Arqueólogos voltam a escavar na villa romana de Santo André de Almoçageme

Enquanto os técnicos desenterram o que resta da villa, um projecto de musealização poderá levar à reconstrução de parte das ruínas na ponta mais ocidental do império romano

a Parece um puzzle para gente crescida. Os pequenos cubos cerâmicos vão sendo limpos com paciência. As tesselas, como se chamam as pedrinhas de várias cores, são depois colocadas nos espaços vazios do mosaico, que os técnicos do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas (MASMO) estão a redescobrir na villa romana de Santo André de Almoçageme.A villa romana de Santo André está classificada de interesse público. As ruínas à beira da estrada que liga Almoçageme ao Rodízio (Praia Grande) foram descobertas em 1905. A importância dos vestígios foi desde logo evidente, mas só em 1985, quando o proprietário do terreno pretendia construir uma moradia, o espaço foi intervencionado de forma exaustiva.
O relatório dos trabalhos, no arquivo do Instituto Português de Arqueologia, identificou então "vestígios de uma villa romana tardia, talvez de proporções monumentais (villa aulica)". A campanha no ano seguinte confirmou tratar-se de "uma villa do Baixo-Império", ou anterior, mas reformulada naquela época. Em 1987 foi detectado um forno de tijolo e telha, assim como fragmentos em terra sigillata que apontam para o funcionamento em pleno na primeira metade do século IV.
Nas escavações que se seguiram foram postos a descoberto mosaicos policromos e dois tanques construídos em argamassa (opus signinum). O facto de o terreno ser privado levou a autarquia a selar a estação, enquanto decorria a compra do terreno. O município tomou posse e, década e meia depois, os arqueólogos voltaram a escavar em Santo André.

Estancar degradaçãoOs trabalhos, retomados em meados de 2007, sob a orientação dos arqueólogos Pedro Mendes e Alexandre Gonçalves, consistiram para já em colocar à vista os vestígios conhecidos. "Estamos ao nível do derrube das coberturas, que deve corresponder à fase de abandono da villa. Vamos tentar compreender o tipo de ocupação e perceber quais são as reutilizações ou reocupações através dos vestígios existentes", explica Pedro Mendes, que aponta para uma ocupação entre finais do século II e o V. Isto apesar de não se excluir que o abandono tenha ocorrido posteriormente.
As escavações desenvolvem-se a partir do peristilo (pátio interior a céu aberto). Esta área faz parte da zona urbana, ou senhorial, onde se situam os espaços mais nobres da villa. Uma parte de um tanque em argamassa acaba no muro da propriedade. A estrada passa-lhe por cima. Do outro lado, num terreno também na posse do município, estará a área rústica, que corresponde à zona agrícola.
No meio de algumas divisões sobram cotos de árvores. Serão retirados à medida que os trabalhos avacem. "Queremos saber as técnicas de construção", nota Pedro Mendes, acerca da minúcia colocada na intervenção sobre os despojos detectados em cada divisão. Enquanto os muros das salas são delimitados, José António Gonçalves e Vanessa Rodrigues, do gabinete de restauro do MASMO, levam a cabo uma tarefa não menos paciente: limpar, reconstituir e consolidar os mosaicos descobertos.
"Nesta fase estamos nos cuidados de primeiros socorros", esclarece José António Gonçalves. Os pavimentos "sofreram com estes 20 anos de intervenções", e apesar do cuidado técnico com que foram cobertos a tela e a areia para os proteger, isso não impediu que raízes de plantas tenham tricotado "uma rede entre as tesselas". Em torno do peristilo faltam muitas delas, mas algumas poderão estar no Museu Nacional de Arqueologia. Para já, nos primeiros dos seis mosaicos conhecidos - dois estão completos - trabalha-se para "saber o que existe e para estancar a degradação", nota António Gonçalves.
Os vários "tapetes" em pedra estão decorados com motivos geométricos, flores estilizadas e entrançados, mas, para que possam ser apreciados pelo público, será necessário muito trabalho. Até o puzzle estar completo.
a A reconstituição virtual de uma villa romana é viável graças ao avanço tecnológico, mas em Almoçageme os arqueólogos pretendem ir mais longe e recriar arquitectonicamente parte dos edifícios. Esse é o sonho do director do MASMO, Cardim Ribeiro, que salienta: "É um projecto de interesse público", que vai permitir escavar "em continuidade e de forma integral", sem interrupções, a estação arqueológica.
Como o terreno é camarário, será possível, a par da escavação, restaurar os pavimentos de mosaicos descobertos e ficar a saber como é que se articulava no território "a villa romana mais a ocidente do império" e a relação com o antigo santuário do Sol e da Lua (séc. II-III), que se presume ter existido nas proximidades, tanto mais que se encontrou uma pequena estátua de Júlia Domna, mulher do imperador Séptimo Severo.
Mas o projecto está longe de se esgotar na componente académica e visa "a experiência inovadora de tentar erguer alguns volumes arquitectónicos" sobre os restos de paredes, na volumetria original e utilizando materiais da época, de modo a que os visitantes possam passear entre os vestígios. "Para que o público possa sentir o ambiente e a dimensão de uma parte da villa". Se tudo correr bem, haverá visitas dentro de seis anos. L.F.S.

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