Será a actual crise financeira o fim da economia de mercado livre como a conhecemos?

Já só o Estado pode salvar Wall Street do colapso. O sistema capitalista está a sair abalado
da maior crise financeira desde a Grande Depressão. Será que vai voltar a ser o que era?

a "Isto é socialismo financeiro, isto não é americano." A frase é do senador republicano do Kentucky no debate desta semana sobre o plano de ajuda pública de 700 mil milhões de dólares proposto pela Administração Bush e mostra o receio que se começa a instalar em alguns sectores da sociedade americana de que a onda de intervencionismo estatal das últimas semanas venha a pôr em causa o modelo liberal de funcionamento da maior economia do planeta.Será que o sistema de mercado livre está ameaçado? É certo que esta não é a primeira crise financeira no mundo, mas a necessidade de injecção de milhares de milhões de dólares de fundos públicos no sector privado e a nacionalização de alguns dos principais intervenientes do sector financeiro, precisamente no país que é o símbolo do liberalismo económico, são a prova de que este capitalismo não funciona? Como seria de esperar, as opiniões dividem-se, mas a verdade é que nunca, desde a Grande Depressão dos anos 30, tinham estas questões sido tantas vezes colocadas.
Ainda assim, em Portugal, os defensores das virtudes do mercado livre, não desanimam. António Borges, economista e vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), diz ter "esperança que a questão central, que é a forma como o mercado de capitais ajuda os investidores a financiar e a controlar as empresas, não seja alterada". E o economista João César das Neves recusa que o sistema económico de mercado livre esteja a ser colocado em causa, "tal como os tufões na costa americana não põem em causa o povoamento dessas regiões". Para este economista, as crises financeiros não são o fracasso do sistema, pelo contrário, elas são normais no sistema", e dá um exemplo: "Há 300 anos a invenção da banca criou uma crise muito maior do que a actual. Depois, aprendendo a lidar com ele, o banco tornou-se um elemento central da nossa vida".
Há quem não esteja tão convencido de todas estas virtudes. Octávio Teixeira, economista e ex-deputado do PCP, não tem dúvidas que "é o sistema liberal que está claramente posto em causa". "Estamos a passar de uma questão ideológica para dados concretos. É evidente que se as regras do jogo não forem mudadas, o sistema continuará a funcionar da mesma maneira e a criar os mesmos problemas", afirma.
O empresário Filipe Botton, presidente da Logoplaste, está entre os mais cautelosos. "É cedo para percebermos o que está a acontecer, mas de facto algo está a mudar, pois estamos a viver a criação de novos paradigmas", defende.

Mais regulação, menos alavancagem
Independentemente do resultado final desta discussão ideológica, que não ficará tão cedo resolvida, existe agora uma certeza praticamente generalizada para o curto prazo: alguma coisa, dentro do capitalismo, terá de mudar. Os discursos políticos em todos os pontos do globo demonstram-no e a pressão da opinião pública no sentido de uma alteração de regras, seja ela qual for, é cada vez maior, mesmo num país como os EUA em que a simples regulação estatal nunca foi muito popular.
Agora, numa sondagem feita esta semana pela agência Bloomberg e pelo jornal "Los Angeles Times" nos Estados Unidos, mais de 60 por cento dos inquiridos defendeu que a falta de regulação é em parte responsável pela crise financeira. E é por isso que, a pouco mais de um mês das eleições presidenciais, os dois principais candidatos - Barack Obama e John McCain - incluem no seu discurso, embora em doses diferentes, a ideia de um maior papel do Estado na Economia.
Na Europa, onde os mercados já são mais regulados do que nos EUA, os dirigentes estão a aproveitar para acenarem publicamente com esta vantagem, tantas vezes no passado apresentada como uma desvantagem. Isso não quer dizer, contudo, que também não se vejam forçados a introduzir ainda mais mudanças.
Ângela Merkel tem defendido que esta crise é provocada pelas falhas de regulação nos Estados Unidos e Nicolas Sarkozy está a propor a realização de uma cimeira que discuta a reconstrução de um "capitalismo regulado". Em Portugal, José Sócrates mostrou-se muito crítico em relação ao que chamou de "jogo da bolsa".
A introdução de uma maior regulação deverá, neste cenário, ser a tendência dos próximos tempos. "Estamos a caminhar para um mundo muito mais regulado", afirma Filipe Botton, que diz ter existido alguma distracção por parte dos reguladores em termos internacionais, "uma falta de atenção que estamos agora a pagar de forma muito cara", afirma Filipe Botton.
O economista António Nogueira Leite assinala também a mudança que terá de existir na forma como o sector financeiro faz os seus investimentos e o tipo de retornos que espera em troca.
"Existe um conjunto de coisas que têm corrido mal nos vários mercados e, para o futuro, sabemos que o tipo de alavancagem das empresas que existiu na última década, não é repetível", explica António Nogueira Leite.
A mesma ideia é defendida por Leonardo Mathias, director-geral da Schroders em Portugal e Espanha, quando antevê o futuro da banca de investimento, o sector cujas práticas mais fortemente têm sido colocadas em causa. "O tempo da excessiva alavancagem acabou, mas a indústria de 'per se' não vai acabar porque acrescenta valor a quem necessita de capital e a quem o aloca", afirma.
Quem tem dúvidas sobre a necessidade de mudanças é João César das Neves, professor da Universidade Católica. "Serão necessários regulamentos para os novos produtos, mas pouco mais. É possível que alguns reguladores mais zelosos imponham restrições exageradas, que terão custos elevados e que serão retiradas mais cedo ou mais tarde", defende.
A verdade é que estes movimentos de introdução de maior regulação e de redução da alavancagem até já começaram. E por iniciativa das próprias entidades até aqui praticamente "desreguladas". Os bancos de investimento Morgan Stanley e Goldman Sachs não tiveram outra alternativa que não fosse requerer à Reserva Federal norte-americana que os passasse a classificar no ramo da banca comercial. Fizeram-no porque aí podem passar a apostar na captação de depósitos, conseguindo um financiamento mais seguro, e porque já não encontravam no mercado investidores e clientes que acreditassem no seu antigo modelo arriscado de negócio. O problema, para os dois bancos, é que vão passar a ser regulados pelo banco central e terão rácios de capital muito mais exigentes, que lhes limitarão os lucros obtidos.
De igual modo, o "short-selling", uma das práticas que permitia que, com pouco capital, se assumissem posições no mercado muito arriscadas, mas potencialmente lucrativas, está a ser limitada um pouco por todo o mundo. Com mais regulação e menos alavancagem, os tempos dos grandes negócios e dos salários milionários para os gestores em Wall Street e noutras praças financeiras internacionais poderá já ter acabado. Este é, para já, o preço a pagar pelos excessos que conduziram à crise.

a É certo que Portugal não está no centro do furacão. É também verdade que hoje, ao contrário do que acontecia no passado, em clima de forte expansão económica, a dimensão reduzida e a distância face aos grandes centros financeiros, já não é apontada aos bancos portugueses como uma fraqueza, mas sim como um ponto a seu favor. Mas quando a crise atinge o coração do sistema ninguém está a salvo.
Depois da falência do Lehman Brothers, da "nacionalização" do maior grupo segurador do mundo, a AIG, da absorção da Merryl Lynch pelo Bank of América, acontecimentos que levaram as bolsas a atingir mínimos históricos, os investidores rejubilaram com o anúncio de que a Casa Branca estava disposta a injectar no sistema 700 mil milhões de euros e de que seria posto em marcha um mega-plano de salvação. Mas a velocidade com que se formou uma onda de satisfação que levou os mercados a registar subidas superiores a 25 por cento foi a mesma com que se desvaneceu perante os receios de que o plano Bush possa sofrer alterações ou mesmo não sair do papel.
Assim, e depois de, nos últimos anos, os investidores terem sido bombardeados com a necessidade de aumentar a rentabilidade, o mercado, agora, apenas exige uma coisa: segurança.

Banqueiros em silêncioÉ neste compasso de espera que se explica que nos últimos dias os responsáveis bancários portugueses tenham preferido o silêncio.
Sem força para influir na evolução dos acontecimentos, olham para o terramoto que se abateu sobre a finança internacional com redobradas preocupações sem deixar de assegurar que não temem pela sustentabilidade dos grupos que lideram. Até porque o sector é dominado por instituições universais (captam depósitos, dão crédito e fazem banca de investimento) e de expressão reduzida à escala mundial. São ainda periféricas, o que as torna menos expostas aos centros financeiros. E têm em curso internacionalizações ainda incipientes (BCP, BES, BPI) e voltadas para países pouco sofisticados, como a Polónia, Grécia, Roménia, Angola ou Moçambique. Num país pouco capitalizado, vão ao exterior endividar-se para dar crédito (mais de 70 por cento destinou-se a financiar a compra de casa pelos particulares) e não para investir nos mercados financeiros.

Impactos indirectosMas há impactos negativos a que os bancos portugueses não podem escapar. A começar no facto de a crise aumentar as suspeitas sobre um sector cuja base de funcionamento é a confiança (o cliente entrega dinheiro ao banco, que constitui reservas equivalentes a oito por cento do valor recebido, indo aplicar no mercado a parcela restante, o que permite à instituição expandir-se).
Por outro lado, vão ser penalizados porque os investidores institucionais, em momentos de turbulência, começam por largar os activos de menor dimensão. E vão sofrer o choque das falências de bancos/seguradoras que são um novelo de interligações que se propagam por todo o mundo. A título de exemplo: dados indicam que o Citi Bank possui em carteira (de clientes e da própria instituição) entre 250 e 280 mil milhões de dólares de obrigações do falido Lehamn Brothers. E o passivo da AIG é de um trilião de dólares, ou seja seis vezes mais do que o PIB português. A banca em geral detém activos da seguradora.
Mas há mais factores de propagação da crise. Desde logo a retracção do crédito concedido em resultado da subida das taxas de juro. E o país tenderá a apresentar menores níveis de crescimento.
Neste cenário, a solução não é milagrosa, mas é a que tem vindo a ser utilizada: aumentos de capital (todos os bancos portugueses já o fizeram), venda de activos, boa gestão no controlo dos custos e dos riscos e recurso às cedências de liquidez extraordinárias do Banco Central Europeu.
Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal, e Fernando Nogueira, líder do Instituto de Seguros de Portugal (ISP), já garantiram que a exposição da banca e dos seguros a estas megas instituições em dificuldades não é significativa. Mas os efeitos indirectos da crise vão ser sentidos por todos.
Se não se alimentarem comportamentos irracionais que arrastem consigo todo o sistema, os banqueiros nacionais dão sinais de que podem atravessar a tempestade sem grandes percalços. Durante as crises associadas já este ano ao Banco Português de Negócio (BPN) e ao Banco Comercial Português (BCP) o mercado revelou, aparentemente, confiança no sistema e nas autoridades de supervisão (BdP e CMVM).
Assim, e se a turbulência financeira internacional não afectar os depositantes, e apenas os detentores dos activos que se desvalorizam, pode-se dizer que são os ricos é que estão a pagar a crise.
Filipe de Botton

Privatizar os lucros, mas socializar os prejuízos: esta tem sido a regra, em quase todo o mundo, quando se assiste a ciclos de expansão rápida do sistema financeiro, seguidos de quebras abruptas e perdas quase incontroláveis. Um estudo publicado este mês pelo Fundo Monetário Internacional revela que, em média, nas mais de cem crises bancárias detectadas durante as últimas três décadas, o custo suportado pelos contribuintes para estabilizar e evitar as falências, foi de 13,3 por cento do PIB dos respectivos países. E em algumas economias, o valor atingido chegou mesmo a superar os 50 por cento.
Se o cenário de um colapso do sistema bancário constitui um problema grave para todos os cidadãos - o que motiva os Governos a intervir -, o que é certo é que uma subida drástica na dívida pública também tem custos elevados para a população. A dívida mais tarde ou mais cedo tem de ser paga e a capacidade futura para colocar em prática as políticas públicas sem aumentar impostos fica seriamente ameaçada.
É isso que, tudo indica, poderá acontecer na actual crise financeira. As autoridades, principalmente as norte-americanas, estão já a intervir em força, com o dinheiro dos contribuintes, para evitar males maiores no sistema financeiro. Injecção de fundos no mercado, empréstimo à AIG com o capital da seguradora como garantia e, agora, a possibilidade de compra dos títulos relacionados com o "subprime" são algumas das medidas tomadas.
Só nesta última operação, os contribuintes norte-americanos podem vir a colocar em risco 700 mil milhões de dólares. Mas o custo final para os cofres públicos - se o plano se mantiver como foi proposto pelo Governo Federal - apenas ficará definido quando se souber quanto é que o Tesouro norte-americano vai pagar pelos títulos e quanto é que, mais tarde, conseguirá obter por eles.
A simples tarefa de contabilizar o valor dos títulos é muito complexa. Durante um ano de crise, o próprio mercado não o conseguiu fazer. Por isso, os riscos para os contribuintes são muito elevados e muitos economistas defendem que o Tesouro norte-americano, ao estilo do que aconteceu na Suécia em 1991, devia ficar com parte do capital das empresas beneficiadas, uma forma de obter um maior retorno no futuro.

a José Maria Ricciardi, em declarações prestadas por escrito ao PÚBLICO, diz não acreditar que a passagem da Morgan Stanley e da Goldman Sachs a bancos comerciais seja o fim da banca de investimento.
Foram os bancos de investimento que desencadearam a actual crise financeira internacional?
Não. Não é verdade que o problema esteja apenas na banca de investimento, pois houve muitos conglomerados financeiros, como a UBS, o Citi, o Barclays e a Societé Generale, e que revelaram problemas com o subprime. De resto, as questões relacionadas com a banca de investimento estão centradas nos Estados Unidos da América (EUA), porque estas instituições não estavam controladas pela Reserva Federal norte-americana (Fed), algo que não acontece na Europa. Em Portugal a banca de investimento é supervisionada pelo Banco de Portugal.
Como explica o que se passou na banca de investimento dos EUA?
Houve uma perversão do que é deve ser a banca de investimento, que foi feita para prestar serviços tecnicamente mais evoluídos e sofisticados (M&A, IPO, Project Finance) aos clientes/empresas, serviços esses que a banca de retalho não tinha condições de oferecer. No entanto, nos EUA a banca de investimento voltou-se para outras áreas, actuando como se fosse um hedge fund e especulando com o próprio balanço, o que passou a ser, em muitos casos, a sua actividade principal. Muitos bancos de investimento nos EUA estavam excessivamente alavancados (com muita dívida), face ao capital que tinham e não podiam captar depósitos. Por outro lado, o seu negócio principal era especular com o seu próprio balanço. Ou seja: deixaram de ser intermediários e prestadores de serviços a clientes, para serem especuladores de produtos de alto risco, hoje designados de tóxicos.
Enquanto defensor do livre funcionamento do mercado, como vê a intervenção do Estado norte-americano na seguradora AIG?
As autoridades norte-americanas ao intervirem estão a segurar os alicerces da economia, na medida em que estão a segurar a dívida dos bancos e não os seus accionistas que ficaram sem nada. E fizeram-no para evitar um efeito dominó.
A decisão da Goldman Sachs e da Morgan Stanley de passarem a aceitar depósitos é um sinal de que a banca de investimento tem os dias contados?
Não. É apenas um sinal de que a banca de investimento vai passar a funcionar integrada em grupos financeiros onde existe a possibilidade de captar depósitos, como é o nosso caso, o Banco Espírito Santo Investimento é detido a 100 por cento pelo BES.
Está de acordo com a proibição
do short selling?
Estes bancos de investimento como não tem depósitos financiam-se através do mercado de capitais. O que acontece é que cada vez que as suas acções caem de uma forma abrupta começam a ter dificuldades de financiamento no mercado, porque as outras instituições desconfiam da qualidade dos seus activos. Ora não tenho qualquer dúvida que o short selling, que foi permitido demasiado tempo pelas autoridades americanas, teve uma influência importante na queda das acções da Goldman Sachs e da Morgan Stanley, e cujos activos não parecem ter problemas de saúde como tinham a Lehman Brothers. O preço das acções deve cair porque uma empresa não está bem de saúde, e não em consequência de movimentos especulativos. C.F.

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