Torne-se perito

Em democracia, a ética não se confunde com a lei

Num livro que chega sexta-feira às livrarias, o ex-líder do PSD contraria a ideia de que tudo o que não é proibido por lei é permitido a um político. "A ética está para além da lei", escreve. E acrescenta que, se governar exige lidar com o poder económico, a promiscuidade é intolerável

a Sem respeito por valores éticos, os cidadãos descrêem da política e os políticos perdem prestígio e credibilidade. É algo que não é mensurável mas que se ouve, se sente e se percebe. Vê-se menos em tempo de euforia económica e sente-se mais em períodos de crise. Mas é sempre uma marca penalizadora. A verdade é que respeitar exigências éticas é, em qualquer momento ou circunstância, indissociável de uma actividade política digna e sadia. Doutra forma, ela vai sendo corroída, minada e perdendo credibilidade. Acresce uma outra razão essencial: um político que não seja um exemplo, em temos de comportamento cívico e de respeito por exigentes padrões éticos, é um político sem autoridade. Fala, mas não é ouvido, decide, mas não é respeitado e, amiúde, fica condicionado na sua capacidade para agir e intervir. Há um desvalor grave que se inculca na sociedade e uma degradação do clima de confiança e de respeito entre eleitos e eleitores, entre governantes e governados.
É usual dizer-se que o exemplo vem de cima. De um responsável político tem de vir o exemplo de coerência, de verdade e de credibilidade. Até por experiência própria, sei que não é fácil afirmar esta orientação, mas é essencial fazê-la.
A primeira dificuldade reside neste facto: em democracia, a ética não se confunde com a lei. Há comportamentos, decisões e atitudes que podem ser legais, mas não deixam de ser eticamente censuráveis. Para alguns, normalmente parte interessada, tudo o que não é proibido por lei é permitido a um político. Não penso assim. A ética está para além da lei. Há impedimentos e incompatibilidades éticas que nenhuma lei estatui mas que são evidentes perante o mais mediano bom senso e aos olhos dos mais elementares critérios de prudência política.
Administrar ou assessorar uma empresa que antes, no Governo, se tutelou, pode não ser uma actividade ilegal, mas suscita, em muitos casos, impedimentos e dúvidas éticas bem legítimas e pertinentes.
Exemplos desta e doutra natureza surgem com grande frequência, às vezes tocando mesmo as raias do escândalo. Os cidadãos apercebem-se e os partidos conhecem-nos. Apesar disso, reina uma certa impunidade. Muitos políticos teimam em não perceber que, se violar a lei é grave, desrespeitar exigências éticas não é menos condenável.
Outra dificuldade situa-se no plano da separação da política e da justiça. Também aqui sou claro. À política o que é da política, à justiça o que é da justiça. Nem um partido político existe para se substituir prevenir e censurar comportamentos aos tribunais, nem as decisões judiciais podem condicionar a actividade política. Não estamos nem queremos fazer parte de uma qualquer República de Juízes.
Um cidadão arguido num processo judicial pode perfeitamente, na grande maioria dos casos, ser candidato a cargos políticos ou neles manter-se depois de constituído arguido, tal como, por outro lado, um cidadão, livre de qualquer investigação, pode não reunir os requisitos éticos e políticos indispensáveis para se candidatar ou para permanecer numa função política.
No meio, há investigações judiciais que, pela sua natureza, podem colocar um responsável político diminuído na sua autoridade e nas condições para o exercício do seu cargo, comprometendo a sua imagem e a da instituição que representa.
É certo que, formalmente, continua a ter a mesma legitimidade. Na prática, porém, até completo esclarecimento da verdade, a sua autoridade ficou enfraquecida, o seu prestígio abalado, o seu espaço de manobra diminuído. Permanecer em funções, em situações como esta, é uma opção juridicamente legítima; mas não é ética e politicamente recomendável.
Decidir, em casos desta natureza, é essencial e pressupõe uma avaliação que deve ser feita, caso a caso, à luz de critérios éticos e políticos e de juízos de prudência e de credibilidade, na defesa dos próprios e sobretudo das instituições, sem qualquer presunção de culpabilidade, ilegalidade ou condenação.
Só que esta avaliação não pode ser um mero pró-forma. Ela tem de ser feita com rigor e exigência, podendo implicar mesmo a suspensão temporária de funções. E deve aplicar-se a todos: governantes, deputados ou autarcas. Não pode haver políticos de primeira ou de segunda. Todos estão sujeitos ao escrutínio apertado da opinião pública e a todos se aplicam as mesmas exigências éticas.
Uma terceira dificuldade situa-se no plano das relações público-privadas.
Governar nos dias de hoje exige, cada vez mais, uma relação de proximidade entre o poder político e o poder económico. Os governos discutem decisões, negoceiam entendimentos, afinam estratégias com empresas ou grupos económicos, tendo em vista os superiores interesses do país.
Esta relação de parceria, para além de importante, é mesmo uma inevitabilidade da governação moderna. Só que parceria não pode confundir-se com promiscuidade. A parceria estratégica, visando interesses comuns e nacionais, é saudável. A promiscuidade é intolerável.
Qualquer decisão governativa tem de estar sempre sujeita ao escrutínio público e democrático. E quando ela se torna pública, não pode restar uma dúvida, aos olhos dos cidadãos, de que tudo se passou dentro das mais exigentes regras da legalidade, da transparência e da defesa do interesse público. Qualquer suspeição que se instale, a este respeito, só favorece um clima de desconfiança nos políticos, minando a autoridade democrática do Estado e a eficácia do seu funcionamento.
Os poderes de facto, existentes na sociedade, por mais importantes, poderosos e respeitáveis que sejam, não podem sobrepor-se nunca, directa ou indirectamente, ao poder político democraticamente legitimado.
A subordinação do poder económico ao poder político - princípio fundador da nossa democracia - não significa que um e outro vivam de costas voltadas. Significa, sim, que a legitimidade do decisor político, fundada no voto e centrada na defesa do interesse geral, não pode ser subvertida por outras legitimidades e interesses que o sufrágio não comanda e que o escrutínio democrático não avaliza.
A maior das dificuldades em afirmar a ética na política está, porém, dentro dos próprios partidos. Um partido, por natureza, quer ganhar eleições e gosta de manter o poder a qualquer preço. É humano, mas não é aceitável.
Como muitas vezes afirmei, há momentos em que é preciso correr o risco de perder uma eleição para afirmar uma linha política. Uma linha política de credibilidade.
Vencer eleições à custa da cedência em valores e princípios éticos fundamentais tem um preço político bem maior que o de uma derrota eleitoral. Por outro lado, querer exercer o poder a qualquer preço é um exemplo detestável. Só contribui para minar a credibilidade.
Ora, a credibilidade é um bem inestimável na acção política. Um bem que só se adquire pela coerência, pela exigência ética e pela coragem de fazer rupturas em nome de valores e de convicções. Um bem que leva tempo a construir, mas que se destrói num ápice, por uma falha de atitude ou de comportamento. E sem credibilidade política degrada-se a democracia, minam-se as instituições, perde-se autoridade, não se aplica qualquer projecto nem se luta por um ideal.
Pesem embora as dificuldades, considero, hoje mais do que nunca, que este é o caminho a seguir. Fazer vista grossa às exigências éticas na política e deixar instalar práticas de permissividade perante os princípios e de promiscuidade nos comportamentos é a melhor forma de fazer singrar o discurso do populismo justiceiro.
Muitas das suspeições de corrupção que permanentemente agitam a nossa sociedade seriam dissipadas se houvesse, da parte dos partidos, coragem para afirmar este discurso e vontade para aplicar estas orientações.
Infelizmente, os partidos - todos eles - teimam em não querer ver a realidade, estão cada vez mais fechados sobre si próprios e crescentemente dependentes de lógicas ou grupos corporativos, cedem aos interesses em vez de darem primazia aos princípios e valores, encontram sempre desculpas ou explicações formais para não fazerem o que lhes compete. Esta prática de impunidade está a destruir a credibilidade e o prestígio dos partidos. Só os próprios ou os seus responsáveis é que não vêem.
A ética é uma exigência intemporal. Mas ela é particularmente importante em tempos de dificuldades, como aqueles que vivemos. Os cidadãos que fazem sacrifícios no seu dia-a-dia e que estão preocupados em relação ao seu futuro têm de ver nos responsáveis políticos, em todas as instâncias do poder, um exemplo e uma referência. Um exemplo de fidelidade ao serviço público, uma referência de credibilidade.
Há várias eleições no próximo ano. Os partidos vão ser chamados a aprovar programas eleitorais, a escolher candidatos, a fazer opções e a assumir compromissos políticos. Considero ser um bom momento para arrepiar caminho e voltar a colocar no centro da agenda política nacional o tema da ética na vida política.
Agir desta forma não pode ser, porém, um exercício de platonismo político. A credibilidade só se afirma quando há coerência entre o que se diz e o que se faz, quando o discurso tem consequências práticas e visíveis.

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