e-mail ao PÚBLICO Nicolas Standaert, da Universidade Católica de Lovaina (que participará no simpósio da Fundação Oriente). "Deram conta dele na Europa como sendo um édito da 'liberdade religiosa na China', como permitindo a 'propagação do cristianismo' e que todos os chineses se tornassem cristãos... Mas se olharmos para ele atentamente, revela que a única coisa que é permitida é que os chineses entrem numa igreja católica para 'oferecer incenso e sacrifícios' da mesma forma que fazem nos templos budistas, taoistas ou lama". Está será, ainda hoje, a atitude típica das autoridades face à religião: "A tentativa de controlar os templos".
E "pouco ficou" do Édito para os séculos seguintes.
A Europa a ver-se ao espelho
Num período que é de "grande reforço do poder imperial - os manchus eram considerados estrangeiros, uma dinastia bárbara", diz Santos Alves - há também um fascinante jogo a desenrolar-se na Ásia, envolvendo Portugal, França e o Papa.
Paris começa a enviar jesuítas franceses "que são a correia de transmissão dos seus interesses na Ásia"; por seu lado, o Padroado português, não querendo perder o monopólio, dá instruções para o boicote das missões francesas de reordenamento no continente. "É um prolongamento da história da Europa para a Ásia", comenta Santos Alves. "É a Europa a ver-se ao espelho, diria um professor".
Por outro lado, a crise gerada pelo enviado do Papa a Pequim Charles Maillard de Tournon acabou por pôr em cheque o "Édito da Tolerância" e teve resultados desastrosos para os jesuítas na China. A morte de Verbiest deixara Tomás Pereira encarregue da missão. E por conseguinte, de fazer frente à embaixada.
"Tomás Pereira dizia que os ritos chineses eram para respeitar, era um problema que já estava resolvido. O cardeal Trounon vem pôr em causa tudo isto", continua o professor da Católica. A ideia era acabar com a autonomia jesuíta.
"Quando os imperadores sentem que pode haver uma ameaça ao controlo social - que sempre foi a matriz do poder chinês - e que os padres podem escapar ao controlo do Estado, eles são obliterados".
Há quem diga que o jesuíta português soube bem manobrar a relação com o imperador para o ter do seu lado; mas também se escreve que Tomás Pereira acabou por não resistir à crise e acabou por morrer em Pequim pouco depois, sem nunca ter regressado a casa. Há 300 anos.

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