Torne-se perito

O dia em que o arqueólogo abraçou o homem lagarto

Há 20 anos que Amílcar Guerra e Carlos Fabião, uma equipa de arqueólogos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, se dedicam a escavações no sítio arqueológico de Mesas do Castelinho, Almodôvar. Até que no dia 5 deste mês encontraram o maior tesouro. Uma estela funerária que está a entusiasmar os investigadores da escrita do Sudoeste. Foi como abraçar o homem lagarto. Texto de Ana Machado e Fotos de António Carrapato

a Reza a lenda: uma senhora vivia isolada num casebre do Monte do Castelinho quando, a meio da noite, recebeu a visita de uma mulher, que se dizia vizinha e que lhe pediu lume. Como vizinhos era coisa que nunca tinha tido, a mulher ficou intrigada e perguntou de onde vinha afinal aquela mulher misteriosa. A visitante respondeu que vivia ali ao lado, mas debaixo da terra, acompanhada de um homem lagarto disposto a dar sorte, ou até um tesouro, a quem se dispusesse a abraçá-lo. Amílcar Guerra, arqueólogo da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e especialista em epigrafia, chegou ao sítio de Mesas do Castelinho em 1988. Era preciso salvar um povoado romano, datado do século II a I a.C., da fúria do proprietário do terreno que tinha decidido, em 1986, avançar com uma bulldozer para destruir as edificações que ali estavam escondidas.
Corria na aldeia de Santa-Clara-a-Nova, ao lado de Almodôvar, que ali vivia gente debaixo do chão, imagem construída devido ao facto de as ruínas de povoados romanos aparecerem abaixo do nível do chão. Vivia ali gente como a mulher da lenda que vivia acompanhada do homem lagarto, acreditava o povo.
Foi preciso correrem 20 anos de escavações arqueológicas para que Amílcar Guerra sentisse o significado desse abraço do homem lagarto. O tesouro chegou-lhe no dia 5 de Setembro, quando encontraram ali, numa das ruas romanas do povoado arqueológico, uma estela funerária, depositada à sua espera estes anos todos, com uma das inscrições mais completas e bem conservadas da chamada escrita do Sudoeste.
"É maravilhosa!", soltou José Antonio Correa, catedrático de filologia latina da Universidade de Sevilha, um dos maiores especialistas em escrita do Sudoeste (a par com o alemão Jürgen Untermann), quando, na quarta-feira, se levantou o pano negro que cobria a nova estela funerária encontrada no sítio de Mesas do Castelinho. "Não vou dizer que é a melhor", disse o especialista em conversa com o P2, na apresentação que decorreu no Museu da Escrita do Sudoeste, criado pela Câmara Municipal de Almodôvar em Outubro do ano passado.
José Antonio Correa iguala a importância desta nova estela à de Bensafrim, descoberta em 1882 em Lagos e que está no Museu da Figueira da Foz. "Mas pela conservação e pelo conteúdo representa um contributo importante para o conhecimento desta escrita", diz o investigador espanhol, que, apesar de estudar há 30 anos o tema, se entrega ao entusiasmo de cada pequeno pormenor. "Aparece aqui um signo que nunca se tinha visto", acrescenta, apontando para um dos caracteres expressos na pedra.
"Eram inscrições de necrópoles de gente muito importante", diz Amílcar Guerra sobre estas estelas que, segundo os historiadores, serviam para assinalar as sepulturas dos tartéssicos, um reino mítico do Sudoeste da Península Ibérica cuja fama de riqueza e de conhecimento de escrita foi registada por autores gregos e latinos.
Ao todo existirão cerca de 90 estelas funerárias com inscrições em escrita do Sudoeste, quase todas em Portugal, sendo a zona serrana algarvia e a fronteira com o Baixo Alentejo, como Castro Verde e Almodôvar, a que mais achados tem fornecido.
Uma das mais importantes até hoje encontradas, e que muito tem contribuído para o pouco que a ciência conseguiu descodificar da escrita do Sudoeste, vem precisamente de Castro Verde. Chama-se estela de Espanca (ganhou também o nome do lugar onde foi encontrada) e representa não uma inscrição funerária, mas um signário, uma espécie de abecedário onde constam todos os signos que compõem esta enigmática escrita do Sudoeste. Está no Museu de Lucerna, em Castro Verde. "Mas só pode ser vista a pedido. Não está exposta", diz Amílcar Guerra.
Uma "semi-Roseta"
O facto de esta nova estela, de Mesas do Castelinho, ter sido encontrada numa ruína romana datada entre o século III e I a.C. pode trazer alguma confusão. "Esta estela aparece no local errado, numa rua de um povoado do período romano. Não corresponde à cronologia de outros achados", diz Amílcar Guerra. "Mas o contexto cronológico conhecido não se altera apesar disso."
Ou seja: as estelas datam do século VIII a V a.C., têm por isso 2500 a 2800 anos, e representam uma forma de escrita com influência das mais antigas escritas como a fenícia e grega. "São lápides normalmente reutilizadas. A datação não coincide com a sua utilização. Não temos um contexto cronológico associado. Mas há uma identificação de natureza histórico-cultural, referente ao impacto fenício na Península Ibérica", diz Amílcar Guerra sobre os povos que chegaram à Península Ibérica a partir do século VIII a. C. e que introduziram no território a primeira forma de escrita.
"Não é das estelas de maior dimensão. Mas está muito bem conservada e os caracteres, cerca de 90, representam dois terços da peça", avança sobre este novo achado, enquanto explica a orientação da escrita da direita para a esquerda (sinistorsa), tal como a árabe. E que corre em forma de espiral ao longo da pedra. As palavras não são separadas, o que representa um dos maiores quebra-cabeças para a sua decifração.
"Não será com esta epígrafe que se encontra a solução ou interpretação dos textos em si. Mas conseguimos identificar os caracteres, a sua fonética e alguma gramática. O problema continua a residir no significado das expressões. Mas nem tudo está perdido. Esta estela dá azo a que daqui a algum tempo possamos ter uma ideia melhor destes fenómenos de natureza epigráfica e cultural. É uma semi-Roseta."
A equipa de investigadores da qual faz parte Amílcar Guerra acredita já ter conseguido identificar até nomes de pessoas. E há uma expressão frequente nestas estelas: "Barenarquenti" - que pode significar "Aqui jaz", ou "Aqui está sepultado".
Amílcar Guerra realça ainda o valor que o achado tem em termos de estímulo para quem se dedica ao sítio de Mesas do Castelinho há 20 anos: "É muito mais do que um simples achado novo. É um estímulo para 20 anos de trabalho com grandes dificuldades e problemas muito sérios. Trata-se de uma realidade quase desconhecida do público, que se concentra nos manuais dos investigadores e que, sendo uma realidade histórica de carácter regional, extravasa esse âmbito. Deveria ser conhecida por qualquer homem culto, mas infelizmente só interessa a especialistas."
Não é terra de arqueólogos
"Já viste a pedra que acharam nos Castelinhos?" A conversa sobre a estela de Mesas do Castelinho surge entre duas senhoras sentadas no Café Palma, em Santa-Clara-a-Nova, quando chegam os jornalistas e perguntam a direcção para a estação arqueológica.
Dário Ferreira é um filho de Santa-Clara-a-Nova. É dono do café. É presidente da Assembleia da Junta de Freguesia. É treinador de futebol do clube local e ensaia o rancho da terra. "Há três anos que não ia aos Castelinhos." Só este ano lá voltou, porque houve festa no âmbito dos 20 anos da estação arqueológica. E foi na quarta-feira pela primeira vez ao Museu da Escrita do Sudoeste, que abriu há um ano. "Aqui não há arqueólogos. Os moços acabam a escola e fazem-se ao trabalho. Agora então com a abertura das minas ainda pior", diz referindo-se ao complexo mineiro de Neves Corvo. "Eu também sou sondador de profissão", acrescenta às suas múltiplas funções.
"Aqui não vai ninguém para a universidade", diz sobre a aldeia, de cerca de 700 habitantes. Mas acredita que o interesse das pessoas, mesmo as da terra, podia ser outro, se na estação arqueológica fosse construído um centro de interpretação há muito prometido. A autarquia até comprou o terreno. E havia fundos comunitários, conta Dário Ferreira. Mas falhou a contrapartida orçamental do Estado. E o projecto acabou por não ir para a frente.
"Eu vejo aqui passar vários carros. E sei que vão para lá", aponta Dário Ferreira, em direcção ao fundo da aldeia, para a estação arqueológica. "Mas não há nada para ver. Chegam lá e não há nada. Até parece um monte abandonado."
E na terra também pouca gente se aventura até aos Castelinhos. São menos de mil metros. Mas talvez o abraço do homem lagarto, que brindou a equipa de arqueólogos, as assuste.

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