Torne-se perito

Quando o cinema era italiano

Formaram uma "segunda" ou "terceira" linha, à sombra de Antonioni, Fellini, Visconti, Rossellini e de outros "mestres". Ninguém lhes dedicou um catálogo, mas o Festival de Veneza dedicou-lhes uma retrospectiva. São os fantasmas do cinema italiano, excitante retrospectiva de filmes esquecidos de nomes que não fizeram a História, e que foram realizados entre 1946-1975. Vasco Camara em Veneza

a Só o racionalismo de um francês, o crítico da revista Positif, Michel Ciment, para deitar água fria na paixão pelo caos dos italianos. Começou por citar o poeta e pensador Paul Valéry: "Há dois perigos que ameaçam o mundo: a ordem e a desordem". E Ciment continuou, agora com as suas palavras: "O perigo da ordem é ter um conjunto imobilizado de nomes, algo solidificado, que nunca muda. O outro perigo é o oposto: fazer da História do gosto algo em mudança constante: é a epidemia do relativismo, é a onda Tarantino". Ciment sabe do que fala, já que no Festival de Cannes deste ano foi moderador da "Lição de Cinema" de Quentin Tarantino e do "vale tudo" cinematográfico do norte-americano. "Mas de facto", continuou o francês, agora com água morna, "é importante ter presente que não existem apenas autores de cinema; há também filmes. E que um realizador menor pode fazer um grande filme".
Depois da dúvida metódica, o critico Ciment mostrava-se em sintonia com o espírito que esteve por trás da retrospectiva Questi fantasmi: cinema italiano ritrovato (1946-1975), excitante aventura que animou os dias do Festival de Veneza, tal como, em anteriores edições, se organizaram expedições ao cinema policial japonês, à série B italiana, ao western spaghetti...
Quem são os "fantasmas" do cinema italiano que se (re)descobrem? São aqueles que viveram na sombra de Antonioni, Fellini, Visconti, De Sica, Rossellini, Bertolucci e de outros incontornáveis. São aqueles que foram, durante décadas, o suporte da indústria do cinema italiano, a sua segunda ou terceira linha, mas que a sombra dos "grandes" condenou à invisibilidade: sobre eles assenta o pó na Cineteca Nazionale de Roma.
Os "mestres" morreram - ou deixaram de fazer filmes ou deixaram de ter presente. A tentação, por isso, é grande numa cinematografia assombrada pelo fulgor fulminante do seu passado, pela incapacidade de atingir hoje aquelas alturas, pelo sentimento de perda que não sara: regressar a essas segunda e terceira linha para contar outras histórias, menos oficiais, do cinema italiano, limpar o pó aos filmes que ficaram esquecidos, dedicar atenção aos que não tiveram direito a um catálogo ou, sequer, a um mini-catálogo. Não têm que ser "autores". Mas podem ser realizadores de grandes filmes.
Foi essa a tarefa de Sergio Toffetti, da Cineteca Nazionale, e do critico Tatti Sanguinetti, que, refreando entusiasmos e não deslizando para o terrorismo revisionista, dedicaram não um catálogo inteiro mas um pedaço de catálogo a 30 filmes, de realizadores como Luigi Zampa, Max Neufeld, Claudio Gora, Mauro Bolognini, Lina Wertmuller, Franco Rossi, Mario Bonnard, Diulio Coletti, Giuseppe Fina, Carmelo Bene e outros. O "trabalho de fundo" sobre os arquivos continua, anunciou Toffetti no painel de discussão organizado no fim da retrospectiva para tirar conclusões. E foi a Toffetti, o homem que pôs as mãos na massa, que se pediu que assinalasse para já as suas "grandes descobertas".
Sem protocolo
"Il Ciello è Rosso [um filme de 1950 de Claudio Gora, 1913-1998], é para mim uma grande descoberta: parece um filme neo-realista, mas não é, apesar das ruínas" - nesse filme segue-se o calvário de um adolescente, orfão, numa cidade bombardeada durante a II Guerra Mundial. "Há um lado fantástico no filme de Gora, coisa que não havia nos filmes típicos do neo-realismo. Nos filmes neo-realistas, havia temas em que não se tocava. Havia uma espécie de negociação com os espectadores nesse cinema que, olhando para o mundo de forma dialéctica, fez a passagem da guerra para o pós-guerra. Ora, esse protocolo não foi respeitado por realizadores como Gora ou como Max Neufeld [1887-1967, realizador de origem austríaca que trabalhou em Itália], que em Un Uomo Ritorna [1946], filmado numa Itália em que se tentava a reconciliação nacional, põe Ana Magnani a gritar para outra personagem, um nazi: 'Eu mato-te'". Chamemos-lhes então "anti-neorealistas".
Como não respeitava o protocolo Luigi Zampa, presente na retrospectiva com dois titulos: Processo alla Città (1952), espécie de filme fundador do "filme de mafia", e o extraordinário Anni Difficili (1948), baseado num conto de Vitaliano Brancati. Aí, em registo de sátira social, Zampa retrata a adesão do povo italiano a Mussolini através das aventuras e infortúnios de uma família siciliana. Um dos filmes mais discutidos no seu tempo (era anti-italiano?, mostrava que a Itália era fascista?...) foi atacado à esquerda e à direita (mas teve defensores como Italo Calvino) e hoje é um pedaço de cinema de uma lucidez estonteante - e uma dose equivalente de ternura pela "gente pequena". Sem intenções revisionistas, apetece descobrir a obra de Zampa (1905-1991), que ficou para a História como realizador de sucessos comerciais e, de forma geral, ilustrador de argumentos.
"Este cinema", continuou Toffetti, "não fazia parte do debate ideológico central" - que em termos culturais era dominado pela esquerda - "mas instituía um diálogo muito forte com a realidade". Deu outro exemplo desse individualismo, dessa reticência em relação à ideologia da cultura dominante: a Lina Wertmuller de I Basilischi (1963), primeira-obra da realizadora, filmando a monotonia da existência de um grupo de jovens do Sul de Itália. Aquela a quem a crítica americana Pauline Kael louvaria "o socialismo anárquico, sempre contra o establishment de esquerda" é dos nomes da retrospectiva aquele que, numa dada altura, nos anos 70, mais disse aos espectadores e à crítica americanos. Lina, 82 anos, esteve presente no painel e reconheceu-se nesse individualismo.
Mais pérolas da expedição: Smog (1962), de Franco Rossi (1919-2000), o retrato de um grupo de italianos "exilados" em Los Angeles (Enrico Maria Salerno, Annie Girardot, Renato Salvatori), é um filme que, segundo a boutade de Tatti Sanguinetti, "se não tivesse genérico, toda a gente pensaria que era de Antonioni"; Agostino (1962), de Mauro Bolognini (1922-2001), filmado no Lido, no Hotel des Bains, progride como uma litania doentia e sensual, uma "música" incrivelmente anti-melodramática que tem como motivo a relação entre um filho e uma mãe (Ingrid Thulin) - para Toffetti "é um filme mais fluído do que Morte em Veneza" de Visconti.
The real thing
Questi fantasmi: cinema italiano ritrovato (1946-1975) fez mais do que mostrar (grandes) filmes esquecidos de realizadores que não são tidos em conta pela História oficial. Também viu com outros olhos filmes mais esquecidos de cineastas que não precisam de ajuda de ninguém, como Federico Fellini e o seu Xeique Branco (1952) - foi mostrada a obra restaurada e as sequências que Fellini, cheio de dúvidas pelas objecções que Rossellini colocou ao que ele tinha feito, deixou fora da montagem final; são excertos, segundo a opinião do "felliniano" Tatti Sanguinetti, que "mudam muita coisa" em relação ao olhar sobre Fellini, já que "mostra uma reserva poética e de imaginário no Fellini dos inícios que ele iria aplicar mais tarde" em As Noites de Cabiria ou Julieta dos Espiritos.
Também se mostraram obras de cineastas cuja ascensão ao panteão dos incontornáveis é coisa recente, trabalho de reconhecimento dos anos 1970 e 1980: gente como Mario Monicelli, que tem hoje 93 anos, ou Dino Risi, que morreu este ano. Como testemunhou Michel Ciment, "o neo-realismo era um mito do cinema italiano, por isso quando um realizador fazia comédia, os críticos italianos, que eram todos de esquerda, não ligavam. Devo dizer que foram os críticos franceses, nos anos 70 e 80, que fizeram a redescoberta de Risi, Monicelli e Luigi Comencini"
De Monicelli foi mostrado um canto-fúnebre, Toh, è morta la nonna! (1969), um dos raros insucessos comerciais da carreira de um realizador de sucessos. Verdadeiro insecticida aplicado sobre a família burguesa, é uma comédia, com Valentina Cortesi, de um rigor gélido, frio como a morte. Os programadores do ciclo chamaram-lhe, e bem, "pop maoista". Segundo eles, marcou o início de uma associação irreversível na obra de Monicelli: a família e a morte. (Aviso à navegação: a "integral" de Monicelli na Cinemateca Francesa, no Inverno, foi um dos maiores sucessos de público da instituição, testemunhou Ciment.)
I Mostri (1963), de Dino Risi (numa sessão que mostrou sketches novos que não fizeram parte da versão estreada), é um dos títulos emblemáticos de um dos maiores retratistas da sociedade italiana. Uma americana presente no painel, Stephanie Zacharek (Salon.com, e autora de textos sobre pop culture publicados na Sight and Sound e no New York Times), representou a nova geração de críticos. Viu pela primeira vez o filme em Veneza e registe-se o seu testemunho: viu de boca aberta e de olhos arregalados, não encontra tamanho "arrojo" na comédia contemporânea.
O olhar americano que foi convocado para o painel que discutiu Questi fantasmi: cinema italiano ritrovato (1946-1975), esteve a cargo também de Richard Corliss, da revista Time, e de Mick LaSalle, do San Francisco Chronicle, e entende-se: serviu para lembrar a influência que o cinema italiano teve no mundo nas décadas de 50 e 60 - se chegou com tanto poder aos EUA isso significa que chegou ao mundo. LaSalle deitou os seus compatriotas no divã: "Nos filmes italianos, as personagens não estavam em guerra com os seus desejos. Na América dos anos do boom económico, anos 50, sim. Era só trabalho, trabalho, trabalho... Foi por isso que nos anos 60 e 70 os americanos descobriram as drogas e o sexo: para ficarem tão espontâneos como os italianos eram logo que acordavam pela manhã; espontâneos a responderem de forma verdadeira, sem filtros, à fealdade e à beleza da vida" - LaSalle disse-se embaraçado: esse interesse dos americanos pelo cinema que vem de fora é coisa do passado (fazendo contas: representava 5 por cento a parte do mercado americano para o cinema estrangeiro; representa hoje 0,5 por cento).
Nisso, no passado, Richard Corliss é especialista. Basta-lhe recordar as suas experiências de menino-espectador. "O actor sempre foi a cara de um filme em Hollywood. Podemos fazer uma 'teoria dos actores' paralela a uma 'teoria dos autores'. Ora, o cinema italiano do passado estava cheio de estrelas com enorme carisma sexual. As mulheres, sobretudo, eram the real thing. Nem eram o tipo gamine, como Audrey Hepburn, nem o tipo cartoon, como Monroe. Magnani, Monica Vitti, Virna Lisi... ainda hoje há Virnas Lisis no cinema americano, vejam Michelle Pfeiffer ou Laura Linney. E os homens... o atraente Mastroianni com a mortalidade em cima como um fardo... Mastroianni dá hoje George Clooney com depressão".
O francês Ciment prefere a fidelidade à politica dos autores. Começou a escrever as suas criticas nos anos 50/60, recordou. "Nouvelle-Vague? Essa foi uma mitologia construída mais tarde". Quando ele começou, o cinema era italiano.
filme segue-se ao calvario de um adolescente, orfao, numa cidade bombardeada durante a II Guerra Mundial. "Hà um lado fantastico no filme de Gora, coisa que nao havia nos filmes tipicos do neo-realismo. Nos filmes neo-realistas, havia temas em que nao se tocava. Havia uma especie de negociaçao com os espectadores nesse cinema que, olhando para o mundo de forma dialectica, fez a passagem da guerra para o pos-guerra. Ora, esse protocolo nao foi respeitado por realizadores como Gora ou como Max Neufeld [1887-1967, realizador de origem austriaca que trabalhou em Italia], que em 'Un Uomo Ritorna' [1946], filmado numa Italia em que se tentava a reconciliaçao nacional, poe Ana Magnani a gritar para outra personagem, um nazi: 'Eu mato-te'". Chamemos-lhes entao "anti-neorealistas".
Como nao respeitava o protocolo Luigi Zampa, presente na retrospectiva com dois titulos: "Processo alla Città" (1952), especie de filme fundador do "filme de mafia", e o extraordinario "Anni Difficili" (1948), baseado num conto de Vitaliano Brancati. Ai, em registo de satira social, Zampa retrata a adesao do povo italiano a Mussolini atraves das aventuras e infortunios de uma familia siciliana. Um dos filmes mais dicutidos no seu tempo (era anti-italiano?, mostrava que a Italia era fascista?...) foi atacado à esquerda e à direita (mas teve defensores como Italo Calvino) e hoje é um pedaço de cinema de

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