Há 40 anos, aquando da doença de Salazar

O senhor cardeal deveria entrar pela traseira do edifício e era aí que nos iríamos postar para o receber

Corria o Verão de 1968. Tinham já passado mais de 40 anos sobre a data em que Salazar tomara as rédeas do poder, que viria a ser exercido sob a égide de um regime de rigor e autoritário, única maneira, nessa época, de fazer sair Portugal da calamitosa situação económica e financeira em que se encontrava. E, mais uma vez, como era habitual, Salazar se transferira dos seus aposentos do Palácio de S. Bento para os do Forte de Santo António do Estoril, que escolhera para residência estival, pagando, do seu próprio bolso, os custos da estadia.Chegado aí a 27 de Julho, começou, ao fim de um mês, a sentir incomodativas cefaleias que, tornando-se nos dias seguintes cada vez mais frequentes e intensas, motivaram a chamada ao Forte do seu médico assistente, Eduardo Coelho, que, tendo-o examinado a 4 de Setembro e perante a sintomatologia neurológica manifestada, solicitou a comparência do neurocirurgião Vasconcelos Marques, tanto mais que havia a informação de uma alegada queda, de uma cadeira de lona, sofrida por Salazar em 3 de Agosto, que, curiosamente, ainda hoje há quem conteste, admitindo não ter passado de uma encenação política, para imputar a esse eventual acidente traumático a causa da enfermidade do ditador, poupando-o assim ao estigma de doença natural, com que ficaria obviamente mais fragilizado perante a opinião pública.
Seja como for, a verdade é que, depois da conferência médica entre aqueles dois clínicos, se optou pelo seu internamento urgente no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, em Lisboa, que viria a ter lugar cerca da meia-noite de sexta-feira, 6 de Setembro, após passagem do doente pelos Hospitais de Santo António dos Capuchos e de S. José, para a feitura de exames complementares, não factíveis naquele.
Com o diagnóstico de hematoma subdural, Salazar foi nessa mesma noite submetido a uma intervenção cirúrgica, executada pelos neurocirurgiões Vasconcelos Marques, Álvaro de Ataíde e Lucas dos Santos, com um pós-operatório relativamente pacífico.
A partir desse dia e logo que a notícia foi difundida por todo o país, começaram a afluir ao Hospital da Cruz Vermelha muitas personalidades, incluindo o presidente da República, almirante Américo Tomás, que aí permanecera durante a noite da operação. Todavia, o cardeal Cerejeira, grande amigo de Salazar e velho companheiro dos tempos estudantis de Coimbra, só passados dez dias iria visitá-lo, tendo sido destinada para tal a tarde de segunda-feira, 16 de Setembro.
Ora acontece que, fazendo eu então parte do quadro de médicos residentes substitutos daquele hospital, competia-me, nesse mês de Setembro, cumprir o respectivo serviço semanal, de 24 horas ininterruptas, com início às 13h30m de cada segunda-feira. Assim, para lá me dirigi nesse dia, à hora devida, tendo tido conhecimento, pouco tempo após a minha chegada, de que Salazar acabara de ser acometido de grave acidente vascular cerebral, que o tinha prostrado em coma e que haveria de o incapacitar para o resto da vida. E estava eu no meu quarto de médico residente quando, a meio da tarde, sou abordado pelo director clínico Lopes da Costa, indagando-me se eu estaria disposto a acompanhá-lo na recepção ao cardeal Cerejeira que, um pouco mais tarde, viria visitar Salazar. Como o senhor cardeal deveria entrar pela traseira do edifício, para não dar muito nas vistas, era aí que nos iríamos postar para o receber. E assim foi. À hora aprazada, lá apareceu Sua Eminência, tendo sido recebido por nós com cordiais apertos de mão e sorrisos de circunstância, não sem deixar transparecer compreensível preocupação pela desdita do seu dilecto amigo. Cumprida a missão, regressei ao meu quarto. E qual não foi o meu espanto quando, passados escassíssimos minutos, voltei a ser interpelado pelo director clínico, para me informar de que teríamos de repetir a cena da recepção ao senhor cardeal, já que a RTP, que o esperava na porta principal, não tinha podido captar o acontecimento, dado o ilustre prelado ter entrado pelas traseiras. E assim, depois de ter saído para a rua pela porta da retaguarda e de ter dado meia volta ao edifício, lá surgiu novamente a simpática figura de Sua Eminência para, desta vez, entrar pela porta principal, onde, aparentemente muito compenetrados, o director clínico e eu o recebemos novamente, com sorrisos de conjuntura e efusivos apertos de mão, sob o fogo indiscreto dos holofotes e câmaras de televisão da nossa RTP. Só que eu, não resistindo a tal farsa, não me contive e, ao apertar a mão ao senhor cardeal pela segunda vez em poucos minutos, disparei assim: "Como passou, senhor cardeal, desde há bocado?" Cerejeira, que era um homem de subtil inteligência, limitou-se a esboçar um leve e significativo sorriso, enquanto eu, algo constrangido, pensava para comigo: Afinal também colaborei no espectáculo... Almirante médico

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