Dockanema Cinema e memória em Maputo

Há 25 mil latas com filmes em risco no arquivo de Moçambique e a Cinemateca Portuguesa está a tentar salvá-los. O primeiro balanço vai ser feito durante o Dockanema, festival de documentários que hoje começa. Oitenta filmes durante os próximos dez dias, em torno da Memória

a Um curto-circuito de madrugada e às dez da manhã o Instituto Nacional de Cinema era uma carcaça fumegante. Isto aconteceu em 1991, em Maputo, Moçambique. "O incêndio queimou todo o equipamento de produção e todos os filmes em distribuição", conta o produtor Pedro Pimenta. Só sobraram os filmes em arquivo, cerca de 25 mil latas com imagens desde o tempo colonial ao pós-independência. "No meio da desgraça houve alguma sorte."Salvas das chamas, essas latas insubstituíveis, matriz de um cinema e de um país, acabaram por ficar ao abandono, em degradação, como se pode ver no filme KuxaKanema, da portuguesa Margarida Cardoso, um dos destaques do Dockanema, festival de cinema documental que hoje começa em Maputo.
Mas há uns meses a Cinemateca Portuguesa começou a recuperar esse arquivo, e José Manuel Costa, do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, vai avaliar o estado dos trabalhos no decurso do festival.
Fundado e dirigido por Pedro Pimenta, 53 anos, o Dockanema já teve duas edições, em crescendo de público (10 mil e depois 14 mil espectadores) e este ano prevê conseguir um impacto maior, com sessões a acontecer nas universidades ainda antes da abertura oficial.
O documentário de Margarida Cardoso é um dos 80 filmes a exibir nos próximos dez dias, em várias salas da cidade, com a Memória como tema central.
Memória e amnésia
"Na nossa prospecção à procura de filmes notámos que havia muita matéria de vários países para uma nova abordagem da memória e pensámos que era interessante elaborar sobre isso em Moçambique", explica Pedro Pimenta. "Não existe uma única memória, a memória é sempre uma interpretação, e falar de memória é também falar de amnésia. Aqui há tentativas de relação com a memória nem sempre consensuais e pacíficas, e outras latitudes e horizontes podiam contribuir para o debate."
O festival abre com Stranded: I Have come from a plane that crashed on the mountains, do uruguaio Gonzalo Arijón, um documentário sobre a queda do Voo 571 na cordilheira dos Andes, há 35 anos. "Os sobreviventes estiveram perdidos mais de dois meses e tiveram de comer os mortos", resume o director do festival. "E só agora começam a falar do assunto. Nunca se tinham exposto. É um exercício de confrontação com a memória." Ganhou o prémio Joris Ivens em 2007.
Outro destaque é Vogliamo Anche le Rose, da italiana Alina Marazzi, sobre as lutas das mulheres, especialmente em Itália mas não só, nos anos 70, que levaram à despenalização do aborto. "São conquistas que agora estão sendo postas em causa por alguns sectores do poder em Itália. É importante que as pessoas tenham memória dos processos de conquistas que correm o risco de desaparecer."
Do Brasil vem Memórias para o Uso Diário, de Beth Formaggini. "É um filme sobre os torturados e desaparecidos durante a ditadura que foram reduzidos a um nome de rua, e há um movimento que luta contra isso."
Mas como país convidado desta terceira edição do Dockanema, o Brasil tem vários cineastas e 20 filmes no festival, uma "mostra específica que procura retratar as tendências do documentário brasileiro actual, à volta da memória mas não só". Abrange também o que está a acontecer no projecto DocTV, que causou "um renascer do documentário" no Brasil, diz Pimenta, "ao estimular a produção e difusão". Desde 2003, o DocTV produziu 114 filmes. "É uma dinâmica com resultados muito interessantes que se podem expandir para o resto da América Latina."
O Dockanema realça ainda A Cortina de Açúcar, de Camilla Guzman - uma cubana que saiu de Cuba depois da revolução e regressa em busca da infância - ou As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes - sobre a guerra na Guiné Bissau.
Quanto a KuxaKanema, Pimenta diz que é a própria "memória do cinema moçambicano".
O cinema levado à gente
KuxaKanema era o nome dos pequenos documentários de actualidade produzidos logo a seguir à independência de Moçambique. Foi uma das primeiras e mais ambiciosas acções do Presidente Samora Machel. Como não havia televisão, uma equipa de argumentistas, realizadores e técnicos iam produzindo documentários sobre o que estava a acontecer, ou seja o nascimento do Moçambique independente, que acabaram por representar também o nascimento do cinema. Estes documentários eram depois levados e exibidos por todo o país, até às zonas mais remotas. Politicamente, significava uma engenhosa forma de unificação e estruturação do regime.
Um dos acontecimentos do Dockanema será a exibição de três destes KuxaKanema. Foram recuperados dos arquivos e digitalizados para o festival, juntamente com outros dois filmes moçambicanos, Estas São as Armas, de Murilo Sales e Luís Bernardo Honwana, e Ibo, o Sangue do Silêncio, de Camilo de Sousa.
Mas a maior parte dos KuxaKanema está dentro das tais 25 mil latas "em risco muito sério", alerta Pedro Pimenta. "Esse arquivo está a ser inventariado pela Cinemateca, numa acção com apoio da Cooperação Portuguesa e da Unesco." O inventário é essencial para uma estratégia de recuperação, que terá depois de passar "por uma intervenção de maior vulto".
Dois técnicos da Cinemateca Portuguesa estão em Maputo a trabalhar desde Fevereiro com um técnico moçambicano, ao qual se juntará outro em breve, diz Pimenta, destacando o papel decisivo de José Manuel Costa. "Foi ele quem se interessou por este problema e convenceu a Cinemateca e a Cooperação a apoiarem. Agora, por ocasião do festival, vem avaliar o que se fez, também em missão para a FIAF [Federação Internacional dos Arquivos de Filmes], que tem um projecto de recuperação de filmes em África."
O programa que antecedeu a abertura do Dockanema, a decorrer nas universidades, contou com 23 sessões, e Pimenta está satisfeito com o resultado, 120/150 pessoas por sessão. "Teremos também sessões nas comunidades periféricas de Maputo e em Outubro na Beira e em Nampula, com uma selecção de sete a dez títulos, durante uma semana."
Um mini-Dockanema, além da capital.

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